1. Religiões comparadas: Budismo e Sufismo.

30/08/2014 14:37

 

1. RELIGIÕES COMPARADAS: (I) Budismo e Sufismo.

 

Religiões comparadas aqui neste blog se restringirá a aproximações mediante leituras notáveis e/ou significativas, - e sempre respeitando as diferenças - entre as grandes tradições espirituais, abordando preferencialmente o que pode ser constatado através das demonstrações apontadas e, se possível, evitando longas digressões bem como o uso desnecessário de erudição. A vasta erudição, porém, – a qual eu, de minha parte, não apenas não desprezo mas procuro não negligenciar  - não nos será muito útil sem uma apreensão das essências dos ensinamentos, isto é: sem a espiritualidade objetiva e efetiva.

 

Pelo momento, ao menos neste post, farei apenas uma breve, curta apresentação sobre o Sufismo, tratando-se realmente apenas de uma lacônica introdução.

 

O Sufismo – se por Sufismo queremos nos referir à tradição espiritual a que pertenceram/pertencem Ibn Arabi, Rumi, Al Junnaid, Al Hallaj, Dul Nun, Bayazid, Rabbya, Attar, Kabir e tantos outros iluminados - é uma posição metafísica tradicional vinculada ao Islam, não havendo falar em “Sufismo sem Islam”, até porque o Sufismo está organizado em linhagens/famílias espirituais, transmissão espiritual regular de mestre a discípulo – de “pai” a “filho” - além da Baraka (o depósito espiritual, em relação ao qual a transmissão tem legitimidade e efetividade). 

 

O “Sufismo sem Islam” terá alguns ensinamentos e técnicas que os sufis tradicionais também usam mas, irremediavelmente, tal apropriação de ensinamentos e técnicas terá a sua aplicação sem a Baraka (depósito espiritual cuja conexão pelas tariqas/confrarias sufis faculta a transmissão autêntica) pois desconectado de qualquer linhagem (ou ainda conectado ao que consiste em desvio das linhagens autênticas) - imaginem, os budistas vajrayana, a prática das sadhanas sem iniciação, sem lama/guru e sem conexão com nenhuma linhagem espiritual do Buddhadharma (vamos todos agora ler os Tantras - eu, por exemplo, que sou apenas um upasaka/budista leigo estou com o Mahakala Tantra aqui na mesa - e sair praticando-os, despreocupada e negligentemente, sem transmissão, sem orientação de um professor qualificado, sem o suporte de um linhagem espiritual autêntica e sem empoderamento; então, quando eu terminar o meu estudo do Mahakala Tantra já posso sair oferecendo iniciações! E abram espaço para o “lama" Kaliputra...) - obviamente que, acerca do “Sufismo sem Islam”, na sua tentativa de percorrer a mesma rota dos sufis tradicionais, os resultados não podem ser (e, na verdade, não são) os mesmos, mas reduzidos (quando não ineficazes), desviados e mesmo desastrosos. [*]

 

[nota: pertinente aqui a observação de Rene Guénon, o qual tem aderido integralmente ao Islam e ao Sufismo- "No esoterismo islâmico [i.e. no Sufismo], diz-se que aquele que se apresenta a uma certa 'porta', sem ter chegado a ela por uma via normal e legítima, vê essa porta fechar-se diante dele e é obrigado a voltar para trás, não, entretanto, como um simples profano, o que é doravante impossível, mas como “sâher” (feiticeiro ou mágico que opera no domínio das possibilidades sutis de ordem inferior). O último grau de hierarquia 'contra-iniciática' é ocupado pelos chamados 'santos de Satã' (awl Tyaesh-Shaytán), que são de certo modo o inverso dos verdadeiros santos (awl Tyaer-Rahmin), e que manifestam também a expressão mais completa possível da 'espiritualidade às avessas'...]

 

O Islam moderno tem sofrido não apenas com a infiltração (e demência) do terrorismo/extremismo, mas também, nalguns setores e em relação a alguns expositores islâmicos, com uma visão literária e fundamentalista do Al Corão (neste aspecto, bastante similar tal maneira de interpretar o Al Corão àquela efetuada com a Bíblia pelo fundamentalismo cristão protestante) da qual o terrorismo/extremismo procura se servir; tal posição não corresponde à totalidade do Islam, onde a maior parte dos muçulmanos ainda são vinculados a alguma tariqa (confraria sufi) e o Sufismo é – continua sendo - o caminho do Amor/Conhecimento...

 

                                                       ________________

 

BUDISMO CH'AN

The mind-moon is solitary and perfect:

The light swallows the ten-thousand things.

It is not that the light illuminates objects,

Nor are objects in existence.

Both light and objects are gone,

And what is it that remains?

 

A Lua do espírito (Lua da Mente) é solitária e perfeita.

A luz absorve as dez mil coisas

Não é que a luz ilumine objetos

nem há objetos em existência.

Tanto a luz como os objetos se foram...

E o que resta?

 

Pan Shan Baoji, 720-814 EC, citado por Suzuki em “Mística: cristã e budista”, Capítulo 1 – Página 41 da versão brasileira)

 

 


SUFISMO

 

Ah, Moon of my Delight who know'st no wane,
The Moon of Heav'n is rising once again:
How oft hereafter rising shall she look
Through this same Garden after me? - in vain!

 

Ó Lua de meu Deleite que não conhece minguante

A lua no céu se eleva mais uma vez...

Doravante, quantas vezes ao elevar-se

ela não me procurará neste mesmo jardim? – em vão!

 

Rubayát de Omar Kháyyám (LXXXIX) - tradução para a língua inglesa de Edward Fitzgerald.

 

 

 

 

A “Lua de meu Deleite”  trata-se de uma realização interior/espiritual, metafísica – como a “Lua da Mente” (“Mind-Moon” do original inglês)/”Lua do Espírito” budista [*] -, acerca da qual a mesma “não conhece minguante”, ou seja não está sujeita ao domínio de nascimento-e-morte, tratando-se a mesma dA Luz.

 

Atentemos que “a lua no céu”,  a qual “se eleva mais uma vez”  não é outra que não a Lua que nós vemos no céu material/firmamento, em seu curso de 28 dias [**].

 

Do ponto de vista dos sufis e do Buddhadharma, depreende-se do rubaiá de Omar Kháyyám que uma ascese interior/espiritual foi percorrida e devidamente cumprida.

 

Para nosso amigo aquela “Lua de meu Deleite” - a Luz - é uma realidade formada, acabada, um tesouro interior devidamente atualizado, atingido.

 

A Lua do firmamento/céu material – em termos budistas, indicando aquilo que é temporal e está sujeito a nascimento e morte (os seis reinos do samsara) – serve, no rubaiá, de contraste, reforçando o percebimento da experiência de Omar Kháyyám:

 

Doravante, quantas vezes, ao elevar-se,

ela não me procurará neste mesmo jardim?

Em vão!”...

 

Eis que nosso amigo não volta mais...

 

Segundo os sufis “alcançou o Amigo”...

 

Para nós budistas, em conformidade com o rubaiá, realizou o objetivo, a “Lua da Mente”/”Lua do Espírito”... a qual "é solitária e perfeita", como indicado por  Pan-Shan - o que é possível sentir/entrever também em Omar Kháyyám, . 

 

Cumpre informar que "as dez mil coisas" são todos os resultados da manifestação cósmica, da Realidade Empírica.

 

"Não é que a luz ilumine objetos... nem há objetos em existência."... Não há separação sujeito-objeto tampouco dualidade ou fragmentação. 

 

"Tanto a luz como os objetos se foram... E o que resta?"... Enquanto elaboração verbal, a identidade samsara/nirvana... Por certo que Pan-Shan não nos está remetendo a uma elaboração verbal...

  

   

[Nota: (*) Budismo e Shaivismo se reportam em suas doutrinas a duas formas máximas, principais de experiência iluminativa: o Nirvana e a Clara Luz (ou ainda “Luz natural” )... A experiência da “Lua da Mente” é uma exposição Mahayana equivalente àquela da “Clara Luz” do Vajrayana...]

 

[Nota (**): Embora Fitzgerald tenha optado pela palavra “Heaven” a qual em inglês corresponde a “Céu espiritual”/Empíreo (usada também para  significar “Deus”) ao invés de “Sky”, que propriamente e melhor traduz “céu material”/firmamento, isto é algo que não chega a comprometer esta exposição porque, é necessário lembrar, nem Fitzgerald (Irlanda) nem Franz Toussaint (França) – tampouco o brasileiro Octávio Tarquínio de Souza (um dos brasileiros a reescrever os Rubáyát de Kháyyám) que fez, segundo ele mesmo, uma versão livre a partir daquela de Franz Toussaint (prestigiada - e com razão, haja vista as belas imagens poéticas - entre os europeus) - tinham compreensão do fundo sufi no qual estão inseridos os temas do Rubáiyát. Isto vale também para o admirável, notável católico irlandês G. K. Chesterton. Vale também para ateus e libertinos que apreciam os Rubáiyát de Omar Kháyyám apenas do ponto de vista literário e visualizando somente o que pode ser considerado agnosticismo, hedonismo e ateísmo (portanto Omar Kháyyám seria um herético). 

 

Termos como o “vinho” (a influência derramada do depósito espiritual), a “taverna” (confraria sufi) e “Sáki” (a escanção/sommelier, “a que serve a bebida na taverna”, a qual é, por isto, também “a Amiga”) têm caráter simbólico.

 

Nesse caso, como uma amiga muçulmana tem observado, os Rubáiyát  de Omar Kháyyám - muito lidos no Ocidente - “têm sido compreendidos na sua tradução literal porém não no seu espírito”.  Sem a compreensão dos elementos sufís realmente fica difícil, através de algumas traduções ocidentais, chegar ao verdadeiro Omar Kháyyám (o sufi engajado na via); e, com efeito, o Kháyyám “hedonista”, “agnóstico” e “alcoólotra”, como observado pelo erudito Carl Henry Andrew Bjerregaard, pode ser, deveras, creditado à traduções como a de Fitzgerald e análogas. De minha parte, a minha leitura ainda consegue, não apenas com Fitzgerald mas mesmo em versões um pouco mais ácidas/corrosivas e, as vezes, nalguns rubaiá bastante desviadas como a de Octávio Tarquínio de Souza, detectar, entre um rubaiá e outro, o itinerário sufi ali implícito.

 

Omar Kháyyám (Omar Iben Ibrahim El Khayami) nasceu na cidade de Nishapour, Pérsia – atualmente Iran – cerca de 1040 (outro estudo situa seu nascimento em cerca 1062) e foi matemático (estudioso de álgebra, geometria, mecânica, mineralogia, etc.), astrônomo (foi responsável pelo observatório astronômico de Merv), reformulador do calendário persa, divulgador da filosofia de Ibn Sina (Avicenna) e favorável ao estudo da sabedoria grega bem como poeta; Kháyyám sofreu alguma perseguição, em seus dias, pelos Ullemás (Doutores da Lei Corânica), tendo que se reportar aos mesmos - e se defender - de acusações de ateísmo e de insistir na manutenção da sabedoria da cultura grega nas ciências – ainda que conjuntamente com os valores islâmicos. Omar Kháyyám tem escrito um tratado chamado “al Khubat al gharrá” (O sermão esplêndido), em conformidade com o ponto de vista islâmico ortodoxo, sobre o louvor a Deus, concordando com Avicenna sobre a Unidade Divina (não li este livro, menciono-o aqui apenas em caráter informativo)...

 

Ainda à guisa de informação, os Rubáiyát são um termo que se refere ao plural de “rubaiá”, o qual, por sua vez, trata-se de um poema em quatro linhas (quadra ou quarteto) sendo os versos com métrica e rimados na primera, segunda e quarta linha. Os “Rubáiyát de Omar Kháyyám”  foram descobertos em manuscrito no ano de 1460 por Bodler – manuscrito de Bodler/universidade de Oxford, traduzido por Fitzgerald com ajuda de um amigo - e há um manuscrito original na Universidade de Cambridge...]

 

 

 

[Nota (**): Embora Fitzgerald tenha optado pela palavra “Heaven” a qual em inglês corresponde a “Céu espiritual”/Empíreo (usada também para  significar “Deus”) ao invés de “Sky”, que propriamente e melhor traduz “céu material”/firmamento, isto é algo que não chega a comprometer esta exposição porque, é necessário lembrar, nem Fitzgerald (Irlanda) nem Franz Toussaint (França) – tampouco o brasileiro Octávio Tarquínio de Souza (um dos brasileiros a reescrever os Rubáyát de Kháyyám) que fez, segundo ele mesmo, uma versão livre a partir daquela de Franz Toussaint (prestigiada - e com razão, haja vista as belas imagens poéticas - entre os europeus) - tinham compreensão do fundo sufi no qual estão inseridos os temas do Rubáiyát. Isto vale também para o admirável, notável católico irlandês G. K. Chesterton. Vale também para ateus e libertinos que apreciam os Rubáiyát de Omar Kháyyám apenas do ponto de vista literário e visualizando somente o que pode ser considerado agnosticismo, hedonismo e ateísmo (portanto Omar Kháyyám seria um herético). 
 
Termos como o “vinho” (a influência derramada do depósito espiritual), a “taverna” (confraria sufi) e “Sáki” (a escanção/sommelier, “a que serve a bebida na taverna”, a qual é, por isto, também “a Amiga”) têm caráter simbólico.
 
Nesse caso, como uma amiga muçulmana tem observado, os Rubáiyát  de Omar Kháyyám - muito lidos no Ocidente - “têm sido compreendidos na sua tradução literal porém não no seu espírito”.  Sem a compreensão dos elementos sufís realmente fica difícil, através de algumas traduções ocidentais, chegar ao verdadeiro Omar Kháyyám (o sufi engajado na via); e, com efeito, o Kháyyám “hedonista”, “agnóstico” e “alcoólotra”, como observado pelo erudito Carl Henry Andrew Bjerregaard, pode ser, deveras, creditado à traduções como a de Fitzgerald e análogas. De minha parte, a minha leitura ainda consegue, não apenas com Fitzgerald mas mesmo em versões um pouco mais ácidas/corrosivas e, as vezes, nalguns rubaiá bastante desviadas como a de Octávio Tarquínio de Souza, detectar, entre um rubaiá e outro, o itinerário sufi ali implícito.
 
Omar Kháyyám (Omar Iben Ibrahim El Khayami) nasceu na cidade de Nishapour, Pérsia – atualmente Iran – cerca de 1040 (outro estudo situa seu nascimento em cerca 1062) e foi matemático (estudioso de álgebra, geometria, mecânica, mineralogia, etc.), astrônomo (foi responsável pelo observatório astronômico de Merv), reformulador do calendário persa, divulgador da filosofia de Ibn Sina (Avicenna) e favorável ao estudo da sabedoria grega bem como poeta; Kháyyám sofreu alguma perseguição, em seus dias, pelos Ullemás (Doutores da Lei Corânica), tendo que se reportar aos mesmos - e se defender - de acusações de ateísmo e de insistir na manutenção da sabedoria da cultura grega nas ciências – ainda que conjuntamente com os valores islâmicos. Omar Kháyyám tem escrito um tratado chamado “al Khubat al gharrá” (O sermão esplêndido), em conformidade com o ponto de vista islâmico ortodoxo, sobre o louvor a Deus, concordando com Avicenna sobre a Unidade Divina (não li este livro, menciono-o aqui apenas em caráter informativo)...
 
Ainda à guisa de informação, os Rubáiyát são um termo que se refere ao plural de “rubaiá”, o qual, por sua vez, trata-se de um poema em quatro linhas (quadra ou quarteto) sendo os versos com métrica e rimados na primera, segunda e quarta linha. Os “Rubáiyát de Omar Kháyyám”  foram descobertos em manuscrito no ano de 1460 por Bodler – manuscrito de Bodler/universidade de Oxford, traduzido por Fitzgerald com ajuda de um amigo - e há um manuscrito original na Universidade de Cambridge...]
 

Um dia, numa taverna,

pedi a um velho

notícias dos que partiram.

 

Eis que o mesmo me respondeu:

 

“-Não voltarão! É tudo o que sei...

Bebe vinho!”...

 

- versão brasileira de Octávio Tarquínio de Souza,  rubaiá 103 (a partir da tradução francesa de Franz Toussaint) da editora José Olympio.

 

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