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Mandarava. (revisado em 24/08/2016)

21/03/2016 18:34

Recebi uma crítica por algumas colocações minhas no post “Budismo Moderno. Igreja. Tantra – alguma consideração.”.

 

Especificamente, pelas seguintes linhas, na nota sobre o Tantra:

 

Nos EUA, a "Mandarava", sra. Catherine Burroughs/Ahkon Lhamo, frequenta salões de beleza (nada em contra da minha parte - apenas que a preocupação excessiva com aparência e detalhes exteriores pode não ser, realmente, muito búdica), vive sentada num trono, tem namorados e namoradas, e ainda perturba a sangha com sua falta de temperança.

 

A verdadeira Mandarava, entretanto, vivia de esmolas, em condição itinerante e sem-teto com o Buddha Padma Sambhava, praticava maithuna(cópula tântrica) com ele em campos de cremação e não defendia, em relação ao Buddhadharma, teorias anti-tradicionais - eis a verdadeira Vajra Varahi budista - e o Buddha Padma Sambhava foi seu Hayagriva.”.[*]

 

[nota: pois, no convívio com o Buddha Padma Sambhava, Mandarava sacrificou, justamente, as possibilidades temporais quanto às coisas desta vida para engajar-se na via tântrica itinerante, a mais difícil de ser, ao menos no seu início, percorrida.

Hayagriva, tanto no contexto hindú quanto no contexto budista, implica o posicionamento pelo Sacríficio/Auto-sacrifício em prol de causas nobres – nobres efetivamente: em prol do Dharma, das Elevações e da Iluminação e em prol do bem efetivo dos seres sencientes; e não nominalmente (nos casos meramente nominais, o que temos, via de regra, trata-se de sacrifício de bodes expiatórios – na acepção aflitiva do termo “bode expiatório”, qual seja: vítimas infelizes - em prol de causas egoístas, doentias ou miseráveis)...]

 

 

Essa observação foi considerada minimal – não por trazer informações falsas, mas antes, por trazer poucas informações e, dessarte, soando despreocupada demais ou mesmo inconsequente.

 

Outra pessoa não gosta das colocações tradicionalistas nem da defesa - num blog tradicionalista - das posições tradicionais, preferindo os rumos e visões do modernismo/pós-modernismo - e me chamou de 'pseudo-intelectual', além de 'atrasado' e 'fanático' (tendo em vista minha preferência e adesão à visão tradicional).

 

Outro, por não concordar com a caraterística artesanal deste blog - a qual já justifiquei algumas vezes: realmente, reconheço que precisei de amigos e alguns leitores para, efetivamente, trazer os posts à sua forma definitiva; nesse aspecto, saíram ganhando eu, que estou revisando meus estudos, mas, também, os leitores. Não concordou, também, com minha conclusão sobre a situação, comprometida a meu ver, do Ocidente:

NÃO se alcançam e/ou não se preservam validades (validades = elevações interiores/verdades referentes às mesmas) sem a observação efetiva, na prática, de valores éticos.

 

Se referiu a mim como "shudra" (classe operária) e "mendigo" - na verdade, por "mendigo" quis dizer "simplório" - e, na comparação com o Hinduísmo, "pária".

Se nos remetermos ao Bhagavata Purana, 12,3:38, nesse aspecto, não sou, nem mesmo, um "palhaço", mas um reles farsante falando sobre o Sanatana Dharma e o Buddhadharma, sem, ao menos, compreender, efetivamente, sobre o que está falando.

De minha parte, por enquanto, permaneço sobrevivendo com meus próprios meios e procurando honrar compromissos materiais.

 

"... Aqueles que nada sabem sobre religião, farão altos assentos e presumirão discorrer sobre princípios religiosos...". Bhagavata Purana 12, 3:38 - (sintomas do Kali yuga).

 

Neste aspecto, deixo a minha observação, também:

 

"... Uma pessoa será considerada profana se ela não tiver dinheiro e a hipocrisia será aceita como virtude...". - Bhagavata Purana 12, 2:25 - (sintomas do Kali yuga).

 

Em relação a Ahkon Lhamo (Sra. Catherine Burroughs – ou Alyce Louise Zeoli), como o post ficou um pouco extenso, preferi realmente, apenas, aventar a questão, sem adentrar em mais detalhes.

Mas, aceitando a crítica que me foi feita - “ele não tem muito conhecimento”,postei novamente, com alguns detalhes, essa causa.

 

Cumpre informar que nunca me arroguei aqui ter conhecimentos vastos – e a vastidão é um situação de fato quanto aos documentos tradicionais hindo-budistas. Porém, digo-o, sincera e honestamente: busco o Conhecimento metafísico verdadeiro, através das grandes tradições espirituais, como isto me é possível.

 

Estou revisando e buscando ampliar minhas próprias acumulações de conhecimento - muitas leituras minhas têm mais de vinte anos e foram interrompidas por cerca de oito anos.

 

E a questão comigo é justamente essa interrupção: no ínterim da mesma, alguma exatidão – e mesmo algumas leituras anotadas - acabaram por se perder ou tornaram-se, conquanto assimiladas interiormente, um resultado informe. [*]

 

[nota: a pessoa que me chamou de “shudra” (classe operária), e, assim, candidato a ser reputado como "desprezível" - em vista, inclusive, da ausência de uma condição material necessária para exercer adequadamente estudos sérios, do ponto de vista de uma erudição – não está, no todo, equivocada.

 

Há uns doze anos atrás, minha situação material era melhor e mais confortável e, assim, os estudos fluíam com uma firme regularidade.

 

No hoje, depois de alguns processos pessoais difíceis - kármicos, diria eu, e acerca dos quais poderia tê-los resolvido de um modo melhor, se o nível ético daquilo que estava ao meu redor não fosse tão baixo, comprometido ou, nalguns casos, inexistente - diria que, como muitos brasileiros, tenho que “matar um leão por dia” (e mesmo assim, por gostar do que faço na minha possibilidade sem preocupações materiais, espero a geladeira começar a ficar vazia para me preocupar em correr demais para “matar” o pobre leão).

 

Precisando "matar o leão", o tempo ficou curto, precioso e tendo de ser dividido com outras atividades – como a Prática Espiritual.

 

No final, minha primeira acumulação de estudos – quanto às grandes tradições espirituais - reverte a favor dos estudos que empreendo hoje: na prática, em muitos casos, preciso apenas verificar o estágio atual de alguns debates, fazer algumas consultas e verificações, atualizando a acumulação total de estudos.

 

No hoje, tenho que selecionar melhor, ser mais específico naquilo que desejo prosseguir, ainda, estudando; e focar no que poderá ser útil para a minha construção pessoal, interiormente.

 

Gostaria de dominar o Kanjur e o Tanjur, mas isto se reverteria apenas em erudição, na ausência e pendência das sadhanas (as quais exigem tempo, zêlo e regularidade).

Então, vamos em frente no que é possível e benigno...]

 

 

Assim, uma revisão se faz necessária - e para auxiliar nesta finalidade, decidi escrever o blog – sendo que tenho me esforçado, também, em melhorar o estilo das minhas redações (já que, para disponibilização aberta ao público em geral, nunca havia escrito nada; e parte dos leitores que são meus amigos e me ajudam com o blog, também eles, estão sobrecarregados com mulheres e crianças – ou, ainda, maridos e crianças - e com pouco tempo livre para envidar estudos novos ou revisar o que eles já possuem).

 

Quanto a eu ser um pseudo-intelectual, já mencionei aqui que desisti, na minha época, da cursar Filosofia na USP; tenho algumas leituras de filósofos sérios, mas não posso dizer que se tratem as mesmas de estudos aprofundados - antes, o suficiente para não ser um leigo integral. E com a desistência da USP, não tentei outra coisa, mas me desloquei para a área técnica (Edificações – decisão de que me arrependi, no quarto ano do curso).

 

Desistindo da Filosofia (não desistiria hoje) e me concentrando nas grandes tradições espirituais, não posso dizer que eu seja, sequer, um intelectual - ou que tenha essa pretensão.

 

Se, porém, eu mesmo não me apresento, não me considero e não tenho a pretensão de ser um intelectual – como o padre Bernard Lonergan, por exemplo – ora, e quanto mais, sem enveredar por essa rota, seria um “pseudo-intelectual” (título digno dos pretensiosos - mas dotados de pouca habilidade, pesquisas e acumulações).

 

No campo da inteligência, mesmo em relação àqueles dotados de uma imensa capacidade, eis que a mesma, ainda que muito eficiente, "gira em falso" quando lidando com informações inverídicas.

 

Sou apenas um budista que estuda as grandes tradições espirituais, na perspectiva das suas ortodoxias tradicionais – a meu ver, a perspectiva que, ainda, mediante esforços idôneos, pode resultar em resultados notáveis.

 

Quanto ao meu "fanatismo', já expliquei aqui, em diversos posts, que não há "Papai Noel" [*] nem há, também, somente e exclusivamente, uma grande acumulação intelectual - ainda que consubstanciada em consistente e mesmo admirável erudição.

 

Fanatismo e Fundamentalismo são resultados que podem ser encontrados na conduta pessoal de individuais localizados e vinculados a diversas vertentes de propostas culturais, inclusive apreciadores e defensores de posições científicas ou materialistas. Alguém quer focar apenas no Fanatismo e no Fundamentalismo quando os mesmos são localizados no âmbito religioso – em boa parte dos casos, situados no domínio das seitas religiosas e pseudorreligiosas. Sei, porém, de pessoas com boa ou mesmo notável capacidade intelectual e cultural que são, simplesmente, a favor da eliminação pura, simples e impiedosa de toda e qualquer forma de religião – não apenas de desvios/doenças, seitas religiosas e pseudorreligiosas, mas das grandes tradições espirituais, as quais foram determinantes na construção de civilizações inteiras.

 

Seja como for, no âmbito das grandes tradições espirituais, o que temos é, sobre a fundação bem estabelecida de uma Base Ética Autêntica, Estudos Idôneos sobre os documentos tradicionais e seus itinerários - estudos esses empreendidos não apenas com a mente, mas também com o coração -, e, no que concerne à Prática Espiritual, um esforço contínuo, zeloso e diligente nos procedimentos objetivando uma ascese interior-espiritual.

 

Integram, porém, esse processo: a Fé (não apenas quanto à veracidade e a validade dos documentos e itinerários tradicionais, mas na possibilidade de atualizá-los em nossas vidas) e aquilo que o Buddhadharna denomina "Tomada de Refúgio"; isto é, se não tivermos adesão a alguma família espiritual autêntica, estaremos sem transmissão, sem rito ou no que pode ser denominado "Via Mística": na Via Mística há identificação e adesão interior a uma determinada família espiritual, porém pendem em aberto a transmissão e iniciações efetivas repassadas por um representante legítimo da dita família espiritual. Nesse caso, faltando a transmissão/ritos, se está fora da conexão direta com os santos, rshis, gurus, yogins, buddhas, bodhisattvas, arhants, dakinis, etc.

 

[nota: Em relação ao “Papai Noel”, ao menos nas grandes tradições espirituais (excluído, portanto, dessas considerações o Protestantismo - no âmbito do qual os fieis não compreendem a verdadeira natureza de determinados sucessos e fenômenos psíquicos que ocorrem entre eles, não se tratando de milagres tampouco de “Deus” a natureza verdadeira de muitos eventos sobrenaturais entre eles), o que há é aquilo que, no contexto hindo-budista, chamamos de "Joia que Realiza Desejos".

Esse resultado foi alcançado não apenas por uma combinação entre Vidya (Ciência Espiritual), Jnana (Conhecimento) culminando, através da Prática Espiritual diligente, em Prajna (Sabedoria), num processo de Ascese Interior-Espiritual; entram aqui, também, a Santidade, a Fé e a Pureza...

A mim, diante destas informações do Buddhadharma, sempre foi certo que os santos, por exemplo, são portadores, no seu âmbito cristão e conforme seu grau de elevação, de "Joias que Realizam Desejos" - vide feitos miraculosos dos grande santos cristãos registrados nas suas hagiografias (Santo Antonio de Pádua e Santa Teresa de Ávila, por exemplo)-; e isto, simplesmente, porque os grandes santos 'queimaram tudo' em prol da interação com a Realidade de Cristo e do Conhecimento Direto da mesma...

 

E qual poderia ser a correlação entre a "Joia que Realiza Desejos" e o "Papai Noel"? Diria que ela é o "Papai Noel" - mas seus requisitos são aqueles que indiquei aqui: Vidya, Jnana, Prática Espiritual diligente, culminando em Elevações interiores e Prajna, interagindo nesse desenvolvimento Fé, Santidade, Pureza e... Veracidade-Verdade.

 

Por isto, em vista das hagiografias, menciono os santos - eles têm, de acordo com suas elevações em Cristo, esse resultado.

 

"...A natureza de Deus, ela mesma, está acima e além da compreensão humana; seja o que for a natureza de Deus, ela está acima e fora da mente como nós imediatamente, ordinariamente percebemos a mente. De fato, me alinho com as Upanishads: "Não sei que O ignoro...". A própria palavra “Deus” não é Deus ... ninguém almeja a palavra mas aquilo que ela significa ou tenta indicar.". (post: "Em quê creem os budistas? Não-Dualidade e os cristãos".).

 

"...A Tanakh (Antigo Testamento) pode surpreender quem chega, com guerras e mortes - e haja vista o contexto cultural arcaico e difícil (sacrifício do primeiro filho a Moloch, relações incestuosas, etc). A religião da Tanakh era por concerto, mediação de algum homem santo ou sagrado (Melquisedec, Abrahão, Balaão) os quais faziam a "ponte" entre a comunidade e a Dimensão Sagrada e observado, também, que essa posição implicava procedimentos tais como ritos transmissíveis à comunidade (o que não mudou até o momento presente - daí falarmos em Lex Aeterna/Lei Eterna ou Sanatana Dharma).

As verdadeiras tradições espirituais são o resultado dessas "pontes" interagindo o domínio humano com a Dimensão Sagrada - as quais acabam implicando em linhagens e famílias espirituais. Acrescente-se a isto o esforço/desenvolvimento individual de cada um... (post: "Budismo Moderno. Igreja. Tantra. - alguma consideração...")

 

As experiências significativas e decisivas são produto da ascese-interior espiritual via itinerários autênticos, percorridos de forma diligente e idônea.

 

"Papai Noel" mesmo, fora da "Joia que Realiza Desejos", não existe. Uma "Joia que Realiza Desejos" é um epifenômeno, um resultado decorrente de elevações e/ou iluminação efetivamente alcançadas, realizadas – e conquanto possa haver, no contexto hindo-budista, procedimentos específicos objetivando o nível de elevação interior correspondente à “Joia que realiza desejos”, per si.

 

Outrossim, não obstante isto, em situações de idoneidade, a Fé pode "transpor montanhas" (mas, nesse caso, os sucessos com a fé dependem do teu recurso e compreensão interiores)...

 

No Cristianismo se diz que "os pedido feitos a Deus por crianças são atendidos mais rápido...".

 

Primeiramente, isto foi observado entre crianças religiosas - com regularidade/engajamento delas e de seus familiares em serviços espirituais.

 

Pode-se dizer que no Islam, no Judaísmo, no Hinduísmo e no Buddhadharma encontraremos a mesma coisa? Sim, se trata de uma experiência universal com as crianças. E sendo a mesma universal se refletirá, também, entre crianças protestantes, embora elas recebam informações parciais, limitadas ou insuficientes sobre a posição cristã - como a limitação biblicista/visão sola scriptura. Seja como for, em meio ao Louvor/Adoração protestante idôneo, coisas boas podem acontecer; lamentamos, todavia, da posição protestante, que algumas coisas boas logradas pelos fieis - no seu próprio nível, autênticas -, sejam acompanhadas, também, pela possibilidade de desenvolvimentos ruins, fenômenos psíquicos ou ainda mentalistas interpretados como fenômenos sobrenaturais decorrentes da fé em Cristo (e não da orientação pessoal dos pastores/ministérios).

 

[nota na nota: a possibilidade protestante é um resultado comprometedoramente amputado do Cristianismo tradicional; extirpado do que é repassado à massa de fieis protestantes as referências necessárias da espiritualidade cristã que se pautou e orientou pelas elevações de ordem interior-espiritual e pelo Conhecimento Direto da realidade de Cristo (a sabedoria cristã desenvolvida desde a Igreja Primitiva, se tornou mera “peça de museu”; a sabedoria cristã católica – como aquela desenvolvida através de São Boaventura, São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila -, um resultado que, embora atinente à pura espiritualidade cristã, proibido para pesoas protestantes por ser oriundo de “pessoas idólatras”).

 

Se o Cristianismo tradicional nos deu santos e santas, o Protestantismo nos deu pessoas de razoável conduta social, porém, afetadas em maior ou menor grau, pela limitação Biblicismo-Visão sola scriptura (somente a Bíblia) além dos resultados modernos que vemos hoje: a mamônica Teologia da Prosperidade, o uso nos cultos de técnicas mentalistas ou de recursos derivados da Programação Neurolinguística; o uso e abuso, pois desvinculado das considerações doutrinais e espirituais cristãs autênticas, através de alegações meramente verbais ou com sentido codificado sobre 'Deus', 'Cristo' e o 'Espírito Santo', 'Salvação da alma' e 'Vida Eterna', 'Igreja' e 'Corpo de Cristo', etc...

Restou aos protestantes idôneos, como Prática Espiritual, somente o nível do Louvor-Adoração, o qual é inicial e pode ser manipulado pelos homens com habilidade em conduzir ajuntamentos e cultos, mesmo sem formação teológica, consubstanciando-se tal situação num desastre espiritual para aqueles tentando alguma forma de possibilidade autêntica através da possibilidade protestante. Muitos feitos considerados extraordinários pelos protestantes não se tratam de milagres nem obras que possam ser atribuídas a Cristo, mas de resultados da ordem dos fenômenos psíquicos, nada tendo que ver com a realidade de Cristo, encontrando-se os protestantes, a meu ver, numa prisão mental e espiritual, consistente da construção retórica, biblicista e, em muitos casos, fundamentalista que os cerca, bem como, o domínio dos rebanhos pelas cúpulas...]

 

Na prática, as crianças, em seus esforços com orações, rosários, cânticos, louvores, mantras e dharanis, atingem conexão com o valor da Pureza e, dessarte, através dessa interação, algumas obras - e dentre essas obras, alguns feitos notáveis.

 

Certa vez, uma criança budista fez um pedido que não tinha como ser atendido: seu animal de estimação adoeceu e morreu e ela começou a recitar o mantra de Tara, na intenção de que o mesmo fosse ressuscitado. Os budistas sentaram com ela e explicaram, com termos budistas que ela conseguisse entender, que o animal havia cumprido sua jornada. Após, os adultos a apresentaram na sadhana de recitação do mantra de Tara e a menina acordou sem o pesar e o inconformismo pela perda de seu bichinho.

 

Uma parte das pessoas alcança livramentos, alívios, saídas e mesmo algumas obras miraculosas, como curas de doenças através da interação simplória, mediana ou excelente com a Dimensão da Fé interagindo com Cristo, com a Bem Aventurada Virgem e os santos e/ou com a Bíblia (a religiosidade bíblica) - para me ater aos conteúdos cristãos da interação via fé religiosa.

 

[nota na nota: A Dimensão da Fé é algo amplo mas, também, difuso e não deve ser confundida com a Dimensão Sagrada. Somente a Fé purificada interiormente, idônea e baseada em valores perenes e informação doutrinal verdadeira, atinge a Dimensão Sagrada - isto é: se a minha fé logra atingir o patamar correspondente ao nível de interação com a Dimensão Sagrada, o meu resultado interior já é benigno e desenvolvido numa direção sadia, já se podendo falar, nesses casos, não apenas em situações fortuitas - uma cura, um livramento, uma saída, uma melhoria material - , mas na presença de elevações interiores, ao menos, de ordem inicial. Se a carga de Conhecimento/Jnana não é excelente, entretanto a medida que existe interiormente é desenvolvida de modo a fazer o melhor com o que se tem em mãos...]

 

Admitindo que somos multifacetados e que as condições materiais que afetam a todos nós têm seus andamentos difíceis de se lidar - ou mesmo corrosivos -, entretanto, numa parte dos casos, há pessoas do Povo Simples que ainda são como o "Nieh Ch'ueh'" de Chuang Tzu, no Taoísmo ("Da importância de ser desdentado").

Certa vez, enquanto um mestre taoísta explicava a um rapaz desdentado os procedimentos necessários para a ascese interior-espiritual, no meio da explanação"o desdentado adormecera; a sua mente não podia 'mastigar' o cerne daquela doutrina"; mas o mestre taoísta observou que havia uma correlação interior benigna no rapaz desdentado, justamente com o valor da Pureza:

 

"seu corpo é seco,

como o osso de uma perna velha...

sua mente é morta,

como cinzas apagadas...

seu conhecimento é sólido...

sua sabedoria, verdadeira...

na profunda escuridão da noite,

ele vagueia livremente,

sem planos nem objetivos ...

quem pode se comparar

a este homem desdentado?".

 

Ou seja, aqui a questão não é o fato de Nieh Ch'ueh ser uma pessoa do Povo Simples/Commom People - ou um "Zé Povinho" -, sem relatórios-estudos tampouco transmissões, mas, antes, quanto a ele preservar incontaminada a sua alma/interioridade - enquanto que a maioria de nós segue preocupada, no mínimo, com segurança (outros ainda com conforto, interesses pessoais de posição e riqueza ou ambições e conquistas ainda maiores).

 

Interiormente, mesmo multifacetados, mesmo contaminados por diversos venenos, quando não somos desistentes totais dos valores éticos e quando não estamos tolhidos:

 

1) pela convicção de que a malícia vale mais à pena do que a ação ética;

2) e de que certos cálculos e manobras são preferíveis - por ter o condão de ajeitar ou resolver tudo - a agir de maneira aberta e com alguma liberalidade;

 

Então, setores da nossa estrutura interior ainda podem alcançar e conectar, em meio a algumas circunstâncias e/ou pressões com que estejamos envolvidos, alguma interação com o valor da Pureza; e dessa interação com a Pureza algum resultado/contrapartida benigno.

 

Isto pode ser assim se, interiormente, a postura interior natural das crianças - normalmente, sem cálculos nem cisões - ainda é viável através de nossas estruturas...]

 

Revisei o post com os complementos sobre o episódio Mandarava/Ahkon Lhamo. Aproveitando o gancho da Mandarava, acresci, também, alguma breve observação minha - posto que meu entendimento é que as postagens não devem ser tão extensas - sobre a questão, no âmbito do Vajrayana, da situação entre o Dalai Lama e o Geshe Kelsang e sobre Chogyam Trungpa...

Ricardo Kaliputra – 22/05/2016 .

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I – MANDARAVA. O caso Ahkon Lhamo (Catherine Burrughs).

 

O treinamento de Ms. Burroughs parece não ter amadurecido sua memória latente de dakini.

As confusões e traumas havidos em Sedona/Arizona, lamentavelmente para o ramo Nyingma Pa do budismo tibetano, a linhagem Palyul de seu “pai” espiritual Penor Rinpoche e os discípulos com interesse sério em Budismo tibetano, acabaram culminando em denúncia policial.

 

Ms. Burroughs foi fichada no Departamento de Polícia e o monge ordenado por ela – e seu assessor direto -, John Buhmeyer, preso por pedofilia praticada nas dependências do Kunzang Palyul Choling, sob sua direção.

 

Após esse furioso vendaval, ela encerrou as atividades em Sedona, deslocando-se para Poolesville-Maryland.

 

Ahkon Lhamo aparece listada no “Controversial ‘Buddhist’ Teachers & Groups” (www.viewonbuddhism.org). Nessa lista estão relacionados uma série de professores/instrutores desviados dos ensinamentos e da conduta budista, a saber:

 

Shoko Asahara – oriundo da seita budista heterodoxa japonesa Agon-shu, terminou por criar sua própria seita, angariando discípulos; envolveu-se com Budismo tibetano, Yoga, fez viagens à Índia dos Himalaias e visitas ao Dalai Lama. Mais tarde, demonstrou, publicamente, interesse pessoal pela obra de Nostradamus - o que indica a possibilidade de alinhamento de Asahara com seitas não-budistas de índole esotérica. Desse último período, começam a manifestar-se em Asahara demonstrações psicológicas do que pode ser caracterizado como delírio e fanatismo. Finalmente, é responsável pelo atentado havido no metrô de Tókio/Japão, com gás sarin em 1995;

 

Sangharakshita (Dennis Philip Edward Lingwood) – envolvimento sexual com os discípulos e abuso sexual de um menino indiano de treze anos;

Daisaku Ikeda – Sokka Gakai japonesa – alegado por ex-membros da seita, o estupro, por Ikeda, de uma seguidora budista que o auxiliava como secretária;

 

Lama Kelsang Chople (Gerhard Mattioli) – abuso sexual de discípulas, abuso financeiro e abuso de poder – na Holanda. Divulgadas as irregularidades na imprensa local além de procedida a instauração de regular investigação policial.

 

O material informativo na Wikipedia noticiando sobre eventos problemáticos/traumáticos com Catherine Burroughs/Ahkon Lhamo foi editado em 2010 e todos os pontos controversos removidos (o que chega a ser estranho, pois não se trata de calúnia ou difamação, mas informação que deveria ser objeto de uma retratação formal e pública: realmente Ahkon Lhamo foi fichada pelo Departamento de Polícia de Sedona/Arizona e seu assessor Buhmeyer preso por pedofilia, praticada essa com um visitante regular do centro de Dharma, nas dependêncis do mesmo - condenado Buhmeyer a 20 anos de prisão por isso -, não se tratando de invenções, calúnias ou difamações.).

 

Também, na alegação de “proteger o Nyingma” , contratou serviços advocatícios com a finalidade de “blindar” a reputação, ao menos na Web, do Kuzang Palyul Choling sob sua direção, proibindo críticas e bloqueando twiteiros, blogueiros, Facebook, etc. – todo o normal free-speech/free-press comum aos americanos. 

 

Restam poucos links e páginas valentes ainda a conversar e discutir sobre desvios, traumas e problemas ocorridos em seu Kunzang Palyul Choling, bem como sobre a perseguição judicial a comentários sobre eventos traumáticos ocorridos no mesmo. Um dos links que consultei inicialmente – o “www.americanbuddha.com” – preferiu se esconder ou desistir das divulgações, sendo que as páginas foram, aparentemente, removidas – uma pena: o www.theamericanbuddha.com trazia material valioso para as pessoas interessadas em Budismo e Hinduísmo não perderem tempo, esforços e dinheiro com posições movediças e mesmo miseráveis sob a bandeira dessas duas orientações.

 

E uma das fontes ainda disponíveis, com fácil acesso, é o livro “Stripping the Gurus”, de Geofrey D. Falk – o qual, sendo um boa obra inicial para verificação de irregularidades e doenças, peca no seu conjunto, todavia, pela falta de erudição da parte de Falk, para questionar doutrinas propriamente (pois tal situação requer um conhecimento melhor e mais aprofundado).

 

[nota: verificar ‘doenças’ e anormalidades do “supermercado espiritual” – com seus pseudogurus e pseudo-iluminados requisitando fidelidade e submissão, dinheiro e reconhecimentos daquilo que eles não têm e não são e, também, sexo – e, ainda, irregularidades e anormalidades no seio de setores de algumas das grandes tradições espirituais, é o esforço de Falk no “Stripping the gurus”. No geral, o esforço de Falk é imbuído de um viés cético. A palavra "seita", na sua acepção aflitiva para nós ocidentais (e para muitos orientais), corresponde não apenas a posições heterodoxas, mas distorções e, também, mentiras, fraudes e vigarices, implicando não somente em desvios mas reduções e inversões, com perdas significativas. Nessa consideração, verificar seitas é verificar anormalidades e doenças. Mas quanto a algumas situações lamentáveis em meio às grandes tradições espirituais, houve algumas análises críticas procedidas por Falk que demonstraram tratar-se de colocações feitas sem compreensão suficiente do cerne das doutrinas nem conhecimento adequado do contexto e do pano de fundo de alguns dos andamentos apontados: as críticas ao Dalai Lama indicam ser, boa parte delas, derivadas daquelas divulgadas pelo casal Trimondi ("The shadow of the Dalai Lama"); já as críticas contra a Madre Teresa e a doutrina católica indicam tratar-se da campanha de difamação promovida contra ela, tentando pintá-la como “religiosa fanática” e responsável por desvios financeiros – não perdoando Madre Teresa em relação a pequenos deslizes em algumas de suas colocações, tampouco, até o presente momento, embora se fale na hipótese “fortíssima” de desvios financeiros... para onde então foi o dinheiro confiado à freira?

 

(No Brasil nós sabemos, pelas informações do Imposto de Renda, quanto é e onde está o dinheiro dos líderes evangélicos e neopentecostais; porém, quanto seria e para onde iria o dinheiro de uma freira com voto de pobreza, vivendo não uma vida de opulência, regalada a caviar e champanhe, mas a vida de uma católica praticante e devota fervorosa?).

 

Não desmereço Falk – tampouco excluo ou desrespeito os céticos. Onde ele acerta – sensivelmente em relação ao “supermercado espiritual”, pseudogurus e pseudo-iluminados -, sua obra é um aviso salutar e merece elogios: tudo que livra as pessoas de perderem tempo com o que está comprometido, anulado e corrompido deve ser repassado e divulgado ao público interessado.

A questão é onde algumas de suas críticas podem ser desfeitas – não por serem dirigidas a falhas/desvios ocorridos em setores de algumas tradições espirituais, mas por haverem esclarecimentos e réplicas que devem ser levados em conta. ].

 

 

Em relação a Ahkon Lhamo a crítica de Falk – devido à censura às discussões e críticas na Web obtida por vias judiciais -, vem mesmo a calhar.

Essa posição de não querer ser criticado é, no mínimo, muito estranha: como já salientei, há falhas e traumas envolvendo os eventos com Ahkon Lhamo e o núcleo de budismo tibetano sob sua direção, Kunzang Palyul Choling, não se justificando a censura, senão por excesso, calúnia e difamação – mas nunca em decorrência de discussões na Web ou em outros ambientes acerca de situações que ocorreram, efetivamente, com Ahkon Lhamo em Kunzang Palyul Choling e quanto à normalidade de seu budismo tibetano.

 

Afinal, se o meu Budismo é verdadeiro, compete a mim mesmo, se questionado, comprová-lo; se possível, pela demonstração de obras notáveis; se não, ao menos, demonstrar sua validade com estudos doutrinais consistentes e conduta ética e espiritual de acordo com os ensinamentos budistas.

Dois dos principais e mais próximos monges de Ahkon Lhamo foram:

 

1) John Buhmeyer, ou “Palzang”, que cumpriu, em Sedona/Arizona-EUA, uma sentença de vinte anos em regime fechado, por molestar sexualmente, repetidas vezes, um menor de idade, nas dependências de Kuzang Palyul Choling – ele foi ordenado pessoalmente por Ahkon Lhamo. 

Antes de se juntar a Ahkon Lhamo, Buhmeyer já tinha antecedente criminal por abuso sexual de meninos. 

Ordenado monge, e próximo à Ahkon Lhamo, uma de suas primeiras medidas junto a ela, foi conseguir, justamente, a liberação do acesso a Kunzang Palyul Choling para a visitação de crianças.

Buhmeyer é reputado tratar-se de ghostwriter budista responsável pelas obras atribuídas e assinadas por Ahkon Lhamo sobre “Generosidade” e “Perfeição da Sabedoria”.

 

2) o monge budista David Williams, que se tornou, na prática, também seu assessor, sendo um fiel e ferrenho defensor do mito “Ahkon Lhamo” (uma dakini tibetana do século XVI)/”Mandarava” (consorte do Buddha Padma Sambhava - na verdade, todas as budistas nyingma trazem em si a semente de Mandarava e de YeshesTsogyal, ambas tântricas e consortes históricas do Buddha Padma Sambhava, a primeira indiana, a segunda tibetana).

 

 

Penor Rinpoche, responsável máximo pela linhagem Palyul do ramo Nyingmapa do Budismo tibetano foi o autor da proclamação de ser Alyce Zeoli/Catherine Burroughs uma tulku – a mesma informação foi declarada por Penor Rinpoche ao artista Steven Seagal (ser o mesmo o renascimento de um tulku).

Steven Seagal, na época de seu encontro com Penor Rinpoche, já era conectado ao Budismo Tibetana e tinha ligação pessoal com o lama Kusum Lingpa. Entretanto, Lingpa não confirmou a declaração de Penor Rinpoche e Seagal rompeu relações com esse lama, passando à tutela de Penor Rinpoche.

 

Catherine Burroughs foi entronizada em 1988.

 

 

 

Antes de focar na questão quanto a Catherine Burroughs ser ou não ser uma tulku, publico aqui, primeiramente, uma carta endereçada à mesma por seu mestre Penor Rinpoche.

 

Querida Ahkon Lhamo

 

É com grande pesar que escrevo esta carta, para informar-te que eu não tenho mais confiança em tuas ações.

 

Estou requerendo que tu te refreies de referir-se a ti mesma como uma pessoa realizada e que pare de enganar as pessoas, dizendo que tu és autorizada por mim a ensinar o Buddhadharma.

 

Tu és reconhecida por mim, isto é verdadeiro; mas eu venho me arrepender deste reconhecimento quando vejo o prejuízo que tu tens causado para os outros em meu nome.

 

Porque eu acredito que tuas ações são causadas por uma doença que tem infectado tua mente, encorajo-te a procurar ajuda médica, imediatamente.

 

O karma de conduzir erroneamente as pessoas em nome da linhagem Palyul ou em meu nome é muito pesado e te impedirá de alcançar um renascimento auspicioso.

 

Muitas vezes eu te disse isto, mas tu decidiste não me ouvir. Razão porque te escrevo esta carta.”. 

 

Paltrul Pemma Norbu [Penor Rinpoche]

 

 

O treinamento de uma criança identificada como tulku é algo especial, que começa em tenra idade, abrangendo não apenas o reconhecimento de objetos pessoais do tulku, mas

1) as transmissões,

2) a introdução nos estudos que corresponderão a uma enorme acumulação de conhecimentos budistas, repassados gradualmente,

3) nesse ínterim, as práticas para a necessária purgação de karmas que podem gerar regressão além de, a nível psicológico, as medidas necessárias para purgação dos kleshas (aflições mentais),

4) votos bodhisattva.

 

As crianças tulkus, alémdas transmissões inicais, começam por aprender a decorar textos sagrados budistas, até que possam recitá-los de memória.

 

[nota: Nas fileiras do Nyingma, Chagdud Tulku Rinpoche já teve seu renascimento num menino de origem tibetana de família Nyingma. Penor Rinpoche também já teve seu nascimento identificado num menino de sua linhagem, dentro das referências tradicionais - ambos os meninos estão em treinamento.]

 

No âmbito do Budismo, uma pessoa realizada que se apresenta a si própria e vende a própria imagem como se tratando de “uma pessoa realizada” ainda não alcançou a realização. Falta de temperança, falta de habilidade em lidar com os discípulos e suas dificuldades, favoritismo com pessoas escolhidas por motivos pessoais, excesso de preocupação com a posição de liderança, falta de equilíbrio no cuidado material e espiritual do Centro de Dharma, essas situações indicam que não estamos, ainda, diante de uma pessoa realizada mas, se muito, diante de uma pessoa que recebeu transmissões vajrayana e foi encarregada de cumprir uma função de liderança no núcleo de Dharma ou templo.

No que concerne a Ahkon Lhamo, há uma formação de eventos desviados, de situações mesquinhas ou tacanhas no dia-a-dia com a Samgha que deveria conduzir; ou, ainda, eventos desastrosos e com consequências miseráveis para as pessoas. Então, deve ser dito aqui que:

 

1) aceitando a hipótese de que Ahkon Lhamo/Catherine Burrughs foi mesmo uma dakini – pelo treinamento budista e pela natureza dos ritos tântricos, ao nível da sua normalidade ortodoxa, isto soa improvável (Chagdud Tulku é falecido – e seu atual nascimento deu-se em 2010, sendo, neste momento, ainda um menino -, mas quem puder visitar um tulku tibetano nativo pessoalmente, verifique se há a presença de muitos kleshas/aflições mentais).

Será, então, que o rito da transferência de consciência (Phowa) dos tulkus tem falhado nalgum aspecto? Ou, então, a existência pessoal do tulku falhou em algum ponto?

 

2) entretanto, há uma questão doutrinal (a qual corta Steven Seagal, também): elevar-se à categoria de tulku requer a realização plena dos Tantras budistas e tal elevação está, justamente, dentre aquelas que não regridem mais, pois se alçam acima dos seis reinos sujeitos à roda do karma e renascimento (isto não estorva a realização do rito Phowa, onde a decisão por um novo nascimento é pessoal e um ato de compaixão) – isto é: a realização interior-espiritual de um tulku, necessariamente, deve se alçar, superar a Medida-de-Nascimento-e-Morte, consistir em acumulações e realizações interiores que não podem mais ser perdidas nos altos e baixos do samsara (hoje se é rei, amanhã mendigo, hoje se é anjo, amanhã demônio ou fantasma, etc).

Por força da natureza do samsara, gerar karmas meritórios objetivando o bem dos seres sencientes é um procedimento nobre; mas ‘karma meritório’ não consiste em ações que trazem mais obscuridade, confusão interior, desvio das veracidades e, com tal desvio, desconexão/afastamento das verdades e validades.

Isto não se trata de nenhuma posição idealista – simplesmente, esta é a função das transmissões e sadhanas do Vajrayana…

 

Saliento que não estou sozinho (ou apenas com Kusum Lingpa) nessas considerações: as mesmas coincidem ou convergem, em parte ou no todo, com a de outros budistas vajrayana, inclusive da tradição Nyingma pa.

 

Não obstante algumas situações humanas que não tiveram a sequência de seus andamentos como seria o esperado e desejado, tenho consideração por Penor Rinpoche. A meu ver, tendo contato benigno com linhagens do Budismo Tibetano, algumas pessoas, por uma série de motivos de ordem pessoal e cultural, acabam por desperdiçar sua possibilidade com as transmissões vajrayana [*].

 

[nota: Na diáspora, os tibetanos se deslocaram para o Ocidente sem um conhecimento pleno dos nossos conflitos culturais e presença de militâncias bem como das mutações na percepção e interioridade humanas decorrentes das adesões. Do ponto de vista hindo-budista, o que se dá no Ocidente é uma ruptura cultural significativa com os valores tradicionais para a adesão e o engajamento em perspectivas e propostas modernistas/pós-modernistas, muitas delas enquadradas pelas grandes tradições espirituais como nihilistas, anti-metafísicas, anti-espirituais ou, ainda, inadequadas para a causa das elevações e da ascese interior-espiritual. Setores do ateísmo ocidental, por exemplo – o qual possui variações - têm propostas idênticas às do Charvaka hindú e, em alguns aspectos, do Jainismo (a posição ocidental mais próxima do Jainismo é o Catarismo), ambos impugnados pelo Buddha Shakyamuni, em seu tempo, como visões errôneas. As paramitas budistas e os votos bodhisattva são incompatíveis com manifestações flagrantes de egoísmo, exclusivismo e mesquinhez que estão já enraizadas como ervas daninhas no Ocidente. Por certo que o Mal não tem raça. No Oriente budista também se falhou nesse quesito das paramitas e votos bodhisattva – e também por lá se fomaram e existem enraizadas ervas daninhas. As cauaas, entretanto, lá e cá são as mesmas: alinhamento com posições nihlistas, má-fé e má-vontade para com a vida humana fora do próprio círculo pessoal de valorização e interesses a um nível comprometedor...]

 

Observem os leitores, seja como for (já que eu sou – ou quero ser – “ortodoxo/tradicionalista demais”), que tanto Chagdud Tulku Rinpoche quanto o próprio Penor Rinpoche, realizando o Phowa, ressurgiram – como tantos outros lamas, tulkus e os Dalai Lama – como crianças budistas de suas respectivas famílias/linhagens espirituais, exatamente dentro das prescrições tradicionais. 

 

Para uma leitura tântrica – budista ou hindú – é sabido que não é possível violar – por motivos que consistam em pura absorção no samsara, sem consideração nem correlação alguma com a Paramartha Satya ou a Realidade Última – os preceitos.

 

Enquanto parte dos egressos de Ahkon Lhamo são sinceros e honestos com os lamas e tulkus, a seu turno, os tibetanos palyul e de diversas outras ordens, embora concordando com os americanos e sendo compreensivos com seu sentimento óbvio de decepção e contrariedade, são comedidos nas ações exteriores.

 

Eu, porém, diria que os Nyingma já desligaram Ahkon Lhamo, independentemente do quanto suas atividades atuais logrem angariar novos seguidores e mesmo um grande número deles. Dessarte, ainda que ela se apresente com sendo “Nyingma”, sua comunidade budista Kuzang Palyul Choling (atualmente New Kuzang Palyul) já está, na melhor das hipóteses, na Via Mística: após a morte do líder espiritual da linhagem Palyul, Penor Rinpoche, Ahkon Lhamo simplesmente ignora o sucessor Karma Kenchu, não respondendo a nenhuma de suas solicitações.

 

Como muitos americanos, ela parece preferir autonomia plena, não normas da regularidade tradicional.

 

Assim a New Kuzang Palyul é, na verdade, já um desvio da verdadeira linhagem Palyul da família Nyingma Pa, uma seita new age esotérica do Budismo tibetano. Porém, em nossos dias – e com o falecimento dos lamas orientadores que lideravam núcleos de Dharma e templos - , lamento informar que o New Kuzang Palyul não está mais sozinho, restando aos interessados em Budismo tibetano (já que nós ocidentais, diferente dos tibetanos nativos os quais são bem enraizados em suas famílias espirituais, não somos polarizados mas tendemos a apreciar com o mesmo interesse e simpatia todas as linhagens tibetanas, inclusive as linhagens Bönpo.).

 

Em continuação, as transmissões não são brinquedos nem terapia ocupacional para despreparados ou inconsequentes; o treinamento e as instruções implicam uma maturação, a qual só ocorre em seu próprio tempo para cada um, individualmente. Em relação a isto, é sabido que Ahkon Lhamo permaneceu médium, por muitos anos, mesmo já entronizada…

 

Vi, pela web, algumas monjas budistas ligadas a Ahkon Lhamo; eles são o que eu chamo de “pessoas com orientação pelos referenciais da nossa cultura atual” (referenciais de nossa cultura cuja fundamentação são considerações materialistas e/ou hedonistas, ou ainda nihilistas, sem qualquer vínculo com esforços humanos por elevações-iluminação).

 

Ressalto, todavia, que não há, nessa linha de argumento culturalista, em qualquer ocasião em que a mesma se apresente, nem a percepção nem a compreensão de que os preceitos e ensinamentos estão estreitamente ligados/conectados com os processos que facultam elevações-iluminação, integrando, na verdade esse processo (tanto é que os mesmos estão fartamente documentados no Budismo, no Hinduísmo, no Catolicismo engajado com ascese-interior espiritual, no Sufismo e no Taoísmo).

 

Para a evolução cultural, interações humanas de ordem exterior e com absorção da vida humana no samsara podem ser – e efetivamente são - colocadas como não-estorvadoras dos processos que podem culminar em elevações-iluminação - enquanto que documentos tântricos hindús e budistas asseveram que o destino de pessoas sem as qualidades divina e heroica e sem alinhamento com as elevações pode ser o inferno Raurava.

 

Tal colocação com andamentos humanos de ordem exterior não possui comprovação histórica de resultados notáveis - pessoas santas, dotadas de elevações interiores ou iluminadas - em nenhuma das grandes tradições espirituais.

 

Um dos resultados imediatos da campanha em prol das alterações é não se dizer mais a verdade que consta nos documentos tradicionais para as pessoas por medo de ferir sensibilidades identificadas com posições da cultura hodierna (a qual não possui nem as elevações nem a iluminação como prioridades, objetivos ou orientação de vida - como encontramos nas culturas tradicionais -, e nem sequer em caráter secundário).

 

 

Outro resultado é que os budistas estão se tornando políticos: aceitam as ponderações, pleitos, reivindicações e protestos dos culturalistas mas exigem silêncio dos budistas que preferem se orientar pelo que consta dos documentos tradicionais -, o que compromete a sua Ética budista e não traz nenhum resultado em prol das elevações-iluminação.

 

Alunos budistas com background modernista/pós-modernista têm pressionado seus professores, roshis, gurus e lamas a aceitar a “evolução cultural”; mas quanto aos resultados notáveis, eles permanecem na esteira que orienta pelos parâmetros tradicionais.

 

No mais, atualmente, a informação que tenho é que, com Buhmeyer fora de ação e o encerramento (ou, que seja, a pausa) das atividades mediúnicas, agora, ao menos, Ahkon Lhamo tem se tornado budista, se enxergado como uma (quase trinta anos depois e com uma fartura absurda de transmissões vajrayana - repassadas a ela, em confiança, por Penor Rinpoche - que muitos gostariam de ter mas, numa situação normal, precisam percorrer, adequadamente e sem atalhos, o caminho da sadhana vajrayana para chegar a apenas uma parte das mesmas).

 

 

 

 

II – BREVE NOTA SOBRE O DALAI LAMA E A CONTROVÉRSIA DALAI LAMA x GESHE KELSANG e a New Kadampa Tradition (NKT)

 

Avançando mais um pouco sobre algumas situações com o Vajrayana e o Buddhadharma, em relação à lista da “Controversial ‘Buddhist’ Teachers & Groups” (www.viewonbuddhism.org), nela consta o nome do Geshe Kelsang da New Kadampa Tradition (Nova Tradição Kadampa), o qual era conectado ao mosteiro de Sera e a lamas como Thubten Yeshe e o Dalai Lama tendo tomado parte na Fundação para Preservação da Tradição Mahayana (FPMT em inglês)-, mas rompeu com o Dalai Lama.

 

Quem não deve, não teme”. Nenhum de nós é Cristo ou os Buddhas (Shakyamuni, Maytreia, Amithaba, Vairocana, Padma Sambhava); nenhum de nós é realmente perfeito. Se há fumaça, deve haver também fogo ou o que necessite ser aclareado e devidamente explicado.

 

O Dalai Lama, por exemplo, não é apenas o Dalai Lama, mas um budista e um ser humano.

Há críticas de cunho político à sua atuação administrativa como Dalai Lama, em Lhasa, inclusive de tibetanos. Em relação à sua atuação no Governo Tibetano no Exílio, por todos esse anos ele se viu, por ser o principal ícone da causa tibetana, na situação de abrir mão do Buddhadharma – recolhimento, práticas meditativas, sadhanas e transmissão de ritos na proporção integral que ele poderia, realmente, ter dedicado a isto – para engajar-se na causa tibetana worldwide e se envolver com todo o tipo de pessoas – muitas delas políticos e autoridades, além de personalidades, dentre os muitos países que visitou e, também, o pessoal da O.N.U.

 

E, nesse aspecto, se envolver com toda a carga de negatividade de ambientes movediços e pessoas não preocupadas nem engajadas, nas suas rotinas pessoais e condutas, com a causa da Iluminação ou, simplesmente, com a causa da veracidade das coisas associada a uma conduta ética real, efetiva.

 

Assim, o Dalai Lama, no interesse temporal da causa tibetana, lidou, constantemente, com mentiras pronunciadas com polidez, segundas intenções e interesses escusos, além de toda a covardia e inveracidades dos que preferiram e preferem atender as exigências anti-tibetanas da R. P. da China, em decorrência de vínculos de relações comerciais com a mesma.

 

A meu ver, mesmo com o staff enorme de todas as famílias tibetanas – em decorrência de encabeçar o Governo Tibetano no Exílio -, portanto, contando com uma multidão de conselheiros com excelente formação budista com os quais, também, poderia dividir algumas responsabilidades como a energia ruim de visitas a pessoas negativas ou miseráveis (apesar de sua posição social), enfim, as “cargas pesadas”; ainda assim, a situação do Dalai Lama, engajando-se com assuntos materiais da causa tibetana, era de sacrifício para sua condição de budista.

 

Adentrar os meios políticos é adentrar um mundo repleto de sinuosidades, tortuosidades, agressividade/violência e interesses pequenos/mesquinhos ou ainda escusos e subreptícios.

 

Há protestos e críticas públicas – por exemplo: o casal Trimondi em sua obra “The Shadow of the Dalai Lama” – quanto a algumas estratégias de ação tibetanas – como buscar aproximação com determinados tipos de pessoas, no interesse de fortalecer, a nível material e de influência na sociedade, a presença da causa tibetana (nesse caso, temos uma causa do Governo do Tibet no Exílio, não do Buddhadharma). Na prática, a adoção de condutas eticamente questionáveis – pois de cunho politico, calculadas e deliberadas para instalação e sedimentação de posições tibetanas no Ocidente.

De minha parte, acredito que basta manter em funcionamento idôneo, autêntico, a transmissão do Buddhadharma através dos Budismo tibetano e, para aqueles interessados, também do Bön.

 

Prefiro, então, calcular se há a possibilidade de algum desconto a favor dos tibetanos: e o primeiro deles consta dos relatórios da Comissão Internacional de Juristas (a remoção via massacres, destruição de mosteiros e religiosos, expurgos e violações da cultura tibetana de sua própria terra de origem). A cultura tibetana, não obstante os acordos avençados com a República Popular da China, devidamente documentados para que a mesma fosse preservada - bem como a liberdade religiosa -, foi expelida pelos chineses. Segundo: as relações políticas (e as constantes pressões anti-tibetanas chinesas) – e a necessidade de suporte para a causa tibetana – conduzem a essas posições.

 

O que temos, então, na condução da causa tibetana, é reflexo da situação política e ético-espiritual do mundo.

Se os tibetanos não adotarem algumas medidas, a nível político, no seu próprio interesse (causa tibetana e, também, do budismo tibetano), realmente sua causa comunal (o Governo tibetano no Exílio, cuja função maior hoje é, justamente, a preservação da cultura tibetana) deixará de existir, pois a R. P. China tem muito mais poder.

 

Quanto a Geshe Kelsang, minha posição pessoal é que, antes de reputar ou acusar a NKT (New Kadampa Tradition) como mais uma "seita do Budismo tibetano" (como se dá com o núcleo de Akhon Lhamo e alguns outros, inclusive não-listados na "Controversial 'Buddhist’ Teachers & Groups”), as pessoas devem procurar verificar a qualidade e validade de seu Vajradharma.

 

Apesar do lamentável “racha” entre Kelsang e o Dalai Lama – em princípio, por causa de Dorje Shugden -, e apesar de os ânimos estarem acirrados entre budistas de ambas as posições – sendo a New Kadampa Tradition rotulada e vista como uma facção ou seita, no sentido aflitivo da palavra “seita” -, a ordem budista de Kelsang repassa Budismo Mahayana e Vajrayana para os interessados, sendo as obras de Kelsang que me chegaram às mãos, sobre o Mahayana e o Vajaryana, transmissoras de ensinamentos budistas verdadeiros:

  • Clear Light of Bliss”,

  • Mahamudra”,

  • Budismo Moderno – em três volumes: I- Sutra: Compaixão e Sabedoria (Mahayana), II- Tantra, III – Preces” -, e

  • Guia à Terra Dakini.”.

 

Geshe Kelsang é oriundo do mosteiro de Sera e foi discípulo de Trijong Rinpoche, bem como amigo pessoal do lama Thubten Yeshe; quanto a esse último, ambos estiveram juntos no mesmo mosteiro e projeto de divulgação do Budismo Tibetano (Fundação para Preservação da Tradição Mahayana – em inglês: FPMT), tendo o Geshe Kelsang, inclusive com recomendação de Thubten Yeshe, se fixado em Inglaterra.

 

A amizade ente Kelsang e Thubten Yeshe não era imotivada: ambos se tratam de excelentes professores do Vajrayana.

Antes da ruptura, Kelsang foi aprovado numa avaliação requisitada pelo próprio Dalai Lama, para aferir seus conhecimentos sobre o Buddhadharma e sua condição de “Geshé” (um grau monástico superior, apto para instruir, formar e repassar transmissões para monges e monjas) – embora nesse procedimento estivesse subentendido que o desejado era mesmo verificar as posições pessoais de Kelsang quanto a Dorje Shugden.

 

Kelsang entrou em conflito com o atual XIV Dalai Lama, Tenzin Gyatso por causa da proscrição levada a cabo pelo Dalai Lama da adoração a Dorje Shugden – sendo por isto, obviamente, expelido.

 

Ressate-se que o Dalai Lama atual teve como um de seus dois instrutores pessoais justamente o guru de Kelsang: o renomado monge gelugpa Trijong Rinpoche.

 

Trijong Rinpoche (1901-1981) era fortemente ligado à adoração de Dorje Shugden e a transmitiu a seus pupilos, dentre esses pupilos, Geshe Kelsang e o atual Dalai Lama, o qual aderiu à mesma, incluindo-a em sua rotina de práticas noturnas diárias por muitos anos.

 

Recuando um pouco na história tibetana, Dorje Shugden foi escolhido e propiciado, especialmente, como protetor da Ordem Gelugpa, levando-se em conta a excessiva influência sobre a sociedade tibetana das famílias Nyingma-pa (de chapéus vermelhos) de Budismo tibetano. A ordem Gelugpa (dos chapéus amarelos - originalmente, a antiga Kadampa) deriva de Atisha e foi reformada por Tsongkhapa; a mesma se organizava em mosteiros com forte formação Mahayana e Vajrayana, enquanto que os Nyingma, além de serem os primeiros budistas tibetanos, “filhos” espirituais do Buddha Padma Sambhava e de sua consorte (e mãe do Vajradharma), Yeshes Tsogyal, contavam e contam com uma estrutura que abrange pais e mães de família.

 

A partir de 1976, com a formação do Governo do Tibet no Exílio, o atual Dalai Lama passou a desencorajar a adoração a Dorje Shugden, havendo indícios de que sua decisão se deu por questões políticas (sem vínculo espiritual ou metafísico), a fim de viabilizar integração com as famílias tibetanas das várias linhagens, particularmente com as vertentes Nyingma.

A meu ver, o Dalai Lama sacrificou o serviço espiritual a Dorje Shugden em vista do escopo dessa integração.

 

A decisão, inicialmente interferindo no serviço espiritual e exigindo sua interrupção, desagradou a muitos dentro da própria ordem Gelugpa, dentre os quais, membros da hierarquia gelug que eram partidários do próprio Dalai Lama.

 

Mas o Dalai Lama não se deixou demover, antes reforçou as medidas, para determinar a exclusão daqueles vinculados à propiciação e adoração a Dorje Shugden de qualquer posição vinculada ao Governo Tibetano no Exílio bem como de seu círculo de pessoas próximas e discípulos.

 

[nota: Na comunidade nativa tibetana estabelecida na Índia, partidários do culto a Dorje Shugden - e, também, o próprio Kelsang -, procuraram reagir, reacendendo, na reação, a controvérsia quanto ao Dalai Lama provir de uma linhagem desviada da verdadeira Gelug, situação formada no Tibet a partir da escolha do 5º Dalai Lama, cuja escolha apresentou dois candidatos: Tulku Drakpa Gyaltsen (1619-1655) e o eleito para o cargo, Lobsang Gyaltso (1617-1682). Em 1642, o V Dalai Lama tornou-se, também, uma liderança temporal na sociedade tibetana. Em 1682, Tulku Drakpa Gyaltsen, após derrotar Lobsang Gyaltso num debate metafísico, foi encontrado morto, um dia depois, com um cachecol amarrado a sua garganta. ]

 

A exclusão e, mais adiante, proscrição do serviço espiritual a Dorje Shugden e a exclusão de pessoas vinculadas à sua adoração de qualquer participação na formação do Governo Tibetano no Exílio, foram duas medidas drásticas adotadas pelo Dalai Lama na liderança do Governo Tibetano no Exílio.

 

Em 1996, o Dalai Lama, formando uma espécie de “pente-fino”, passou a exigir a renúncia formal da continuidade na adesão às práticas envolvendo Dorje Shugden e recusou dar iniciações vajrayana a quem fosse de seu conhecimento que as mantivesse.

 

Em 15 de julho de 1996, o Governo Tibetano no Exílio emitiu um comunicado com a seguinte orientação:

"Os departamentos governamentais e suas subsidiárias, bem como as instituições monásticas em funcionamento sob o controle administrativo da Administração Tibetana Central, estão estritamente proibidos de propiciar esse espírito."

Tibetanos individuais”, foi explanado, “devem ser informados dos deméritos de propiciar esse espírito, mas é-lhes dado liberdade para decidir como eles prefiram.”.

 

Ainda, prosseguindo com o pente-fino, o Dalai Lama exigiu ao abade do mosteiro de Sera a relação de nomes de monges ainda vinculados às práticas Dorje Shugden. Finalmente, o último prior/titular do trono de Ganden foi indicado pessoalmente pelo Dalai Lama e deu prosseguimento às medidas excludentes.

 

Em 1991, Geshe Kelsang fundou a New Kadampa Tradition em Inglaterra.

 

[nota: Obtive esse itinerário de informações junto ao artigo “Two Sides of the Same God”, do professor de Budismo da Universidade de Michigan, Donald S. Lopez Jr.]

 

Se pode dizer que eu defendo o Dalai Lama – em relação à Causa Tibetana, estorvada e, em aspectos importantes, inviabilizada pelas pressões chinesas - e o Geshe Kelsang - no que concerne a Dorje Shugden? Eu diria que sim. Todavia, na causa envolvendo Dorje Shugden, as posições dos filhos de Tsongkhapa se tonaram incompatíveis.

 

A maneira como o Dalai Lama encaminhou sua decisão de desvincular-se das práticas e adoração a Dorje Shugden – decisão pela proscrição e exclusão de pessoas - é um ponto movediço e que deveria ser revisto: a situação dos tibetanos que conseguiram fugir de sua terra em decorrência da invasão chino-comunista do Tibet gerou pressões e premências fortíssimas que exigiam resposta e posicionamentos. As pressões chinesas contra todos os tibetanos, dentro e fora da diáspora, não admitiam nem admitem qualquer recurso, contestação/réplica ou moderação, composição amigável ou acordo…Ao final, ganhou-se, no interesse do Governo Tibetano no Exílio, a calculada e almejada integração com Nyingma, sacrificando, porém, de maneira excludente, exagerada e drástica, aqueles integrados e enraizados na orientação e práticas com Dorje Shugden - os quais foram cortados e marginalizados.

 

Nessa história, embora houvessem decisões importantes a serem tomadas, a Ética Budista foi ensombreada e preterida...

 

Seja como for, levando-se em conta as situações de fato que temos hoje, minha posição é pela moderação: se não for possível uma reconciliação ou alguma forma de acordo entre os budistas – devido a esse problema da ruptura entre o Dalai Lama e Kelsang -, que, ao menos, quando for oportuno, as comunidades budistas se apaziguem e respeitem mutuamente (por certo que isto implica àqueles tibetanos nativos com Dorje Shugden não se preocupar com os rumos do Governo Tibetano no Exílio, mas criar seu próprio caminho e priorizar o foco na preservação e continuidade do Buddhadharma seja através da NKT seja através de outros núcleos de Dharma).

 

Pessoalmente, espero que isto um dia termine e haja paz no Buddhadharma, ainda que não possamos concordar em tudo.

 

A última informação que me chegou é que há ações do Dalai Lama no sentido de uma moderação. Isto porém, se consolidado, deve ser repassado a todas as comunidades de Budismo tibetano para normalizar as relações entre os budistas.

 

 

III – CHÖGYAM TRUNGPA.

 

Adentrei nessa nota para falar do Tantra hindú, mas avancei para o Vajrayana. Vai, então, um último caso – resumido – sobre o Tantra budista, envolvendo Chogyam Trungpa.

 

Afirmar, que Chogyam Trungpa era “drunkyard and womened” – alcóolatra e mulherengo – trata-se de informação verdadeira? Sim, trata-se… e dizer o contrário não fica bem, é faltar com a verdade. Melhor dizer que ele era tântrico.

Entretanto, a questão com Trungpa não são essas características nem a Crazy Wisdom/Sabedoria Louca.

Crazy Wisdom pode ser louca, o Tantra pode ter alguns desenvolvimentos, para muitos, considerados loucos… mas nem um nem outro são anti-tradicionais nem desconectados das validades superiores. Mas o ensinamento que temos é que o Tantra "usa o mundano”. Usar o mundano não significa ser mundano; não há estofo nem subsídio em nenhuma posição-resultado cultural sem esforço nem engajamento pela Iluminação – e pelos valores que a mesma necessita – para o surgimento dessas possibilidades…

 

O Tantra - budista e hindú - usa o mundano em favor de posições metafísicas e não em prol da mera absorção em posições que aprisionam à Medida de Nascimento-e-Morte, ao samsara…

 

A meu ver – é o meu ponto de vista – , o problema com Trungpa começa com parte de seus discípulos ocidentais e já desde a Escócia: abraçando com generosidade e liberalidade os discípulos, ele não quis cortar posições ocidentais sem vínculo com buscas interiores-espirituais autênticas, acabando por permitir que certas posições passassem, se agregassem e, por fim, se integrassem aos seus projetos ocidentais com o Vajradharma; e isto estava no convívio de Trungpa.

 

A carga de negatividade decorrente dessa permissão/abertura para com os alunos ocidentais é o resultado que contribuiu para estorvar e, não obstante grandes êxitos logrados por Trungpa, manchar a obra em dado momento de sua trajetória. A meu ver, aqui está um dos fatores determinantes para situações que se formaram, parecendo “tântricas” e “Sabedoria Louca”. [*]

 

[notas:

1) A Ética budista tem diversas frentes de ensinamentos além do Vinaya, como o "Bodhicaryavatara" (ou "Bodhisattvacharyavatara" - "Caminho de vida do bodhisattva") de Shantideva, a "Ratnamala" ("Grinalda Preciosa") de Nagarjuna, o "Sadharma Pundarika Sutra" ("Sutra do Lótus"), do nobre bodhisattva Avalokiteshvara, filho do buddha Amitabha, cujos ensinamentos nunca tiveram paralelo em desenvolvimentos ocidentais, senão no ensinamento da Caridade cristã e ensinamentos cristãos como aqueles contidos, por exemplo, no "Sermão da Montanha".  

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2) Se alguém quer entender melhor a combinação Sabedoria Louca-Tantrismo Budista, leia a história do Buddha Drukpa Kunley. Kunley era da família Kagyu, sendo, na verdade, um dos três Herukas/Loucos Divinos surgidos na família de Marpa, Milarepa e Gampopa. Mas, ao lê-lo, verifiquem uma coisa: anotem as passagens nas quais o buddha Kunley cortou as pessoas - são bem poucas; verão que a Sabedoria Louca é extremamente justa e não altera os parâmetros tradicionais, mas está integrada a eles... Por sinal, um dos mais loucos buddhas foi também um dos que, nos relatos a seu respeito, mais utilizou o mantra da misericórdia "Om Mani Padme Hum", do nobre bodhisattva Avalokiteshvara - equivalente a um tântrico ocidental rezar, sempre que tivesse oportunidade, o Pai Nosso e/ou a Ave Maria.

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3) conheço um lama tibetano da Costa Oeste dos EUA - vem a São Paulo de quando em quando - que toca seu trabalho com o Vajradharma de modo semelhante a Trungpa.

Numa conversa pessoal, questionei-o sobre a situação da Prática Espiritual. Explicou-me que seus discípulos ocidentais realmente têm apresentado dificuldades - no Yoga e Pranayama, na aprendizagem do Dhammapada, etc. - e que, para aqueles engajados em perspectivas progressistas/culturalistas, realmente os avanços, conquanto existam, se dão num outro nível ou faixa muito inferior (ao nível terapêutico, diria eu)...

Apesar disto, quando de nossas últimas conversas, ele, como Trungpa, estava confiante que os resultados benignos adviriam do engajamento no Vajrayana – de minha parte, expus-lhe minha posição quanto à devolução dos ritos tântricos por incompletude da Base Ética e insuficiente compreensão metafísica, não havendo alinhamento interior por parte de certos indivíduos com as Estruturas dos ritos (se meu argumento, para alguns, pode parecer risível ou desprezível, diria que mais risível, a meu ver, é não se localizar, em milênios das grandes tradições espirituais, nem um único ser humano que tenha alcançado elevações e/ou iluminação - ou ainda santidade - e que tenham se pautado pelas orientações da nossa cultura atual com seu nihilismo, pobrezas, mesquinharias e misérias. Contudo, sei de muitos ocidentais e orientais, que não têm dúvida dessa última observação).

 

Entretanto, os discípulos conseguiram conduzir esse lama a aceitar a correlação falsa, por exemplo, entre Feminismo Ocidental e Tantra - o que é um equívoco: o Tantra hindú e budista se referem ao Feminino Metafísico (Kali, Durga, Tara, Uma, Bhairavi, Parvati, Kurukulla, Vajra Varahi, Vajrayogini, Vajradathu Ishvari. Chinnamasta), enquanto que o Movimento Feminista ocidental, a partir dos anos 60, deslocou-se do pleito de direitos civis legítimos das mulheres para se tornar mais marxista e materialista, desconstrucionista em relação à cultura não-marxista e substancialista em relação à condição da mulher (o que, pelos ensinamentos budistas, se trata de um erro já que, conforme o karma, hoje quem é homem, amanhã pode ser mulher e vice-versa; se homens errarem com as mulheres, isto poderá, também, implicar em nascimento ulterior sem abertura, facilidade e/ou favor com as mesmas; a mesma regra podendo cumprir-se em relação às mulheres com os homens). O Tantra é complementaridade entre opostos - dentre esses opostos, a união mulher-homem, yoni-linga, shakti-shakta, yab-yum; a seu turno, doutrinações e premissas feministas, na linha pós-anos 60, têm orientações que culminam numa separação, segregação, divisão entre homens e mulheres, e que induz mulheres a "castrarem" (psicologicamente, mentalmente) seus homens - enquanto que no Tantra a mulher não apenas é valorizada, mas honrada e vista como divina.

 

Não há correlação direta - senão de incompatibilidade e mesmo de oposição - entre o Feminino Metafísico e o Feminismo Ocidental (especialmente aquele a partir dos anos 60), mas lamas como ele têm sido empurrados por alunos ocidentais progressistas a aderir à causa "contra o Patriarcalismo" - rejeitando o Patriarcalismo mesmo nos casos em que, não obstante a situação cultural exterior, há, todavia, posição com as validades e a situação cultural - conquanto de cunho patriarcal -, não é iníqua. Isto é: descartando a informação acerca de qualquer resultado notável espiritual e/ou cultural surgido em meio à culturas de vertente patriarcal não por serem falsos ou iníquos, mas pelo simples fato de surgirem em ambientes de cultura patriarcal, o que não deixa de ser uma outra forma de estupidez, por sinal de qualidade extremista...

 

As grandes tradições espirituais, unanimemente, se pautam na Ascese Interior-Espiritual sobre uma Base Ética. Nesse conjunto, a presença de siddhis [habilidades/faculdades supranormais] são apenas, para a maioria dos seguimentos, uma decorrência ou, numa minoria deles, um resultado secundário a confirmar destrezas (por exemplo: destrezas no Yoga), mas nunca um fim em si mesmo.

A Iluminação e as Elevações estão intrinsecamente ligadas à construção pessoal efetiva da Base Ética. 

 

A Ética budista - com posição com a Mahakaruna/Grande Compaixão e Dana (Dar/Caridade) - como a Caridade cristã, é caracterizada pela abertura e preocupação efetiva com todos.

 

A Ética budista é baseada nas Paramitas (Perfeições) e nos votos bodhisattva. Embora a metafísica budista seja elaborada, minuciosa e refinada, exigindo um engajamento responsável e diligente e podendo chegar - conforme a rota que uma pessoa budista decide percorrer -, a um altíssimo grau de instrução, eis que a Ética budista, baseada nas práticas de mérito (oferenda dos benefícios que possam advir de sadhanas, retiros, práticas e recitações diárias, além de ações altruístas em diversos níveis e setores da vida humana), é aberta de modo a abranger todos os seres sencientes - e não apenas as pessoas do meu grupo, ou núcleo ou aqueles iniciados que fazem parte da minha linhagem/família espiritual ou somente as pessoas com transmissão/iniciação. Nesse aspecto, "todos os seres sencientes na prisão da roda do samsara" implica não apenas a preocupação com os "mocinhos", mas também com os "bandidos" (o que, aliás, é o ensinamento de Cristo, Amithaba e de Shantideva), não apenas interação benigna com os anjos, mas interação adequada com os demônios.

 

Assim aos não-familiarizados com os ensinamentos budistas, cumpre informar que "desejar o bem dos seres sencientes" é uma posição altruísta budista desejando, em última instância, o seu livramento da Roda do Samsara - e não a sua absorção na mesma.

 

Nesse caso, embora haja muitas situações humanas e existenciais, o altruísmo budista não se desvincula significativamente da Sabedoria que orienta o Buddhadharma – e uma ação altruísta é algo que pode envolver várias posições: pode ser, justamente, a caridade material aos necessitados, desamparados e enfermos; também a ação espiritual das oferendas de mérito, objetivando a melhoria da rota dos seres sencientes nas seis esferas do samsara, incluindo-se, aqui, ainda, que eles possam também alcançar, melhorando seu karma, colocação e engajamento nas metas superiores.

 

Do ponto de vista de uma compreensão budista, quem possui transmissões cujo objetivo são elevações e iluminação deve ser grato por isto e não menosprezar quem não as possui - mas engajar-se nas práticas de mérito para liberação de todos aqueles imersos (devido à Avidya e às ações sem o suporte e orientação da Sabedoria que objetiva a Liberação) na prisão da roda do samsara.

 

Quando sentado sob a copa da árvore Bodhi, no processo que desencadeou em sua iluminação, o Buddha Shakyamuni contemplou, num processo de visão interior, todos os seus nascimentos. Daí a posição da metafísica e ética budistas com a situação da existência dos seres sencientes no samsara. Como o samsara está sujeito à Lei do Karma, o mesmo é uma prisão - isto é: por causa da Avidya (Ignorância), hoje quem é divino amanhã pode ser um simples fantasma, um ser condenado aos infernos ou um demônio; hoje quem é rei, amanhã pode ser um simples mendigo; hoje quem está no alto ou no topo, amanhã pode estar na base ou abaixo da mesma nos estados de restrição, num processo interminável. Embora eu possa estar numa determinada família espiritual, favorecido por muitos ritos, todavia, se fracassar significativamente, as perdas podem consistir não apenas em esgotamentos e anulação de qualificações com os ritos almejando elevações mas, também, em inversões – dessarte, consistir em perdas integrais (particularmente, se a Base Ética não foi realizada); daí a importância da Ação associada a uma Base Ética consistente e orientada por uma Sabedoria almejando a Liberação e as elevações.

 

Farsas, enganos e auto-enganos, atitudes movediças e auto-ilusões, assimetrias iníquas ou truques foram descartados pelos ensinamentos dos Buddhas e de todos os justos e iluminados que passaram por esta Terra.) ...]

 

O filho de Trungpa ainda era menino (e em treinamento); assim, Trungpa precisou escolher dentre os discípulos, quem pudesse sucedê-lo. Um dos traumas com o núcleo de VajraDharma, em Boulder/Colorado veio à tona, justamente, com o discípulo escolhido por ele para este fim: o norte-americano Osel Tendzin – no final, transmitiu HIV para alguns discípulos e esses para algumas discípulas, gerando forte escândalo em Boulder e worldwide, bem como o consequente abalo de credibilidade (este episódio foi publicado por Falk, no “Stripping the Gurus”).

 

"Trungpa was like Daddy giving everyone permission to have sex and still feel spiritual about it," said one longtime member who left the group two years ago and asked that his name not be used. (“Trungpa era como Papai dando permissão a todos para ter relações sexuais [nas dependências do Vajradhatu Center] e sentir-se espiritual acerca disto” - disse um membro antigo que deixou o grupo há dois anos atrás [da publicidade do escândalo envolvendo Osel Tendzin]

 

Sobre Trungpa, há as observações de Hugh B. Urban no “Tantra, Sex, Secrecy”, dignas de serem conferidas.

 

Um outro membro antigo, Glenn Dorskind, de New York, afirmou à imprensa que Osel Tendzin sabia do resultado positivo para HIV, mas ainda ssim prosseguiu mantendo relações com discípulos.

 

"If in fact Osel Tendzin was aware he had the virus and continued to have unprotected sex, he has broken the trust and hearts of many human beings,". Glenn Dorskind, a former sect member who now lives in New York

 

(“Se de fato, Osel Tendzin eatava cônscio que ele tinha o virus e continou tendo relações sexuais desprotegidas, ele quebrou a confiança e corações de muitos seres humanos”...)

 

Quanto ao filho de Trungpa, Sakyong Mipham, estive numa palestra com o mesmo no núcleo de estudos Shamballa da Vila Mariana, em São Paulo, nos anos 90. Naquela oportunidade, longe de ser um badboy (como o pai foi assim reputado), o vi como um budista tibetano tradicional – estudou com Dilgo Khyentse Rinpoche e também com Penor Rinpoche. Me afastei do núcleo Shamballa, não tendo tido oportunidade de revê-lo. O que sei hoje é que ele dá continuidade ao legado de seu pai (Naropa Institute, Shamballa Meditation Centers), e, no final, aderiu pela continuidade de manutenção de andamentos e posições não-tradicionais em meio à obra de pai – tais posições estorvam o esforço pelas elevações.

 

Não sou extremista. Mantenho meus livros de Chogyam Trungpa e retenho seus ensinamentos tradicionais; cheguei a visitar mais algumas vezes, convidado por um amigo psicólogo, o Centro Shambala da Vila Mariana, São Paulo. Não sou roshi nem lama nem acharya, ok? Por minha experiência pessoal, meu testemunho é que nada tenho que desabone o núcleo de estudos Shambala nem seu ensinamento; entretanto, estando com eles, não me foi repassado nenhum ensinamento propriamente modernista, politicamente correto ou anti-tradicional e me foquei apenas em Budismo tibetano. E reconheço que minha interação é de uma porção de visitas, hoje, antigas - pois dos anos 90…

 

Os eventos havidos em Boulder/Colorado são de domínio público (pelo aspecto daquilo que é o Budismo Tibetano, poderiam ter sido evitados; outrossim, pelo aspecto de certos rumos e decisões do próprio Trungpa, sucedeu o que tinha plenas condições para ocorrer…).

 

A questão quanto à abertura e permissão por Trungpa de certos posicionamentos entre alunos ocidentais – britânicos e americanos – sem conexão com a busca natural e tradicional por uma vida interior-espiritual, tratar-se – uma tal liberalidade/generosidade – de responsável por alguma carga de negatividade ou mesmo kármica que tem alguma forma de correspondência com eventos estorvadores ou ruinosos nos projetos de Trungpa é meu ponto de vista pessoal, embora baseado em estudos dos documentos budistas e em meu esforço para compreender, como muitos, os resultados da Prática Espiritual.

 

Há, ainda, dificuldade por parte de alguns, em identificar de que modo negatividades nascem onde deveria haver, em princípio, um esforço contínuo por auto-conhecimento/auto-descobrimento e elevações.

 

Da perspectiva da Prática Espiritual, não há como chegar às elevações desligando os ensinamentos e posições que compõem/integram as suas fundações; por esse encaminhamento, convulsões e esvaziamentos são de esperar (o guru não tem como carregar sozinho, nas suas costas, tudo o que é decorrente da conduta pessoal de alunos, tampouco o que compete a cada um carregar por si próprio; por outro lado, se o guru falha, há a tendência de os alunos/discípulos tombarem junto com o mesmo).

 

No caso envolvendo Trungpa houve um postura otimista e confiante de sua parte para com os novos círculos de relações… e, também, uma aposta nos valores tântricos, mas, ao mesmo tempo, anulando algumas posições e ensinamentos milenares do Tantra [*].

 

Como já salientado aqui, muitos tibetanos, vindos de fora, não se aperceberam do declínio que se dá no Ocidente – afastamento das perspectivas tradicionais; envolvimento de alguns grupos com pesquisas/interação com forças obscuras; consolidação e continuidade das reduções e desvios refletidos, também, na alteração cultural (não sejamos cegos: a alteração cultural não prejudica nossa coexistência nem nosso convívio e respeito mútuo, mas prejudica a construção interior-espiritual que almeja elevações. Meu convívio com pessoas de diversas orientações – muitas delas infensas/hostis a posições tradicionais -, da parte que me concerne, é simples e normal).

É possível amizade entre nós; o que não é possível é repassar transmissões e posições tradicionais sem que as pessoas tenham em si mesmas posição para carregá-las adequadamente…

Em continuação, na prática, ninguém é obrigado a concordar ou transigir com posições tradicionais, mas a cultura que se dedicou integralmente às elevações e à Iluminação é a tradicional, não a moderna/pós-moderna, caracterizadas justamente por uma ruptura e  redução nas perspectivas para o homem…


[nota da nota: quem se der ao trabalho de se debruçar sobre os documentos tântricos hindús e budistas, verificará que o Tantra não valoriza nem avaliza condutas desprezíveis, sorrateiras, execráveis, vis ou iníquas, covardia e mesquinhez, e, não obstante a posição do Tantra contra restrições e o modelo ascético baseado em austeridades, o Tantra não valoriza, também, a crueldade, a depravação e a perversão.

 

No Tantra hindú os desenvolvimentos esperados são o Vira/Heroi e o Vidya/Divino; quanto aos Pashus (“animais”, para se referir a “homens-animais”) o esperado é que eles, encontrando engajamento/recrutamento no Tantra, não permaneçam como tais, mas alcancem esses dois desenvolvimentos; e no Tantra budista o desenvolvimento esperado é o Vajrasattva…]

 

 

O projeto Shamballa de Trungpa (ver: “Shamballa: A trilha sagrada do guerreiro”), é focado na abordagem psicológica – Trungpa desenvolveu um ramo secular do mesmo, objetivando dar condição a ocidentais que não querem tomar um hábito budista, se envolver com votos, vínculos ou compromissos religiosos; assim, no Ocidente, o Shamballa passou a ser desenvolvido em dois níveis: um espiritual remetendo a posições tradicionais e outro secular, desenvolvido no contato de Trungpa com o Ocidente.

 

Se podemos escolher e seguir nossa vocação e se nisto somos sinceros conosco mesmos, isto é uma grande coisa. Cada qual é livre para decidir o que é melhor para si mesmo. O método Shamballa é uma grande abordagem psicológica, propõe um percurso valioso (“a trilha sagrada do guerreiro”), mas, ao menos na sua versão secular – a que tive contato nos anos 90 – não é o Caminho Vajra [*].

 

Fundamentado na abertura e na redução das barreiras ou muralhas ego-superprotetivas/ego-separativas, o método pode conduzir, com o complemento das práticas meditativas, a uma melhoria e cura interior.

 

 

Nos EUA,  os alunos na ala secular – sem envolvimento com os compromissos do Budismo – já se dividiram nas sessões de prática – a pedido daqueles que comungam com posições e discursos da cultura hodierna -, no que foram atendidos.

Isto para mim não surpreendeu, nem considerei nenhuma novidade ou algo incrível.

 

Há uma tensão entre ensinamentos de nossa cultura e ensinamentos tradicionais budistas; Trungpa procurou atender seus alunos; o nível secular viabiliza a interação com aqueles com adesão a orientações não-tradicionais.

 

A questão é que, na via secular, em tendo de abrir mão ou adaptar os ensinamentos/preceitos – esses últimos sendo parte integrante dos processos objetivando elevações -, adentramos a rota do nível terapêutico, havendo comprometimento das elevações [**]…

 

[nota: (*) Não querendo se envolver com Budismo – ou com os vínculos e compromissos que isto implica -, não há, também, como receber as transmissões Vajrayana – salvo as práticas e/ou sadhanas introdutórias – , posto não haver cumprimento dos requisitos iniciais para receber as transmissões de modo adequado (a característica do Tantra budista sempre foi e tem sido um contundente treinamento preliminar – não apenas uma grande acumulação de estudos, mas de práticas preliminares objetivando formar uma tal estrutura que, tomando os votos samaya e avançando pelo Tantra, esse avanço possa culminar nos objetivos últimos do Vajrayana. Os votos samaya, por exemplo, não são um mero compromisso formal, que possa ser rompido ou adaptado, sem com isto haver reduções ou perdas. Realmente o Treinamento Vajrayana é para viabilizar as suas transmissões e o Vajrayana, de per si, é para quem o tem dentro de si mesmo (portanto, para quem “veste a camisa”)…

 

(**) Não estou, com essa informação, a impor o que quer que seja a ninguém –  isto não funciona. As pessoas são livres para escolherem o que entendem ser bom para si mesmas. De minha parte, não sou guru nem de mim mesmo; por outro lado, não me satisfaço com o nível da pura convicção. Não se sabe, em nenhuma grande tradição espiritual, de elevações/iluminação atingidas fora dos itinerários e construções informadas nos documentos tradicionais, onde seus expositores primam pelos escrúpulos e minuciosidade e a Base Ética é uma construção pessoal efetiva… ]

Histórias budistas: 1. Sasapandita jataka (o jataka da Lebre-sábia) - Conversão ao Budismo. 2. Mahaduta - Entendendo a doutrina do karna, renascimento e causalidade (hetuvada). (Revisado: 02/10/2015)

19/09/2015 23:05

 

 

HISTÓRIAS BUDISTAS (revisado em 02/10/2015):

1. Sasapandita Jataka (Jataka-Atthakatha Livro III 48-52) – O jataka da lebre sábia.

Dana (Dar-Caridade) e Campo de mérito. Shradda (Fé). Uposatha (páli)/Posadha (sânscrito) - Jejum.


 

Este post vem com duas histórias budistas singelas as quais, todavia, estão imbuídas de significados importantes.

 

A história de Sasapandita (a Lebre sábia) é integrante do Jataka – livro que narra histórias atinentes a nascimentos anteriores como bodhisattva do Buddha Shakyamuni - e já chegou a ser divulgada em nosso idioma; ela aborda a conversão dos budistas leigos. A história de Mahaduta é coligada à época do Budismo Inicial e foi publicada em diversos países - como Rússia, Alemanha, França e Inglaterra - sob o título “Karma”; em relação a Mahaduta eu, pessoalmente, só cheguei a este relato garimpando textos budistas pela web. A história de Mahaduta aborda a doutrina do karma. 

 

                                                         _______________________

 

 

 

O Mestre narrou esta passagem quando residia no mosteiro de Jetavana, devido a uma doação realizada por um devoto leigo à Sangha, abrangendo toda a necessidade dos monges.



Dizem que em Savatthì um certo pai de família realizou uma Sabbaparikkhara Dana (doação de todos os requisitos necessários para um monge*) à comunidade de monges presidida pelo Buddha Shakyamuni. Construiu um pavilhão na porta de sua casa e convidou a sangha presidida pelo Buddha. Fez com que se sentassem no pavilhão em assentos preparados e lhes ofereceu comida deliciosa de diversos gostos. Tendo convidado-os por sete dias seguidos, no sétimo dia doou todos os requisitos necessários para quinhentos monges à Sangha presidida pelo Buddha.

 
 

[nota: 'Sabbaparikkhara Dana’ - doação (dana) com todos os requisitos necessários para um monge: 1) tigela (patta); 2), 3) e 4) três hábitos ou mudas de roupa (ticivara); 5) faixa para poder carregar os requisitos junto ao corpo (kayabandhana) ; 6) lâmina para barbear e raspar a cabeça (vasi); 7) agulha para costurar as roupas (suci) ; 8) moringa ou cantil de água (parissavana)...]


 

O Mestre, ao finalizar a refeição, expressou sua gratidão dizendo:

“Devoto, é apropiado que tu experimentes regozijo e felicidade. Porque esta generosidade pertence à linhagem dos sábios de antigamente. Os sábios de antigamente, quando chegavam mendicantes, renunciavam à sua vida e davam ainda a sua própria carne”.

A pedido desse devoto, o Buddha Shakyamuni relatou a seguinte história do passado. 


 

"...No passado, quando Brahmadatta reinou em Varanasi, o Bodhisattva nasceu como uma lebre e viveu no bosque daqueles arredores. Ao lado desse bosque estava o pé de uma montanha, do outro lado havia um rio e do outro uma vila de fronteira. Também viveram seus três amigos: um macaco, um chacal e uma lontra. Esses quatro sábios viviam juntos, obtinham comida em seus respectivos lugares e pela tarde se reuniam (*).


A lebre sábia exortou seus três companheiros com uma prática do Dharma: "Devemos praticar a generosidade, observar os preceitos e realizar atos de Uposatha [sânscrito: posadha]".


Então, após aceitar sua exortação, os três animais se retiravam para suas moradias.



Assim passou-se o tempo.


Um dia o Bodhisattva olhou para o céu, viu a lua e compreendeu: -"Amanhã é o dia de Uposatha"; reunindo-se com os animais, disse o Bodhisattva aos outros três: -"Amanhã é Uposatha, vós três deveis observar os preceitos e o dia do Uposatha."... "Tendo alguém se estabelecido nos preceitos, a doação produz grandes frutos. Portanto, se vós virdes a algum mendicante, deveis dar da vossa própria comida. Eles aceitaram dizendo: -"Muito bem", e retiraram-se para seus locais de residência.



No dia seguinte, cedo, a lontra pensando: -"Vou procurar comida" -; saiu e foi às margens do rio. Então, um certo pescador tinha pescado sete peixes vermelhos. Depois de amarrá-los em um junco, trouxe-os consigo e fez um buraco na areia na margem do rio, enterrou os peixes e continuou a pescaria rio abaixo. A Lontra percebeu o cheiro de peixe, cavou na areia, os viu e tomou-os. Por três vezes anunciou: -"Quem é o dono destes peixes?". Não vendo o proprietário, mordeu a ponta do junco com os peixes, levou-os e manteve-os em sua toca, refletindo sobre os preceitos: -"Comerei no momento oportuno".




O Chacal também deixou seu local de residência e, à procura de alimento, encontrou na cabana de um certo guardador de campo duas estacas com carne, uma iguana e um jarro de leite coalhado. Três vezes anunciou: -"Quem é o dono?". Não vendo o proprietário, colocou sobre seu pescoço a corda para levantar o jarro de leite coalhado, mordeu as duas estacas com carne e a iguana, levou tudo isso e guardou em sua morada, refletindo sobre os preceitos: -"Comerei no momento oportuno".



O Macaco também saiu de sua morada e, procurando alimento, entrou no monte, tomou uma ramada de mangas, levou-a e guardou-a em sua habitação, refletindo em seus preceitos: -"Comerei no momento oportuno".



O Bodhisattva deitado em sua própria toca, pensou: "Sairei e comerei grama, no momento oportuno. Se alguém vier me pedir algo, não é possível doar grama. Eu não tenho sementes de sésamo nem arroz nem nada para dar. Se alguém me vier pedir algo, darei, então, a carne do meu próprio corpo".




Naquele momento, pelo poder da virtude do Bodhisattva, o trono de pedra Sakka [sânscrito: Sakra, o deus Indra] mostrou sinais de calor [*]. Sakka, investigando, viu a razão e pensou: -"Devo investigar o rei lebre".



Mas antes foi ao local de moradia da lontra, sob o disfarce de um brahmane. A sábia lontra disse: -"Por que vieste brahmane?". O brahmane respondeu: -"Se eu conseguir alguma comida, guardarei Uposatha". A Lontra disse: -"Muito bem, dar-te-ei minha comida"; e, conversando com o brahmane, pronunciou primeiro o verso:




-“Meus sete peixes vermelhos, pescados da água e tomados por mim em solo firme, isto, brahmane, eu tenho. Depois de comê-los, vivei neste bosque.”.

O brahmane disse, "depois verei isto" e saiu para ver o chacal.


 

[nota: "o trono de pedra de Sakra mostrou sinais de calor ", querendo significar que alguma obra nobre na terra, vinculada  ao Dharma, estava sucedendo...] 

 

Quando o Chacal perguntou: -"Por que vieste?", o brahmane, novamente, respondeu: -"Se eu conseguir alguma comida, guardarei Uposatha". O Chacal disse: -"muito bem, dar-te-ei" – e, conversando com o brahmane, deu o segundo verso:



“O jantar de um certo guardador de campo eu trouxe; duas estacas com carne, uma iguana e um jarro de leite coalhado. Isto, brahmane, eu tenho. Depois de comê-los, vivei no bosque.”

O brahmane disse, "depois verei isto" e foi-se para ver o macaco.


Quando o macaco perguntou: -"Por que vieste?", o brahmane respondeu: -"Se eu conseguir alguma comida, guardarei Uposatha". O macaco disse: -"Muito bem, dar-te-ei"; e, conversando com o brahmane, pronunciou o terceiro verso:



“Mangas maduras, água fresca e uma sombra agradável, isto, brahmane, é o que tenho. Tomai e, depois de comer, vivei no bosque.”.

O brahmane disse, "depois verei isto" e foi-se para ver o rei lebre.



Quando a lebre perguntou: -"Por que vieste, brahmane?", o brahmane respondeu: -"Se eu conseguir alguma comida, guardarei Uposatha". Ao ouví-lo, o Bodhisattva ficou cheio de alegria e disse: "Brahmane, fizeste bem em vir à minha presença para pedir comida. Hoje, vou dar algo que eu nunca dei antes. Porque tu és virtuoso e não-violento. Vá brahmane, ajunte madeira, prepare uma fogueira e avise-me. Eu renuncio a mim mesmo e logo estarei no meio do fogo... Quando meu corpo estiver cozido, poderás comer a minha carne e então observar o Dharma dos sramanas (ascetas)". E conversando com o brahmane pronunciou o quarto verso:


-“A lebre não tem sementes de gergelim nem ervilhas nem mesmo arroz. Depois que eu cozinhar com este fogo, vivei no bosque.”.




Após ouvir o Bodhisatta, Sakka preparou uma pilha de carvão, usando seus siddhis [faculdades supranormais] e informou o Bodhisattva. O Bodhisattva levantou-se da sua cama de ervas e foi até Indra. Antes, porém, meditou: -"Se há insetos em minha pele, que eles não morram", e sacudindo seu corpo por três vezes, ofereceu todo o seu corpo, se lançando sobre a pilha de brasas, regozijando-se como um cisne real em um lago de lótus. Mas o fogo não pode queimar mesmo as mechas mais simples dos pêlos da pele do Bodhisattva. Foi como entrar em um bloco de gelo. Então, ele se aproximou de Sakka: "Brahmane, o fogo que está preparado é muito frio. Ele não poderia nem queimar as pontas dos pêlos em minha pele. O que é isto?". Sakka respondeu: -" Lebre-sábia, eu não sou um brahmane, sou Sakka. Eu vim para provar-te”. O Bodhisattva soltou um rugido de leão: -"Ó Sakka, tu és o primeiro a fazê-lo. Mas se todos os habitantes do mundo viessem por à prova minha generosidade, eles não iriam encontrar nunca em mim falta de disposição para dar."...



Então, Sakka disse: -“Lebre-sábia, que tuas virtudes se conheçam por um eon”. E após isto, Indra, com seu raio, moeu uma pedra na montanha, tomou o seu monturo  e desenhou a forma da lebre no relevo da lua. Tomando o Bodhisattva, acostou-o em um leito de ervas tenras, no mesmo lugar nesse monte, nesse bosque, e regressou para o céu. E esses quatro sábios, em harmonia e em paz, observando os preceitos, praticando generosidade e realizando os atos de Uposatha, partiram, de acordo com suas ações.



O Mestre, depois de narrar este discurso do Dharma, revelou as verdades e mostrou a conexão da história. Ao final das verdades, o pai de família, doador de todos os requisitos necessários a um monge, se estabeleceu na fruição da entrada na corrente.



Naquela ocasião a lontra era Ananda, o chacal era Moggallana (sânscrito: Maudgalyayana), o macaco era Sariputta (sânscr.: Shariputra) e a Lebre-sábia era eu mesmo...



                       
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O fundamento das narrativas do Jataka é nos aproximar da sabedoria e exemplos de vida imbuídos nas histórias concernentes a nascimentos anteriores do Buddha Shakyamuni. Conforme a doutrina budista, até que atingisse a iluminação ou Buddhato (Estado de buddha), o Buddha Shakyamuni, gerando karmas meritórios, foi renascendo continuamente como Bodhisattva. Assim me parece, o leitor moderno do Jataka deve se prender a este vetor ou linha de compreensão. Entre os documentos hindo-budistas relatando sobre a espiritualidade numa existência no reino animal, destacam-se, entre muitos, o Vishnu Purana, o Jataka e o Ramayana de Valmiki.

Pelo encontro entre o bodhisattva - nascido como uma lebre - e Indra, dá-se a entender que a história da Sasapandita se passa num quantitativo temporal que pode abarcar milhares de anos - mesmo eons -, antes do nascimento de Siddharta Gautama, o Buddha Shakyamuni. Do ponto de vista do Buddhadharma e do Vedanta não existe começo (tampouco fim)... mas, entre um ciclo cósmico e outro, na Samvritti Satya (Verdade Relativa ou Condicionada) ou Maya vedântica, aí sim se pode falar em começo, meio e fim. 

Se não captarmos, porém, o sentido interior dessas narrativas, talvez não nos seja de muita valia discutir acerca de sua historicidade efetiva, uma vez que eventos históricos precisam de comprovação...



O Jataka da Lebre-sábia reitera e exemplifica o ensinamento de Uposatha (sânscrito: Posadha - literalmente: ‘Jejum’, ‘Dia de Jejum' e também de consagração); a saber: primeiro dia das fases cheia e nova da Lua, e os dois dias do primeiro e último quarto das fases minguante e crescente. Nos dias de Lua Cheia e Lua Nova, o Código de Disciplina, o Patimokkha (sânscrito: pratimoksha – conjunto de regras diciplinares contidas no Vinaya para monges e monjas), é lido diante da comunidade de monges, enquanto que nos quatro dias lunares mencionados muitos dos upasakas/budistas leigos devotos vão visitar os viharas (mosteiros) e lá, durante um dia inteiro, eles tomam para si a observância das 8 regras (attha-sila). Ver Anguttara Nikaya VIII, 41. 

Assim, os upasakas/budistas leigos se dirigem para junto dos monges e além dos cinco preceitos básicos (panca-sila: não matar, não roubar, não mentir, abster-se de relações sexuais ilícitas e não ingerir substâncias inebriantes) observam também preceitos que são próprios dos monges e monjas: 6º) não alimentar-se após o meio dia, 7º) abster-se de envolvimento com danças, canto, músicas e espetáculos e abster-se de envolvimento com o uso de guirlandas, perfumes, cosméticos e adornos, e 8º) abster-se de camas e assentos luxuosos e de aceitar ouro e prata. O sétimo e o oitavo preceito são uma condensação de quatro preceitos monásticos. Por certo que, o tempo de Uposatha/Posadha, no sat-sanga (encontro/reunião com finalidade espiritual) entre monásticos e leigos, é um tempo não apenas para retiros em comum, mas também para novas conversões. Daí a preocupação e orientação da Lebre-sábia para seus amigos...

[nota: O capítulo 2 da 2ª parte da Surllekkha/”Carta a um amigo” de Nagarjuna inicia abordando o assunto da observação de Uposatha/Posadha, cuja fundamentação foi explanada pelo Lama Rendawa...]




Aqui o Buddha Shakyamuni narra para nós a importância dos valores propriamente espirituais e também religiosos. Cristo predicou que: “Só uma coisa é necessária...”- (São João, cap. XI - "A morte de Lázaro"). A valoração por hindús e budistas acerca de Kaivalya-Moksha e Nirvana, União Suprema e Iluminação é notável, foi colocada efetivamente em prática por hindús e budistas de maneira exemplar e permanece sendo observada por membros de ambas as tradições até os dias de hoje.


Os preceitos éticos, observados efetivamente, complementam e viabilizam mas:

- não substituem a Atenção Plena/Presença Mental adquiridos por treinamento contínuo em samatha (não apenas “tranquilização” mas estabilização) e vipasyana (meditação, a qual necessita de um bom treinamento em samatha para que seus resultados apareçam)

- nem tampouco os ensinamentos metafísicos 


Antes integram, como parte não-prescindível, o processo da iluminação e nos permitem uma maior respiração com as acumulações de mérito.





Por outro lado, Śraddhā (Fé - alguns têm traduzido "shraddhā" como "confiança") não está, em nenhuma hipótese, excluída, tampouco é prescindível. E é, também nas vias hindo-budistas, caminho para salvação - traduzido como nascimento nos Reinos Celestiais (que viabilizam ou não a Liberação) e nas Terras Puras. Śraddhā integra também  os desenvolvimentos objetivando a Liberação, já que sem Fé o êxito no engajamento para uma construção objetivando a Iluminação ou Realidade Última pode ser comprometido [*]



[nota:

- do ponto de vista da exposição budista, a esfera celestial (dos Devas) correspondente ao 6º plano da existência, sendo a mesma um dos seis reinos ou esferas sujeitas ao renascimento, - juntamente com os reinos asura, humano, animal, dos pretas (fantasmas famintos) e os reinos infernais - é uma realização espiritual que não busca ainda a Liberação/Kaivalya ou Moksha. O que hoje é um deva (ou ainda, no reino humano, um rei ou potestade), amanhã pode ser um mendigo ou demônio... o que hoje é um mendigo, amanhã pode ser um deva (ou rei)... Ainda, no ensino repassado pelo Buddha  Shakyamuni, existem outros vinte e cinco reinos da existência (totalizando trinta e um planos existenciais - após o 31º plano ou reino, vem o estado de Buddha) e, a partir justamente do sétimo reino, já se está na corrente da Kaivalya/Liberação, fora da medida de nascimento-e-morte, sujeito apenas a "nascimentos especiais" ou ainda a um nascimento derradeiro (a partir da elevação correspondente ao sétimo plano a realização interior/espiritual que é estabelecida não é mais perdida; não está mais sujeita  à medida de nascimento-e-morte)... 

- do ponto de vista do Brahmanismo, embora a sua doutrina exterior trate da vida espiritual, essa porção périférica da doutrina corresponde a um patamar ou degrau que não é ainda o nível interior ou nuclear; esse patamar geral agrega culturalmente a comunidade e difunde ensinamentos e ritos, mas não necessariamente orienta num sentido de Liberação ou Kaivalya, podendo, na verdade, ser encarado como uma introdução e preparação preliminar. A Kaivalya propriamente é tratada na doutrina interior como exposta nas Upanishads e nos Brahma Sutra (Vedanta Sutra), por exemplo.

- do ponto de vista teológico, há teologias como a de São Dionísio, pseudo Aeropagita, de São João Escoto Erígena, de São Boaventura, a Teologia Alemã ou Germânica, a grande teologia mística de São João da Cruz, etc., as quais, pela sua forma de exposição, orientam e conduzem ao conhecimento da realidade de Cristo, portanto à Liberação – uma vez que orientam a buscar penetração na esfera crística, o que implica buscar não apenas a salvação pessoal mas o Conhecimento e a Participação na Bem Aventurança Indescritível. E há construções teológicas que não se desenvolvem desta forma, podendo-se falar, nesse caso, em teologias enfatizando a Salvação na perspectiva dual-dualista.


- Salvação ou Conhecimento Direto/Liberação? em ambos os casos Śraddhā (fé) tem o seu papel importante. “Só uma coisa é necessária...”.

 

"Deus dissolveu minha mente 

minha separação.


Não posso descrever

minha intimidade com Ele.


Quão dependente é a vida do corpo

de água, comida e ar...


Eu disse a Deus:

“-Eu sempre serei … a menos que Tu deixes de ser!”'



E o meu Amado me respondeu:

“-E eu cessaria de ser se tu morresses...”


“Eu cessaria de ser”. Santa Tereza de Ávila (1515-1582 Espanha)

 

Aqui mesmo, no Sasapandita jataka, nós temos o exemplo de fé inabalável da lebre-sábia tanto em relação à posição dos sramanas (ascetas) quanto em relação à posição dos bodhisattvas, objetivando, por meio de ambas, a Nobre Finalidade - consubstanciada tal fé, neste Jataka, em obras abrangendo o campo superior de méritos.

 

Em termos orientais poderíamos falar em teologias conformadas à medida de nascimento-e-morte - mas, nesse caso, o que pode ser ganho, pode ser, um dia, também perdido (como pode ser verificado no Ushnisha Vijaya Dharani e no Ramayana, posição que procurarei explanar mais adiante)  - e teologias visando conhecer diretamente e, com isto, ultrapassar a medida de nascimento-e-morte... Entre uma posição e outra, porém, o que está em jogo é, também, a aptidão/vocação das pessoas...

E, obviamente, as evidências, realizações e fruições dependem não apenas de adesão a uma família espiritual e participação nos ritos mas de uma metanóia, aqui oriunda da uma ascese interior/espiritual, a qual é individual e decorrente do adequado treinamento interior-ético, senão... lá vamos nós outra vez - pela enésima vez - para a armadilha das palavras sobre iluminação e vida espiritual sem uma contrapartida efetiva nem nos níveis mínimos...


São Francisco de Assis, com o aumento de número de seguidores e formação da Ordem Franciscana, passou a Teologia para o frei Antonio (Santo Antonio de Pádua) repassando, também, para frei Antonio, sua preocupação justamente com a dificuldade que exponho aqui: muitos estudos, pouca realização espiritual, muitas palavras (com e sem terminologia específica), poucas conversões verdadeiras e pouca vida em Cristo. Num assunto que pode ser fugidio, movediço como o de uma vida espiritual, as palavras estão fadadas a serem meios limitados e subordinados à realização interior/espiritual, nunca o contrário... Sem as realizações interiores as acumulações de conhecimento podem se "petrificar" e mesmo conduzir à auto-ilusão, converter-se em erudição somente - ao invés de jnana - nos informando sobre uma digna e bela possibilidade, porém, sempre distante, nunca atualizada... ]




Por fim, para entender o que o Buddhadharma denomina “campo de méritos” ele está vinculado a tudo aquilo que, feito com dignidade, tem como objetivo finalidades nobres com o Dharma e o bem efetivo dos seres – isto é: o bem material e, com maior propriedade, o bem interior/espiritual. Neste jataka, o campo de mérito se forma pela observação dos preceitos e pela disposição em colaborar efetivamente, através da doação de meios materiais, para aqueles que irão se engajar em Uposatha.




Acerca de Dana (Dar/Caridade) e observação de preceitos ético-morais, o Guru Nagarjuna escreveu:





“Reconhecendo que a riqueza é efêmera e insubstancial

exercei-vos adequadamente em atos de liberalidade

em prol de monges, brahmanes, pobres e amigos.

No futuro, não haverá amigo melhor que a liberalidade.”.

Suhrllekka v. 6




“A pessoa que quebra o esteio da moralidade

mesmo que venha a adquirir riqueza

em razão de algum ato de generosidade,

decairá para os estados inferiores.




E exaurida a raiz geradora de tal riqueza

daí em diante deixará de adquirir coisa alguma...


Quando as virtudes são cultivadas no campo da moralidade

a fruição de seus resultados não é interrompida...”.


Madhyamakavatara, cap. 2, v. 6.



A moralidade não-conspurcada, imaculada e incorrupta

foi declarada a base de todas as virtudes

da mesma forma que a terra está para todas as coisas móveis e imóveis..
.”

Suhrllekka v. 7




Dar/Dana é exercida com coração, caráter e compreensão.




O campo de méritos é maior quando temos adesão a alguma família espiritual que, histórica e comprovadamente, apresente em suas fileiras homens e mulheres santos e/ou iluminados e damos nossa colaboração pessoal à nossa família espiritual objetivando o necessário em prol de um tal resultado. Este é o campo de méritos de virtudes.

 

O campo de méritos é maior quando socorremos os desvalidos e indigentes, os massacrados, os inválidos, aqueles que tendo perdido praticamente tudo são possuidores em seu momento atual de poucas possibilidades ou, em muitos casos, já não são possuidores de nenhuma possibilidade efetiva, exceto a de carregar o alento de vida no corpo... Este é campo de méritos referente à miséria.


O campo de méritos das amizades se dá nas relações de amizade verdadeira, as quais se desdobram através daqueles amigos que se apresentam quando as necessidades, inclusive com grau complexo de dificuldade ou resolução, surgem. Para o Campo de Mérito, verdadeiros amigos não são apenas leais; são amigos nas necessidades que se apresentam e também na relação espiritual...

 

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A HISTÓRIA DE MAHADUTA. 

Karma e Causalidade. Salvação pela Fé (Shraddhā).

 
Me baseei em dois textos para esta tradução:  O livro “Karma” do alemão Paul Carus, edição inglesa de 1917 e a versão condensada da mesma história para ensino de jovens e crianças: “The legend of Mahaduta”, edição da Dharma Realm Buddhist Association (www.drba.org), disponível na web.
 
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'[do ponto de vista do nihilismo] Não existe nada que é dado, nada que é oferecido, 
nada que é sacrificado; 
não existe fruto ou resultado das ações boas ou más; 
não existe este mundo, nem outro mundo; 
não existe mãe, nem pai; 
nenhum ser que renasça espontaneamente; 
não existem no mundo brahmanes nem contemplativos bons e virtuosos 
que, após terem conhecido e compreendido diretamente por eles mesmos, 
proclamem este mundo e o próximo.'
 
Portanto, oh brahmanes, chefes de família, é devido à conduta em desacordo com o Dhamma, devido à conduta corrompida que alguns seres, com a dissolução do corpo, após a morte, renascem num estado de privação, num destino infeliz, nos reinos inferiores, até mesmo no inferno. Majjhima Nikaya 41:10 [sobre o nihilismo]
 
 
 
O carroção de arroz de Devala.  
 
 
Faz muito tempo, na Índia do Budismo inicial, viveu um joalheiro muito rico, de nome Pandu. 
 
Certo dia em que se dirigia com sua carruagem até Varanasi (Benarés), Pandu estava contente pela bonança do tempo, recém-refrescado por uma forte chuva, e, sobretudo, pela perspectiva dos lucros que iria  auferir no dia seguinte, vendendo joias no mercado.
 
Pelo caminho, Pandu viu um monge caminhando lentamente por um canto da estrada. O monge caminhava com passos firmes e coluna ereta; havia naquele monge algo que irradiava paz e força interior. Pandu pensou: “Se esse monge estiver indo a Varanasi, perguntarei se quer viajar comigo. Parece um homem santo e ouvi dizer que a companhia de pessoas santas sempre traz boa sorte”. Assim, ordenou a seu forte escravo, chamado Mahaduta, para parar os cavalos.
 
 
-  “Venerável Mestre do Dharma” - disse Pandu, abrindo a porta de sua carruagem - “Posso oferecer-te transporte até Varanasi?”
- “Agradeço tua bondade. Eis que estou exausto da longa caminhada. Viajarei contigo” - respondeu o monge -, “se compreendes que não tenho com que pagar-te, posto que não tenho bens materiais. A única coisa que posso oferecer-te é o Dharma.” 
- “Aceito tuas condições” – disse Pandu, que sempre pensava como se estivesse negociando. E assim convidou o monge a adentrar sua carruagem.
 
 
Durante a viagem, o monge, de nome Narada, falou a Pandu sobre o karma, que é a lei de causa e efeito.
 
- “As pessoas criam seus próprios destinos mediante suas ações” - disse Narada.  -“Boas ações geram, de um modo natural,  boa fortuna, enquanto que aqueles que cometem maldades acabam pagando por elas tarde ou cedo.”. 
 
 
Pandu estava satisfeito com a companhia. Aprazia-lhe ouvir coisas com sentido, pois era um homem prático, e também tinha raízes boas e profundas no Dharma, ainda que não se apercebesse disto. 
 
 
Pelo caminho, Pandu, o joalheiro, interrompeu asperamente a Narada quando a carruagem se deteve na metade da estrada. 
- “O quê ocorre?” - gritou irritado a seu escravo Mahaduta - “não há tempo a perder!”. Varanasi distava ainda dez milhas de distância e o sol já se punha no Oeste.
- “É o carroção de um agricultor no meio da estrada” - vociferou Mahaduta.
 
 
O monge e o  joalheiro abriram as portas da carruagem e se achegaram para ver o que ocorria. Um pouco adiante e bloqueando a estrada, havia um carroção carregado de sacos de arroz. A roda direita estava avariada num buraco. O agricultor estava sentado no chão tentando reparar uma peça rompida, pois pretendia chegar, também ele, a Varanasi para vender seu arroz.
 
- “Não posso esperar, Mahaduta!” - gritou Pandu - “afasta este carroção!”.
 
 
O camponês se levantou rapidamente para protestar e Narada voltou-se até Pandu para pedir-lhe que pensasse outro modo de resolver a situação. 
Mas antes que algo pudesse ser dito, Mahaduta já havía saltado de seu assento e, arremetendo contra o carroção do agricultor, empurrou-o mais ainda para o buraco na estrada. Vários sacos de arroz caíram no barro. 
O agricultor avançou até Mahaduta, mas deteu-se ao dar-se conta de que o escravo era o dobro dele em tamanho e força. 
Olhando com desdém para o agricultor, Mahaduta ergueu seu punho ameaçadoramente; estava claro que ele teria apreciado dar uma surra  no camponês Devala se Pandu não estivesse com pressa. 
Voltando Mahaduta a seu assento e retomando as rédeas da carruagem eis que Narada, a seu turno, desceu da mesma e disse a Pandu: 
 
- “Estou descansado e em dívida contigo por haver-me levado durante uma hora; e que melhor modo de saldar esta dívida se não por ajudar a este desafortunado agricultor que tu tens maltratado através de teu escravo? Ao fazer-lhe dano, tenha por certo que um dano similar ocorrerá a ti também. Assim que, talvez, ajudando este camponês, possa fazer com que tua dívida com ele não seja tão grave. Ademais, este agricultor foi um familiar teu em uma existência anterior; teu karma e o dele estão atados de uma maneira muito mais forte que o normal.”. 
 
 
O joalheiro estava surpreso. Não estava acostumado a ser corrigido, nem sequer mediante a amabilidade com que Narada o havia feito. Mas o que mais lhe molestou foi a ideia de que ele, Pandu, um joalheiro com grandes riquezas, pudesse estar de algum modo relacionado a um mero agricultor de arroz que, segundo Narada, teria sido um seu ancestral.  
- “Mas isto é impossível” - replicou Pandu a Narada.
 
 
Narada, com um leve sorriso, disse: 
- “As vezes  as pessoas de maior inteligência não alcançam reconhecer as verdades mais básicas da vida. Mas eu tentarei proteger-te contra o dano que fizeste a ti mesmo.” 
 
 
Perturbado por estas palavras, Pandu fez um sinal veemente com sua mão para que o escravo repusesse a carruagem em marcha. 
 
 
Devala ouve o ensinamento da lei do karma. 
 
 
Devala, o agricultor, já estava novamente sentado no solo, a um lado da estrada, tentando reparar outra vez a roda. 
Narada saudou-o, inclinando sua cabeça e começou a empurrar o carroção para fora do buraco. 
Devala  levantou-se rápido para ajudá-lo, mas se deu conta de que aquele monge tinha muito mais força do que se poderia esperar de uma pessoa de compleição mediana. 
O carroção estava novamente na estrada. 
- “Este monge deve ser um santo”, pensou Devala em silêncio.  - “Devas e yakshas, invisíveis protetores do Dharma, devem ajudá-lo. Talvez ele possa explicar-me por que hoje minha sorte tem declinado”. 
 
 
Os dois homens carregaram os sacos de arroz que Mahaduta havia jogado no buraco na estrada e, então, sentando-se Devala novamente para consertar a roda, perguntou:
- “Venerável Mestre do Dharma, podes explicar-me porquê tive que sofrer semelhante injustiça por parte desse rico tão arrogante,  a quem nunca havia visto antes? Qual a razão disto?”
 
 
Narada respondeu: 
-“O que sofreste hoje não é realmente uma injustiça. Recebeste o pagamento exato pelo dano que causaste ao joalheiro em uma vida anterior.”
 
 
Devala, concordando, disse: 
-“Ouvi pessoas dizerem este tipo de coisas antes, mas nunca me ocorreu de acreditar ou não...” 
-“Não é algo muito difícil de acreditar” - disse Narada. “Nos convertemos naquilo que fazemos. Se fazes boas coisas, serás uma boa pessoa,  de um modo natural, e coisas boas te ocorrerão naturalmente. O mesmo sucede com as maldades. Atos maus criam más personalidades e vidas desafortunadas. Tudo em que tens pensado, dito e feito criam a classe de pessoa que tu és agora, e também contêm as sementes daquilo que serás no futuro. Esta é a lei de causa e efeito, a lei do karma. 
 
[nota: aqui o ensinamento sobre a causalidade está sendo exposto de maneira gradual. Anterior à sua correlação de causa e efeito, karma é ação...]    
 
- “Talvez seja assim” - disse Devala -, “mas eu não sou uma má pessoa, e vê o que me ocorreu hoje!”
 
 
Narada lhe perguntou: 
- “Não terias feito o mesmo ao joalheiro se houvesse sido ele a bloquear a estrada e tu o que comandasse um cocheiro tão embravecido?” 
 
 
As palavras do monge fizeram com que Devala emudecesse. Se deu conta de que até o momento em que Narada apareceu para ajudá-lo, sua mente estava enevoada por pensamentos de vingança. Exatamente o que Narada havia dito é o que ele havia pensado: “Quem dera houvesse sido eu a afundar a carruagem do joalheiro para depois poder retomar a viagem com orgulho, enquanto  o ricaço estivesse revolvido no lodo”. 
 
- “Sim, Mestre do Dharma” - admitiu - “é verdade.”.
 
 
Os dois homens permaneceram em silêncio até que a peça avariada estivesse pronta e a roda fosse montada novamente no carroção. O camponês seguia meditando nas palavras de Narada. Ainda que Devala não houvesse nunca ido à escola, ele era um homem pensativo e sempre tentava descobrir o porquê das coisas e as razões por trás dos sucessos.
 
 
De repente disse: 
- “Isto é terrível! Agora que o joalheiro me fez dano, eu terei que fazer algo mal a ele. Então ele me devolverá, e eu tornarei a feri-lo. Isto nunca terminará!”.

 

[nota: as palavras atribuídas aqui a Devala são simples, entretanto prenhes de significado. Os desencontros, conflitos de interesse, erros de julgamento/avaliação/compreensão, egoísmos, estupidez/má-fé/má-vontade, fanatismos, crueldades e extremismos conduzindo a danos e destes danos emergindo novos danos decorrentes de retaliações, esses últimos conduzindo a um ciclo de novas retaliações, vinganças e ações ruinosas. É a temática investigada de maneira admirável pelo sociológo e sábio francês René Girard – sem adentrar, todavia, na doutrina da causalidade - em sua obra a “A violência e o Sagrado” (Editora Paz e Terra; disponível na Web em espanhol), onde nos capítulos iniciais ele verifica a questão da mediação e interferência do Judiciário para atenuar e gerenciar o ciclo infindável de vinganças em meio à comunidade, além das observações geniais de Girard sobre a violência intestina, a qual é intrínseca ao ser humano - relacionada à Queda na terminologia judaico-cristã e à Avidya/Ignorância na terminologia hindo-budista, sendo em que em uma situação e outra só uma reintegração interior/espiritual resgata e livra a condição humana - bem como, na mesma obra, suas considerações também geniais sobre o tema da característica mimética da interação com o desejo e sobre o tema de  “Abel e Caim” (o melhor relatório que já li sobre esta passagem bíblica, após aquele repassado por René Guénon em seu também admirável “O Reino da Quantidade e os sinais dos tempos” - de certa forma, ambas as exposições sobre o tema de  Abel e Caim complementam e aprofundam nossa compreensão.) … 

 
Saída deste pesadelo? 
O perdão cristão. A ahimsa (não-violência) hindo-budista. Jnana. Mas... como orientar a jnana? 
 
A compreensão cristã-budista de que os inimigos devem ter a devida consideração e ser incluídos em nossas práticas espirituais benignas ou de mérito (São Mateus, cap. 5, v. 43-48 - "Amai os vossos inimigos e fazei bem aos que vos aborrecem, orai pelos que vos perseguem e maldizem") e o ensinamento desenvolvido por Shantideva  (Bodhicaryavatara, cap.6, v. 68, 87-88, 102, 107 - "A Paciência" - Shantideva explica que “um inimigo é como um tesouro” – não apenas pela relação Desenvolvimento-de-Paciência-e-Compaixão mas também pela relação-espelho, a qual, quando efetiva, é o de que precisamos para aprimorar nosso desenvolvimento interior …
 
Pelejar em causas que não lhe são correlacionadas, que não passam, em nenhuma hipótese éticamente legítima pelo próprio rumo, incorre alguém deixar de fazer o que deve ser feito para lidar com o que não é de sua responsabilidade interior/espiritual, criando uma originação dependente desnecessária e, em certos casos, ruim e estorvadora de boas obras e realizações, já que os elementos constituintes da relação-espelho  e da correlação interior/espiritual - kármica – estão ausentes ou num patamar insuficiente. 
 
Se cada um de nós lutar a própria verdadeira guerra interior, isto é uma grande coisa, porque da nossa verdadeira guerra interior advêm batalhas das quais podemos sair fortalecidos (nós e, também, nossos opositores/contrários). 
 
Se um bem está ao nosso alcance, fazê-lo é, em princípio, de rigor. 
Mas há algumas situações como, por exemplo, lidar com malignos que não são do próprio rumo, do próprio resultado interior/espiritual, sem encontro ou conexão nenhuma com o próprio nível de compreensão e formulação, onde incorremos, mesmo tendo êxitos, em acordar e verificar a redução de nossas próprias acumulações benignas, as quais, para serem repostas, isto implicará uma nova carga de anos de prática bem como não perder mais tempo com o que não é do nosso rumo ou formulação, do nossso karma pessoal ou da nossa responsabilidade pessoal e/ou espiritual… 
 
No Karanda Vyuha Sutra, o nobre bodhisattva Avalokiteshvara visita o Inferno Avici e, após, o Pretalôka (“O reino  dos Pretas - Fantasmas famintos”), liberando os seres sencientes que estão ali, purgando karmas malignos/doentios. Se não houvesse purgação de karmas doentios, malignos no Pretaloka e no Inferno Avici e outros, não haveria, do ponto de vista da Verdade Condicionada ou Relativa/Samvritt Satya, seres sencientes naquelas esferas de restrição e purgação para serem libertos pelo bodhisattva, tampouco a lei do karma corresponderia a Ação, Causa e Efeito... Por outro lado, os budistas fazem votos para, na hipótese de renascimento, que isto se suceda em nações onde há posição e cultura favoráveis – ou, ao menos,  posições e culturas não-hostis - para a prática do Buddhadharma, o que é um dado significativo...]
 
 
- “Não precisa ser assim” - disse Narada. “As pessoas têm a decisão de fazer coisas boas e coisas ruins. Encontra um modo de pagar a este joalheiro tão orgulhoso com ajuda em lugar de pagar-lhe com retaliação ou dano. Então o ciclo se romperá.”.
 
Devala concordou com Narada. Acreditava no que o monge havia dito, só não via como poderia surgir oportunidade para seguir seus conselhos. Afinal, como um pobre camponês poderia ajudar a um homem tão rico? Devala convidou a Narada a subir em seu carroção e retomou a marcha para Varanasi.
 
 
 
Devala encontra-se com Pandu em Varanasi.
 
 
Mal seu cavalo começou o caminho, deteu-se repentinamente. 
- “Uma serpente na estrada!” - gritou Devala.  Mas Narada, olhando atentamente, viu que não era uma serpente, senão uma bolsa. Desceu do carroção e a recolheu. A bolsa estava muito pesada pois cheia de ouro.
 
-”Reconheço-a. Pertence a Pandu, o joalheiro” - disse Narada.  -“Ele a levava entre suas pernas na carruagem. Deve ter caído no mmnto que abriu a  porta para ver o que ocorria na estrada. Não te disse que seu destino estava unido ao teu?”. 
 
Dando a bolsa a Devala, Narada prossegiu: 
-“Tens aquí a oportunidade de cortar as ataduras de violência e da vingança que te atam ao  joalheiro. Quando chegarmos a Varanasi, vai-te à pousada onde Pandu se hospeda e devolve-lhe seu dinheiro. Te pedirá perdão pelo que te fez, mas tu deves dizer-lhe que não guardas nenhum rancor e que deseja-lhe o melhor. E, escuta-me atentamente Devala, tu e Pandu sois muito parecidos e ambos prosperareis ou fracassareis em vossas jornadas  dependendo de vossas ações. “.
 
Devala fez conforme as instruções de Narada. Não tinha desejo algum de permanecer com seu ouro. Naquele momento, desejava somente encerrar algum vínculo kármico tortuoso com o joalheiro. Ao anoitecer, quando chegaram a Varanasi, foi à pousada onde os hommens ricos costumavam hospedar-se e pediu para ver Pandu. 
- “E a quem devo anunciar que quer vê-lo?" - disse o pousadeiro olhando com desdém para as vestes do agricultor.
- “Diga-lhe que um amigo veio visitá-lo.”. – disse Devala. 
 
Em poucos minutos, Pandu veio à recepção da hospedaria onde Devala o aguardava. Quando Pandu viu o camponês oferecer-lhe sua própria bolsa, ficou sem fala, tomado de surpresa, vergonha e também alívio. Mas, ao momento que começou a retomar os sentidos, saiu correndo da hospedaria, gritando:
-”Parai... parai de golpeá-lo.”. 
 
Devala havia ouvido gritos de dor provenientes de um espaço contiguo. Parecia alguém agonizando em febre. Logo, um homem alto e corpulento entrou, com suas costas nuas cobertas de sangue e com marcas de açoites em consequência dos golpes recebidos. Era Mahaduta, o escravo de Pandu, o joalheiro. Um oficial de policía o seguia com um chicote em uma mão e uma vara em outra.
 
Ao ver Devala, Mahaduta se surpreendeu e ainda disse: 
-“Meu amo pensou que roubei sua bolsa. Fez com que me golpeassem para que confessasse. Este é meu castigo por fazer-te dano ao seguir suas ordens.”.
Cambaleando e sem pronunciar palavra a Pandu,  saiu para fora, desaparecendo em meio à  noite. Pandu acompanhou a cena e sentiu de dizer algo a Mahaduta, mas era demasiado orgulhoso para pedir perdão a um escravo, especialmente diante de outras pessoas. 
 
Nesse ínterim, o joalheiro não teve oportunidade de saudar Devala, nem de pegar sua bolsa. No momento em que ia falar um homem corpulento vestido com ricas sedas entrou na hospedaria gritando: 
- “Pandu, me contaramn o que ocorreu contigo. A roda da fortuna gira e gira, não? Há dez minutos parecia que ambos estávamos arruinados e agora todo voltou a estar bem. Vem, toma tua bolsa, a agradece a este bom homem.”.
 
Pandu pegou sua bolsa e inclinou sua cabeça ligeiramente para o agricultor:
- “Eu me portei mal contigo e como pagameno tu me ajudaste. Não sei como poderei pagar-te por isto.” 
-”Como? Dá-lhe uma recompensa, Pandu!” - interferiu seu gordo amigo. - “Recompensai-o”. 
 
Inclinando-se até Pandu, Devala disse: 
- “Perdoei-te e não necessito de nenhuma recompensa. Se não houvesses ordenado a teu escravo repelir meu carroção, possivelmente nunca teria a oportunidade de conhecer ao Venerável Narada, nem de ouvir seus ensinamentos, os quais me beneficiaram mais que qualquer quantia em dinheiro. Tomei a resolução de nunca voltar a prejudicar outro ser vivo, já que não quero que me tornem a suceder calamidades em consequência disto. Esta resolução faz com que me sinta seguro e no controle de minha vida de uma maneira que nunca antes havia sentido.”.
 
-”Narada!” - disse Pandu. - “Assim como ele te ensinou, ele instruiu a mim também, mas temo que não escutei bem... Toma isto, bom homem...”.  E deu a Devala várias peças de ouro de sua bolsa. 
- “Diga-me... sabes onde está hospedado o Venerável Mestre do Dharma em Varanasi?” 
-”Sim, não faz muito tempo deixei-o no mosteiro que há junto da entrada Oeste da cidade.” . - respondeu Devala.  -“De fato, ele me disse que era possível que tu quisesses vê-lo. Me pediu que te dissesse que podes visitá-lo, se quiseres,  amanhã, à tarde.”. 
 
Pandu inclinou-se novamente, desta vez com maior dignidade e reverência.
 
- “Agora, sim, tenho uma verdadeira dívida contigo - disse Pandu. -“E também acredito em algo que Narada me disse. Ele disse que tu e eu fomos parentes em nascimentos anteriores e que nossos destinos correm paralelos. Parece que até temos encontrado o mesmo mestre.”. 
 
 
 
Devala é recompensado.
 
 
 
O homem gordo ouvia com impaciência.
- “Sim, sim, estas patranhas filosóficas são boas" - disse levantando a voz -, "mas agora vamos falar de negócios!”.
 
E voltando para Devala continuou:
-”Deixe me apresentar, sou Malik, o banqueiro, amigo de Pandu. Tenho um contrato com o ministro do rei para fornecer o melhor arroz para sua cozinha, mas, há três dias, o meu concorrente, desejando meu fracasso com o rei, comprou todo o arroz em Varanasi. Se não fizer a entrega amanhã, estarei arruinado. Mas agora, meu amigo, tu estás aqui, e é isso o que importa! Teu arroz é de primeira qualidade? Ou ele foi danificado pelo idiota Mahaduta? Quanto arroz tens? Tu tens algum acordo ou acerto aqui em Varanasi para vendê-lo? Fale!”
 
Sorrindo ante a ânsia do banqueiro, Devala respondeu:
- “Eu trouxe mil e quinhentos quilos de arroz de qualidade superior. Um único dos sacos molhou um pouco na lama. Nada tenho prometido ou planejado, mas apenas pretendo levá-lo para o mercado amanhã de manhã, com a finalidade de negociá-lo.”.
 
-"Esplêndido! Esplêndido! Então tu irias para o mercado?" - disse Malik esfregando suas mãos... “Presumo que tu aceitarás o triplo do preço que poderias obter no mercado, não?"
- "Aceito.". - respondeu Devala.
- "Claro que sim..." - disse o banqueiro.
 
Malik chamou seus servos para descarregar o arroz do carroção de Devala, pagando-o generosamente. Ao mesmo tempo que contava e colocava as moedas de ouro nas mãos de Devala, disse a Pandu:
-"Um homem nunca sabe de onde virá a ajuda quando a mesma for necessária. Nunca percas a esperança, porque a vida é um mistério maravilhoso... E isso conclui o pagamento.".
-"Não malgaste este dinheiro com jogo!" - disse Malik a Devala. E retirou-se contente para continuar com seu jantar.
 
Devala não tinha intenção de gastar o dinheiro em jogos ou apostas. Ele já tinha tomado a resolução de ir ao mosteiro onde vivia o Venerável Narada e oferecer metade desse benefício para a Tri-ratna (Três Jóias: Buddha, Dharma e Sangha). O resto levou para sua casa e gastou cuidadosamente, conforme as necessidades se apresentavam. A partir daquele dia, Devala viveu prosperamente. Por causa de sua honestidade e sabedoria as pessoas de sua cidade vieram a considerá-lo como um líder.
 
 
 
Pandu reencontra-se com o Venerável Narada.
 
 
No dia seguinte à tarde, Pandu foi para o Mosteiro perto da entrada oeste da cidade. Narada recebeu-o no quarto de hóspedes. Após ter ouvido o joalheiro narrar o que aconteceu na pousada, o monge disse:
- “Tu ainda tens muitas dúvidas e prefiro não dar a explicação completa do que me pedes, porque tu não a aceitas. Tua fé não é tão completa quanto a de Devala, o agricultor, então tu ainda terás que passar por mais provas antes de seres capaz de tornar-te um verdadeiro discípulo do Buddha.”
- “Venerável Mestre do Dharma” - Pandu humildemente disse -  “rogo-te que me expliques, porque então poderei seguir melhor teus sábios conselhos.”.
- “Bem... Guarde o que vou te dizer e reflita bem nisso. No futuro tu serás capaz de compreender. Já expliquei como todos e cada um de nós cria seu próprio destino de acordo com suas ações. Seu amigo rico, Malik, por exemplo, tem muitas bênçãos, embora mui pouca sabedoria. Acredita que a roda da fortuna, como ele a chama, dá giros e voltas misteriosamente. Mas não há nenhum mistério. Sua prosperidade e felicidade não têm nada que ver com qualquer força fora de suas ações, palavras e pensamentos. Nascimento após nascimento ele é rico e feliz simplesmente porque, a cada nascimento ele foi gentil e generoso. Não acho que ele trataria de qualquer maneira um seu escravo à maneira como tu fizeste a Mahaduta.”.
- “É verdade” - disse Pandu -  “ele tentou me impedir; mas eu estava furioso... e eu não ouvi.”.
- “Sim” - disse Narada acenando. “E não penses que estás livre da dívida contraída com Mahaduta por ter feito com que ele fosse torturado de forma cruel e sem razão. Não penses que tu estás sozinho neste mundo, ou que tuas ações não têm consequências. Lembre-te que mais cedo ou mais tarde cada um de teus atos, bons ou ruins, grandes ou pequenos, te serão restituídos da mesma maneira e na quantidade exata. Daí o ditado: "Plante legumes e tu colherás legumes; plante melões e colherás melões". A bondade produz coisas boas, enquanto a maldade traz coisas malignas. Trata todos os seres vivos da mesma forma como tu gostarias de ser tratado[*]. É verdade que tu não és diferente dos demais. Tu és feito da mesma substância básica como o resto dos seres vivos. Isso é porque, em cada um dos teus pensamentos e ações, está relacionados com o resto dos seres vivos de uma forma ainda mais íntima do que o relacionamento entre os órgãos de seu corpo.
 
[nota:  "Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam a vós, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é toda a Lei e os Profetas.". São Mateus 7:12.]
 
 
- “Se tu podes realmente entender isto em teu coração - continuou a Narada -, "tu já não terás mais vontade de causar dano a outros seres vivos, porque tu entenderás que eles são iguais a ti [uma estrutura de originação dependente]. Tu sentirás seu sofrimento como o teu próprio e sempre tentarás ajudá-los. Deixe este versículo te servir como guia:
 
Aquele que causa danos ao outros prejudica a si mesmo;
Quem ajuda os outros se ajuda ainda mais.
Para encontrar o Caminho puro, o Caminho da Luz,
Abandone a falsidade de que tens um ego substancial.
 
Pandu levantou-se e caiu sobre seu rosto três vezes ante o mestre do Dharma, algo que nunca fizera antes com ninguém. Então ele disse:
- “Não esquecerei tuas palavras, Mestre do Dharma. Farei o necessário para que se construa um mosteiro em minha cidade natal Kaushambi, para que as pessoas de lá tenham a oportunidade de ouvir este maravilhoso Dharma. Eu só espero que o Mestre do Dharma, com sua compaixão, me ajuda a completar este voto que faço agora.”.
 
Os anos passaram e Pandu, o joalheiro, prosperou. Ele se refugiou no Dharma, sob instruções de Narada, tornando-se seu discípulo e foi um dos que deu mais doações e ofereceu proteção material ao Mosteiro de Kaushambi, o qual ele próprio havia ajudado Narada a fundar. Sempre que podia pôr de lado seus negócios, Pandu vinha ao mosteiro para  ouvir as leituras e explanações sobre os Sutras, predicados por Panthaka, abade do mosteiro e discípulo mais velho de Narada. Pandu sempre estava disposto a receber instruções de Narada, quando o velho mestre visitava a cidade, mas nunca colocava em prática os ensinamentos que ouvia. Ele pensou que o cultivo dos ensinamentos fosse coisa para monges e seus negócios materiais ainda o mantinham demasiado ocupado.
 
 
 
Pandu se reencontra com Mahaduta.
 
 
Um dia, seis ou sete anos desde seu primeiro encontro com o venerável Narada no caminho para Varanasi, a oficina de joias de Pandu recebeu uma encomenda muito especial. O rei de um país vizinho, do outro lado das montanhas, queria uma nova coroa real. Ele tinha ouvido falar sobre os produtos de alta qualidade da joalheria de Pandu. A coroa tinha que ser de ouro com as melhores pedras preciosas de toda a Índia. Os reis da Índia sempre tiveram um fraco por pedras preciosas e Pandu tinha muitas vezes sonhado em se tornar um joalheiro oficial, agregado a uma família real, porque assim ele iria assegurar não só a prosperidade, mas também grandes riquezas. Agora chegava sua oportunidade.
 
 
Pandu ordenou a seus artífices comprar as melhores safiras, rubis e diamantes que pudessem  encontrar. Ele investiu a maioria de seu patrimônio na confecção da peça real. Desenhou e trabalhou a coroa ele mesmo. Em seguida, usando uma grande escolta de homens armados para proteger-se de ladrões nas montanhas, foi viajar para o país vizinho, a fim de finalizar o negócio.
 
 
Tudo estava bem até que eles chegaram a um caminho estreito perto do topo da montanha. Um grupo de ladrões viciosos desceu como uma manada sobre a caravana. Embora a escolta de Pandu fosse maior em número, o susto dos cavalos e o caminho estreito dificultaram a defesa.
 
 
Em questão de minutos, os homens de Pandu tinham sido desarmados. Dois homens sujos e barbudos abriram a porta da carruagem do joalheiro, levaram-no para fora e, após atirarem-no ao solo, começaram a golpeá-lo. Pandu aguentou os golpes, pensando somente no saco escondido sob suas roupas, pressionando-o contra o peito. No saco estava uma coleção de pedras preciosas, com o qual ele havia planejado ganhar a afeição da filha do rei e da rainha, além da coroa.
 
 
- “Parai um momento!” - se ouviu gritar. Era uma voz que Pandu tinha ouvido antes, embora no início ele não se lembrasse de quem poderia ser. - “Parai de goleá-lo, eu disse!”.
 
 
Pandu abriu os olhos. Diante dele, vestido em peles de animais e com um pano vermelho na cabeça estava ninguém menos que Mahaduta, o escravo fugitivo, o qual ele tinha mandado  maltratar e torturar, anos antes. Pandu tinha ouvido falar que entre os ladrões das montanhas o chefe mais importante era um escravo de Kaushambi. O que nunca tinha lhe ocorrido é que o líder se tratava de seu próprio escravo Mahaduta.
 
 
- “Verificai o que é o que ele tem em sua mão direita” - Mahaduta ordenou firmemente. 
Um dos homens que tinha espancado o joalheiro pôs seu joelho sobre o estômago de Pandu e o outro sobre o braço separado do corpo e, assim, tomou o saco que o mesmo tentatva ocultar e manter consigo sem grandes problemas.
 
 
- “Guardarei isto. Eu já paguei por ele” - disse Mahaduta. Pegando da bolsa, guardou-a sob sua túnica de peles.
 
 
- “Não é mesmo, amo?”  - perguntou Mahaduta a Pandu, em tom cínico e cheia de amargura.
 
- “Devemos matá-lo, então?” - perguntou um dos ladrões.
 
 
Mahaduta olhou para Pandu, mas em vez de raiva ou medo, algo que poderia ter aumentado o seu ódio, ele só viu a tristeza e resignação nos olhos de sua vítima. Ele não sabia que Pandu estava se recordando das palavras do Venerável Narada, tão claras como se ele as tivesse ouvido ontem:“E não penses que estás livre da dívida contraída com Mahaduta por ter feito com que ele fosse torturado de forma cruel e sem razão. Não penses que tu estás sozinho neste mundo, ou que tuas ações não têm consequências”... “Se tu podes realmente entender isto em teu coração, tu já não terás mais vontade de causar dano a outros seres vivos, porque tu entenderás que eles são iguais a ti. Tu sentirás seu sofrimento como o teu próprio e sempre tentarás ajudá-los.”... Pandu suspirou. De repente se deu conta de que nunca aceitou as instruções de seu preceptor. Nunca realmente acreditou que elas fossem dirigidas a ele, mas sim para ser aplicados por outros. Ia morrer agora, de uma maneira violenta e antes do tempo, sem a chance de dizer adeus a sua família. Ele tinha sido a causa de tudo, a culpa era dele mesmo.
 
Nem sequer uma única vez tinha ocorrido em sua mente pensar sobre o destino de seu escravo, Mahaduta. Os sofrimentos que Mahaduta deveria ter passado nas montanhas durante os dias gelados de inverno; o caminho do mal que Mahaduta havia adentrado, cheio de desespero e perigos, empurrado pelas ações de Pandu. Todas estas considerações nunca haviam passado por sua cabeça. Mas agora era a hora de acertar as contas. Limpou a garganta e humildemente disse a Mahaduta:
- “É verdade, tu já pagaste.”.
 
Pandu virou a cabeça e ficou esperando o próximo golpe. Para sua surpresa, Mahaduta disse aos seus homens:
- “Deixai-o aí no chão. Sua carruagem tem um compartimento secreto debaixo do assento do motorista. Aberto vós encontrareis um baú cheio de moedas de ouro. Vamos dividi-lo em partes iguais. Hoje é um grande dia para todos nós.”.
 
Os assaltantes saltaram para dentro do carruagem com grande excitação. Mas Mahaduta não sentiu nenhuma alegria por realizar sua vingança. Tinha passado muitas manhãs frias, desejando que chegasse um momento como este. E agora que finalmente isto tinha chegado, sentia pesar e remorso, como se estivesse maltratando um membro de sua própria família. Dirigiu-se a seus homens, dizendo-lhes para parar de bater nos homens de Pandu.
- “Não matem nenhum; preocupai-vos em levar tudo o que puderdes.”.
 
 
O baú cheio de ouro serviu para eles como uma distração. Estava escondido no lugar onde Mahaduta o tinha colocado tantas vezes nos últimos anos. O chefe dos ladrões deixou que Pandu e seus homens deixassem as montanhas e voltassem para Kaushambi. Essa noite, quando seus cúmplices estavam a contar ouro e rindo, Mahaduta escondeu a bolsa que tinha tomado de Pandu numa fenda em sua caverna. Ele não tornou a tocar nela por um longo tempo.
 
 
 
Pandu reconhece os próprios erros, resigna-se e converte-se.
 
 
Após o roubo, Pandu já não era um homem rico. O joalheiro havia perdido a maior parte de seu capital e sem capital pouco se pode fazer. Mas ele não culpou ninguém por sua perda, senão a si mesmo.
- “Quando era jovem me comportei mal com os outros” - disse para sua família... “O que aconteceu comigo agora é simplesmente o pagamento por minha arrogância e dureza.”.
 
O arrependimento e o desejo de cultivar adequadamente os ensinamentos do Buddha vieram para ele agora de uma forma natural e Pandu aderiu à prática de recitar o nome de Buddha, sempre que sua mente não estivesse envolvida em negócios materiais ou conversações com as pessoas.
 
Gradualmente percebeu, no fundo do seu coração, que agora estava mais feliz do que quando ele era rico. A única coisa que se ressentia era que já não podia fazer oferendas ao mosteiro para apoiar o Dharma ou ajudar as pessoas pobres da cidade, algo que, antes de sua conversão, nunca tinha pensado muito em fazer.
 
 
 
Mahaduta e o Venerável Panthaka. A história do ladrão Kandata.
 
 
Vários anos se passaram. Um dia, Panthaka, abade do Mosteiro de Kaushambi, foi atacado pelo bando de Mahaduta, enquanto caminhava em uma peregrinação através das montanhas. Panthaka não levava dinheiro e Mahaduta deu-lhe alguns socos e deixou-o seguir. Panthaka, porém, com os golpes,  não caminhou mais naquele dia, preferindo se refazer.
 
Na manhã seguinte, logo após retomar caminho, Panthaka ouviu gritos de luta ao lado da estrada. Um homem urrava de dor. Panthaka apressou-se, na esperança de dissuadir os bandidos de modo qu deixassem de golpear o viajante. Mas em vez de um viajante inocente, era o próprio Mahaduta que estava sendo atacado, cercado por uma dúzia de seus próprios homens, como um leão acuado por cães de caça. Com sua vara Mahaduta derrubou vários dos ladrões, mas, finalmente, sucumbiu. Ele foi espancado com sua própria vara, até que ficasse estirado no chão.
 
Panthaka permaneceu oculto até que os bandidos se fossem. Então se aproximou de Mahaduta e viu que lhe restava pouca vida. Panthaka desceu a um riacho que corria entre as rochas, não muito longe dali. Encheu seu cantil com água fresca e levou-o para o homem moribundo.
Mahaduta bebeu e abriu os olhos lentamente. Ele gritou de dor:
 
- “Onde estão esses bandidos que tantas vezes eu conduzi para a vitória? Teriam sido enforcados há muito tempo se não fosse por mim”..
 
- “Acalma-te!” - disse Panthaka. “Não penses em teus camaradas nem nos crimes que fizeram juntos, pense sobre teu destino. Agora bebe água e deixa-me atar os ferimentos. Talvez tua vida possa ser salva.”.
 
Mahaduta olhou atentamente para Panthaka, pela primeira vez.
- “Tu és o monge a quem golpeei ontem mesmo! E agora tu vens salvar-me. Tu me envergonhas.”.
Ele bebeu um pouco mais de água e olhou ao redor dele.
 
- “E os outros escaparam. Cães ingratos! Fui eu quem os ensinou a lutar e agora se voltam contra mim..."
 
- “Tu os ensinaste a lutar” - disse Panthaka, - “e te pagam lutando. Se tu lhes tivesse ensinado a bondade, serias pago com amabilidade. Recebeste a colheita que semeaste.”
 
- “O que dizes é verdade. Muitas vezes temi que ainda se voltariam contra mim... ”,  - se queixou Mahaduta quando Panthaka tentou levantar-lhe pelo ombro.
 
- “Não acho que possas salvar a minha vida, mas diga-me, se está ao teu alcance, como posso salvar-me dos sofrimentos do inferno, os quais mereço como pagamento por uma vida de iniqüidade? Ultimamente, sinto como se meu fim estivesse próximo, e a angústia do que virá a seguir me pesa como se carregasse uma grande pedra pressionando meu peito; às vezes, asfixiado por esta possibilidade,  mal consigo respirar.”.
 
- “Arrepende-te sinceramente de tuas faltas e ofensas e reforma-te.” - Panthaka disse. “Arranca pela raiz a ganância e o ódio de teu coração e, em vez disso, preenche-o com pensamentos de amor para com todos os seres vivos.”.
 
- “Mas eu desconheço esses bons sentimentos” - disse Mahaduta. “Minha vida tem sido uma história cheia de maldade, sem nada de bom. Eu vou direto para o inferno sem ter a oportunidade de ir pelo Caminho nobre pelo qual tu tens caminhado, mestre do Dharma!
 
- “Não te desesperes...” - respondeu Panthaka. “E não subvalorize o poder do arrependimento e da reforma. Lembra-te de que um único pensamento de arrependimento sincero pode riscar dez mil eons repletos de maldade.
 
Já ouviste falar do grande ladrão Kandata, que morreu sem se arrepender e, por sua cruedades na terra, caiu no Inferno Avici? Depois de ter sofrido lá durante vários eons, aparecendo o Buddha Sakyamuni no mundo, alcançou a iluminação sob a árvore Bodhi. Naquele momento da iluminação do Buddha Shakyamuni, raios de luz emitiram-se espontaneamente por entre suas sobrancelhas [*], alcançando os céus e também a região do Inferno Avici e inspiraram os seres que lá estavam sofrendo em decorrência de seu karma a ter esperança e a procurar uma nova chance. Olhando para cima, Kandata viu que os raios de luz vinham do Buddha Shakyamuni meditando debaixo da árvore Bodhi e suplicou:
 
-“Salvai-me, salvai-me, ó Honrado pelo mundo! Estou sofrendo aqui por todo o mal que fiz, e não posso sair! Me ajude a trilhar o caminho que tu percorreste, ó honrado pelo mundo!”
 
[nota: a respeito da luz emitida de entre as sobrancelhas do Buddha Shalyamuni, ela se trata de um dos sinais característicos de sua iluminação. Conforme podemos ler, por exemplo, no capítulo inicial do Sutra do Lótus (Saddharma Pundarika Sutra):  “Buddha Shakyamuni emitiu um raio de luz do tufo de pêlo branco entre as suas sobrancelhas, um dos seus sinais distintivos, iluminando dezoito mil mundos na direção Oeste. Não houve lugar algum onde a luz não penetrasse, alcançando desde baixo o inferno Avicci até ao alto, o céu de Akanishtha.”...]
  
Buddha, na força do desabrochar de sua iluminação, olhou  para o Inferno Avici  e viu Kandata.
- “Guiar-te-ei em tua liberação” - disse para o ladrão -, “mas isto deve ser através de teu próprio karma. Que coisas boas fizeste, Kandata, quando estavas no mundo dos homens?”.
 
Kandata permaneceu em silêncio, uma vez que tinha sido um homem muito cruel. Mas o Honrado pelo mundo, na percepção de seu olho búdico, olhou a acumulação kármica de Kandata e viu que uma vez, quando ele estava andando por um caminho na floresta, evitou pisar numa aranha e pensou: "a aranha não feriu a ninguém, porque iria eu esmagá-la?". Vendo isso, o Buddha enviou uma aranha, a qual, à sua vez, soltou um fio muito fino de teia que desceu até o Inferno Avici.
- “Segura firme o fio de teia” -  disse a aranha. “E sobe depressa!”.
 
Kandata apressou-se em agarrar-se ao fio e assim começou a subir. O fio estava aguentando bem. Subia rápido, e cada vez mais alto. De repente ele notou que o fio tremia, como se um novo peso houvesse se lhe adicionado. Kandata olhou para baixo e viu que outros seres condenados ao inferno haviam começado a subir pelo fio de teia, tal qual ele. O fio estirava-se cada vez mais, porém sem romper-se. Mais e mais seres do inferno agarravam e passavam a subir pelo fio de teia. Kandata já não olhava para o Buddha, ao invés disto, cheio de medo, olhava para os outros seres do inferno subindo atrás dele. Kandata interrompeu sua escalada: - “Como pode este único fio de teia suportar o peso de todos?” - refletiu.
- “Este fio de teia é meu! Este fio de teia é meu!” - Gritou aos que vinham atrás. “-Deixai-o! Deixai-o! É meu!”
Imediatamente o fio se rompeu e Kandata e os demais caíram novamente nos infernos.
 
 
 
Mahaduta considera o exemplo da história de Kandata e morre.
 
 
- "O arrependimento de Kandata não foi sincero” - disse Panthaka a Mahaduta. “Não se emendou. O fio de teia teria resistido até o fim, porque um pensamento generoso tem força suficiente para salvar a vida de milhares [*]. Mas Kandata rompeu o fio de teia. Aferrou-se à ilusão do ego e maus hábitos eram arraigados e fortes nele. Não estava disposto a ajudar os outros. Mesmo o honrado pelo  mundo não pode salvá-lo.”.
 
 
[nota: o Buddha Shakyamuni cumpriu o Sanatana Dharma (Lei Eterna) e a Justiça. Kandata, em decorrência de acumulações  molestas não corrigidas enquanto em vida,  haveria de subir por seu próprio karma, pois não padecia injustamente nas esferas de restrição... O que há de ser feito, há de ser feito enquanto nesta efêmera existência humana...]       
 
 
- “Entendo. Deixa-me pensar e verificar se encontro em mim mesmo um 'fio'   que possa ajudar-me” - disse Mahaduta chorando. “Se houver alguma coisa boa que possa ser feita, não a guardarei para mim”.
 
Os dois homens permaneceram em silêncio por um tempo. Enquanto isso, Panthaka lavou as feridas do Mahaduta. O chefe dos ladrões respirava agora com tranquilidade. No final, ele disse:
- “Há uma coisa boa que fiz uma vez, se se pode chamar 'bom' o parar de fazer algo mau.”.
 
- “Sim, pode” - falou Panthaka.
- “Sim, há uma coisa boa que eu ainda posso fazer. Tu sabes, por acaso, de Pandu, o rico  joalheiro de Kaushambi?”
- “Eu sou de Kaushambi e conheço-o bem” - disse Panthaka. “Embora ele não seja mais rico.”.
 
- “Não mais? Lamento ouvir isso. Algo raro alguém dedicado aos negócios como ele perder os bens. Eu deveria estar contente, porque foi Pandu quem me ensinou a ser rude e a maltratar as pessoas. Quando eu era um jovem escravo, mandou-me  aprender a lutar com um lutador, com o objetivo de fazer-me seu guarda-costas. No intuito de fazer-me habilidoso e determinado como seu segurança pessoal, sempre que eu abusava de alguém, ele me recompensava. O coração dele era duro como uma rocha. Uma vez ele fez com que eu fosse açoitado... e foi então quando fugí para as montanhas. Ouvi dizer que mudou, e agora é conhecido em todos os lugares por sua bondade e benevolência. É difícil imaginar. Isso é verdadeiro,  Mestre do Dharma?.".
- “Sim; assim é” - disse Panthaka. “O poder do arrependimento sincero é verdadeiramente inconcebível e nunca deixa de nos surpreender.”.
 
- “Muitas vezes planejei me vingar desse homem” - Mahaduta continuou. “Desejava torturá-lo da mesma forma como ele me torturou. Quando finalmente caiu em minhas mãos, olhei seu rosto, enquanto ele estava caído indefeso na estrada, espremendo um saco de jóias contra seu peito, resignado a morrer, mas não pude, entretanto, fazê-lo, mestre do Dharma. Senti como se fosse torturar meu próprio irmão.”.
 
- “Todos os homens são irmãos” - disse Panthaka. “Cada homem tem sido seu pai em uma vida passada e cada mulher sua mãe. E com este homem, especialmente, tu tens fortes laços de afinidade, para bem e para mal.”.
Mahaduta concordou:
 
- “Deve ser assim. Naquele dia eu despojei Pandu de suas jóias e ouro, mas deixei que ele e seus homens fossem embora. Dei o ouro a meus capangas para que eles não protestassem e aceitassem deixá-los escapar vivos. Mas ainda tenho uma bolsa de joias escondidas em uma fenda numa caverna. Por algum motivo não consegui me livrar delas. Não era só pela questão de tratar-se a coroa, em vista de seu valor, de difícil venda. Eu senti que tinha que mantê-la comigo para algo. Não sabia porque. Agora me alegro em ter decidido desta forma.
 
Mahaduta parou momentaneamente e voltou-se para Panthaka:
- “Concede-me um último favor, Mestre do Dharma. Minha caverna está atrás de um cedro muito alto que fica junto do riacho, a meia milha acima de nós. Tu podes ver o topo do cedro pelo caminho na estrada. A coroa de Pandu e suas jóias estão em uma fenda vertical à esquerda da entrada da caverna. No fenda, siga em frente e então acima e à direita. Conseguirá lembrar?”.
- “Sim” - respondeu Panthaka.
 
Mahaduta continuou:
- “E ele não deverá ir só. Diga a Pandu que recrute trinta homens armados. Meus homens são poucos e sem mim falta-lhes coragem. Pandu poderá derrotá-los facilmente. Diga a Pandu que lamento o ocorrido, e que desejo que reconquiste toda sua riqueza novamente. Desejo a todos os homens riqueza e felicidade, toda a riqueza e felicidade que lhes roubei. Se sobreviver ou em  minha próxima vida, me comprometo a ser como tu, Venerável Mestre do Dharma e ajudar os homens capturados na teia do sofrimento que eles próprios criaram com suas ações irrefletidas e estúpidas.”.
 
Mahaduta esgotado, se reclinou. Já não sentia nenhuma dor por suas feridas, mas sua vida estava acabando. 
 
De repente, um grande sorriso apareceu em seu rosto. Ele levantou a mão apontando para cima e exclamou:
- “Olha! O Buddha está ali em seu assento, prestes a entrar no Nirvana. Seus discípulos, os grande Arhants, estão a seu redor! Ele está sorrindo para mim!”.
 
O rosto de Mahaduta começou a resplandecer.
- “Que maravilhosa benção veio ao mundo!”...
 
- “Sim, foi uma benção” - disse Panthaka. “Ele apareceu no mundo por causa de sua compaixão por todos os seres vivos, para nos instruir sobre o que mais importa: o problema da vida e da morte. Ensinou-nos a despertar do sofrimento deste mundo e ensinou-nos que o desejo egoísta é a fonte de todas as dores. Ele nos ensinou o caminho correto para pôr fim ao sofrimento. Ele nos ensinou a moralidade, concentração e sabedoria para remover nossa ganância, enfado, raiva e ignorância. Ele mesmo, através de muitas vidas de cultivo e renúncia, pôs fim aos seus próprios desejos egóicos e com bondade, compaixão, alegria e generosidade, ofereceu-se-nos como um exemplo. Se todos os homens e mulheres pudessem refugiar-se com Ele, este mundo não seria o local pobre e perigoso que é agora.”.
 
Mahaduta assentiu. Bebeu das palavras do monge como um homem sedento a quem  se oferece água fresca. Ele tentou falar, mas não pôde continuar. Panthaka entendeu o que ele queria e lhe  administrou os Três Refúgios, para que também pudesse ser um discípulo da Triratna (Buddha, Dharma, Sangha). Panthaka  pronunciou para ele os Quatro Grandes Votos do Bodhisattva:
 
"Os seres vivos são inumeráveis; faço o voto de salvá-los.
As aflições são intermináveis; faço o voto de extinguí-las.
As portas para o Dharma são incontáveis; faço o voto de penetrá-las.
O caminho de Buddha é insuperável;  faço o voto de cumprí-lo...
 
 
Ele também repetiu três vezes o versículo de arrependimento do bodhisattva:
 
"De todo o mal que eu fiz no passado,
Causado por cobiça, ódio e estupidez sem limites,
E produzido através da boca, demais membros do corpo e mente,
Agora me arrependo e emendo.".
 
 
E o seguinte verso:
 
"As ofensas decorrentes da mente serão arrependidas na mente.
Quando a mente é extinta, as ofensas desaparecem.
Com a mente em repouso e apagadas as transgressões, 
ambas pairam vazias.
Isto é chamado o verdadeiro arrependimento e reforma.".
 
 
Enquanto Panthaka estava recitando, Mahaduta exalou pela última vez. 
Morreu com um sorriso no rosto...
 
 
O Fim.
 
Panthaka foi com eles, e após haver cremado o corpo de Mahaduta e recolhido suas cinzas em uma urna [*], conduziu o povo presente na recitação de Sutras e mantras. Ele falou brevemente sobre o poder do karma e o poder ainda maior de arrependimento e da reforma. Ele também recitou os seguintes versos:
 
Ninguém pode nos salvar exceto nós mesmos.
A força gerada em nós é mais efetiva que a força derivada de outros.
Nós mesmos devemos trilhar o caminho da iluminação correta,
Com Buddha como nosso grande mestre e guia.[**]
 
[nota: (*) os budistas não lançam as cinzas em rios, como os hindús.].
 
 
-“Nosso velho mestre Narada” - Panthaka continuou -, “sempre nos lembrou que somos os únicos responsáveis por nossas próprias ações, e que somos responsáveis pelo que nos acontece como resultado dessas ações. Nem Indra nem Brahma nem outro ser irá nos premiar ou punir [**]. Nós  recompensamos e punimos a nós mesmos. Tudo vem da mente, e, portanto, o mundo é exatamente como nós o criamos. Este homem, Mahaduta, quem hoje podemos ter cremado e separado suas cinzas, levou uma vida de maldades, guiado por maus pensamentos, nunca felizes. Mas no final ele mudou. Seu arrependimento e votos de reforma comoveram o próprio Buddha, que apareceu diante dele e o abençoou. Sua vida terminou com uma ação de perdão e morreu feliz. Todos nós podemos aprender com seu exemplo, porque nenhum de nós é livre de faltas e falhas. A força do Karma nos conecta a todos como uma teia de aranha, criada porém por nós mesmos. E ao mesmo tempo, todos somosa capazes de nos libertar através do arrependimento sincero.". 
 
 
[nota:  (**) a finalidade das tradições espirituais é facultar às comunidades nas quais elas estão inseridas conexão e interação com a Dimensão Sagrada, mediante transmissões (ritos) e ensinamentos.  A responsabilidade é pessoal; a salvação e/ou a liberação são individuais. Nenhuma tradição espiritual nunca predicou que os objetivos de reintegração possam ser obtidos sem a tomada das medidas necessárias por nós mesmos, ainda que para alguns poucos essas medidas possam ser até mesmo minimais. Nenhuma tradição espiritual, mesmo aquelas não posicionadas com uma Doutrina da Causalidade como a que está estabelecida no contexto hindo-budista, jamais especulou que homem algum colherá aquilo que não semear. O desenvolvimento interior/espiritual - e o interesse nessa construção -  compete a cada qual. Budismo e Hinduísmo explanam, em comum, os mesmos Devas e Maras. Em continuação, a formulação  budista acima apresentada parece renegar alguma formulação cara ao Hinduísmo. Na Índia do Budismo inicial, o Hinduísmo resistiu ao Buddhadharma - e o Buddhadharma, para ter a sua própria posição e se consolidar - precisou resistir também a alguns aspectos do Hinduísmo. Só o correr do tempo trouxe apaziguamento, decidindo os mosteiros budistas por ter, entre os monges, aqueles responsáveis por receber visitantes de outras posições, como eruditos e discorrer sobre assuntos doutrinais (por exemplo: Shri Vagisvarakirti, antes de se tornar abade e Shri Naropa, antes de se tornar yogue). 
No mais, entre os devas, há Yama - que é, também, um bodhisattva Dharmapala – protetor do Dharma - no contexto budista, juntamente com Mahakala/Shiva e Kali. A função kár,ica de Yama é conduzir adequadamente os mortos que não lograram alcançar resultado com a Dimensão Sagrada nem com o nível ético, além de reger as hostes que integram os Infernos (responsáveis pelo cumprimento das condenações decorrentes de posicionamentos e condutas mesquinhos-miseráveis, cruéis, pérfidos  e malignos); e acarear com as próprias obras – bem como tentar livrar - quem fracassou na sua jornada num ciclo temporal de vida. Só vai até Yama quem fracassou, no todo ou em parte significativa, perdendo a conexão com sua família espiritual, se a teve. A conexão com uma familia espiritual é realmente importante; os homens e mulheres sagrados fazem a “ponte” entre nós  a Dimensão Sagrada, bem como podem propiciar direção espiritual idônea: no Buddhadharma há a tomada de refúgio na Triratna (Três Joias): Buddha, Dharma e Sangha. Sei de muitos budistas que não têm dúvidas de que Buddhas, Bodhisattvas e Dharmapalas, Arhants e Mães do Dharma nos ajudam benignamente no processo espiritual, uma vez que sentem a ligação com essas posições budistas em si mesmos, através das sadhanas e demais práticas regulares. Aderir à Triratna implica, a um só tempo, interagir com a Dimensão Sagrada (Buddhas, Bodhisattvas, Arhants, Mães do Dharma - e também os Devas e Maras) e tomar, na Triratna, refúgio. 
 
No Cristianismo, o equivalente é a tríade Cristo, Evangelhos, Igreja - além da comunhão com os santos... Em ambos os casos (na verdade, em todos os casos), a metanoia trata-se de uma profunda e consistente purgção interior e a ascese interior-espiritual é parte integrante e necessária para as elevações e iluminação... Uma ascese interior-espiritual, se adequadamente realizada, confere, entre outras realizações: 1) 'altura', a qual implica, também, 2)  o surgimento de insights e fruições, 3)  a ampliação da estabilidade interior; através disto dissolve-se o sofrimento das dúvidas (“há mesmo céus e infernos?”, “há mesmo anjos e demônios?”, “existe mesmo alguma finalidade última?”, “há mesmo retribuição ou acúmulo de negatividade em decorrência da conduta ética-moral?”, “mas os santos não estão mortos?”, “sucede realmente alguma alteração quando alguém toma refúgio na Triratna ou recebe o batismo ou isto se trata de meras formalidades?”; “Cristo surge para uma pessoa, realmente, nalgum ponto localizado na altura do coração ou isto é apenas o nosso sentimento humano?”, etc...) e é possível oferecer uma ajuda melhor aos outros... São Boaventura, perguntado sobre “o que é Teologia?”, respondeu a um monge que estudava muito: “Só se pode falar daquilo que se experimenta...”. 
 
Por fim, em relação à exposição da doutrina da Causalidade (Hetuvada) aqui, vale lembrar que o que denominamos “Hinayana” ou “Pequeno Veículo”, se trata, com efeito, do Caminho dos samanas  (páli)/sramanas (sânscrito), isto é: ascetas, renunciantes retirados da vida social secular, compromissados com as regras patimokkha (páli)/pratimoksha (sânscrito) acerca da vida monástica, constantes do Vinaya, além do cultivo e desenvolvimento das paramis (páli)/paramitas (sânscrito) ou perfeições (dez paramis no Budismo Hinayana; seis no Mahayana/Vasto Veículo), com um nível alto, mesmo incomum, de estudos e dedicação aprofundada às práticas objetivando ascese interior/espiritual (como as técnicas anapana-sati/atenção no fluxo respiratório, samatha/estabilização e vipassana/insights, samadhis ou contemplações), além de shraddha (shraddha = fé; não, porém, a fé cega, a qual, fundamentada apenas em palavras - ao invés de realizações interiores  - é também inconsequente,  beirando nalguns casos/adentrando em outros, a zona do fanatismo). 
 
A doutrina da parinamana/transferência de mérito é evidenciada com o Buddha Amitabha. Os pranidhana budistas - votos altruístas dos bodhisattvas - são basicamente em um total de dez; mas o Buddha Amitabha tem quarenta e oito pranidhanas, todos objetivando a perspectiva de iluminação direcionada para o bem dos seres sencientes. A recitação contínua do nome do Buddha Amitabha (“Namo Amitabhaya Buddhaya” em sânscrito ou “Namo Amida Butsu” em japonês) implica o cumprimento de outros desenvolvimentos como o cultivo/desenvolvimento das seis paramitas do Mahayana e a decisão pessoal dos votos pranidhana. 
 
No Cristianismo, os fariseus não se surpreenderam por Cristo efetuar curas e milagres, mas se escandalizaram que ele afirmasse ter “poder para, também, perdoar pecados”  (São Marcos 2:1-11 - “O paralítico de Cafarnaum”). Do ponto de vista budista, essa posição de Cristo corresponde a uma posição Parinamana/transferência de mérito. 
 
No Majjhima Nikaya, cap. 130, o Buddha Shayamuni narra – a partir de sua visão interior - o encontro, com Yamaraja, de um homem que preferiu a adesão à mesquinhez e ao mal em sua jornada. 
 
“Bhikkhus, eu lhes digo isso não como algo que ouvi de algum outro contemplativo ou brahmane. Eu digo isso como algo que na verdade eu compreendi, vi e descobri por mim mesmo.”
 
“...os guardiões do inferno agarram esse ser pelos braços e o apresentam ao Rei Yama, dizendo: ‘Senhor, este homem maltratou a mãe dele, maltratou o pai dele, maltratou contemplativos, maltratou brahmanes; ele não demonstrou respeito pelos anciões do seu clã. Que o rei ordene o seu castigo.”. (pela doutrina da Causalidade, cada homem e mulher já tem sido, em algum momento, nosso pai ou mãe)
 
Yama lhe pergunta, polidamente,  se ele nunca fez caso do nascimento, da doença, da velhice, das trangressões e atos vis (crimes e faltas contra as pessoas) e da morte e, refletindo sobre essas circunstâncias, não procurou se dedicar a atos de bondade com a palavra, o corpo e a mente.
 
“Bom homem, nunca te ocorreu, um homem inteligente e maduro, que: “Aqueles que praticam ações ruins estão sujeitos a vários tipos de tortura aqui e agora; então o que acontecerá depois da morte? Sem dúvida, será melhor que eu faça o bem através do corpo, linguagem e mente”?’ O entrevistado respondeu: ‘Eu fui incapaz, venerável senhor, eu fui negligente.’ Então o Rei Yama diz: ‘Bom homem, devido à negligência tu não fizeste o bem através do corpo, linguagem e mente. Com certeza, eles [as hostes dos Infernos] irão tratá-lo de acordo com a tua negligência. Mas essa tua ação prejudicial não foi cometida por tua mãe ou por teu pai, ou teu irmão, ou tua irmã, ou por teus amigos e companheiros, ou por teus pares e parentes, ou por contemplativos e brahmanes ou pelos devas: essa ação prejudicial foi cometida por ti mesmo, e tu somente experimentará o resultado dela...”
 
O entrevistado informa que foi negligente e não se dedicou a atos de bondade com a palavra, o corpo e a mente;  Yama permanece, então, em silêncio...
 
“Agora” - continua o Buddha Shakyamuni - “os guardiões do inferno [tomando aquele homem] torturam-no com os cinco espetos. Eles atravessam a mão dele com um espeto incandescente, atravessam a outra mão com um espeto incandescente, atravessam um pé com um espeto incandescente, atravessam o outro pé com um espeto incandescente, atravessam a barriga com um espeto incandescente. Assim, ele sente sensações dolorosas, torturantes e penetrantes. No entanto, ele não morre enquanto aquela ação prejudicial não tiver esgotado o seu resultado..”. 
 
Essa questão da regressão e queda no Inferno Avici – para aqueles que têm confiança no Buddha, uma vez que ele expõe uma narrativa que acompanhou através de sua visão interior -, do ponto de vista do estudo comparado das religiões, faz lembrar que Cristo recebeu, também, perfurações nas duas mãos e nos dois pés. A quinta perfuração foi feita pelo soldado Longinos, justamente na região lateral da área abdominal... estando as cinco perfurações correlacionadas à condenação do Inferno Avici, desde esta apreciação, Cristo, que já antes - sendo a Encarnação do Verbo - e muito mais ainda após seu calvário (o calvário se dá sobre a humanidade de Cristo, sobre o homem Jesus)  tem poder para perdoar pecados, conceder refúgio e guiar tanto para a salvação quanto para a liberação (liberação para  aqueles, obviamente, com vocação para a perspectiva do Conhecimento Direto, Unitivo)... Desse texto emerge não apenas uma compreensão fundamentada em documento tradicional oriental sobre a  validade do sacrifício de Cristo, mas, também, pela compreensão da profundidade desse sacrifício, é possível intuir a validade da elevação interior atingida por São Francisco de Assis (o qual recebeu a dádiva das cinco chagas de Cristo). No Japão do século XIV, embora os budistas se contrapusessem ao Catolicismo por não conhecer a integralidade da doutrina, ainda assim viam Cristo como um Buddha - da mesma forma como o Buddha Amitabha...
 
A observação da doutrina da Lei do Karma e a resolução de observar valores éticos sem a tomada de Refúgio e demais desenvolvimentos (estudos e práticas de ascese interior/espiritual) nos conduzirá somente à realização do nível ético. Não há iluminação nem elevações significativas sem a realização do nível ético, uma vez que o mesmo as integra como patamar necessário e não-prescindível;  mas o nível ético, sozinho, de per si, não faz nem as elevações nem  a iluminação, as quais dependem também do cumprimento dos demais desenvolvimentos como o estudo e as etapas da ascese interior/espiritual...]   
 
 
Panthaka fez com que na tumba onde a urna com as cinzas de Mahaduta foi depositada fosse anotado o seguinte epitáfio sobre uma lápide:
 
“Aqui jaz Mahaduta, 
que foi ladrão de estradas.
Viveu cercado de violência; 
e a violência trouxe sua queda.
 
No final, arrependeu-se 
e devolveu os frutos de seu roubo.
E prometeu trilhar o Caminho Correto.
 
O Buddha sorriu-lhe 
e confirmou sua transformação.
Maha Prajna Paramita!”...
 
 
A lápide ao lado da passagem da montanha acabou sendo conhecida como “a tumba do ladrão arrependido”, e anos mais tarde um altar foi construído ao seu lado. Ali viajantes e peregrinos paravam, se prostravam ante o Buddha e rezavam para ter uma boa viagem e para a conversão dos homens maus. 
 
 
Pandu tornou-se novamente um homem rico; e ainda mais rico do que já tinha sido. No entanto, ele era agora mais interessado em fazer doações do que em ganhar dinheiro e deixou que seus filhos se encarregassem dos negócios. Ele fez o melhor que pode para ensinar a seus filhos que a prosperidade alcançada de forma fraudulenta não é duradoura e que se eles fossem generosos e amáveis com os outros garantiriam, assim, um futuro feliz. Sua morte veio pacificamente, a uma idade avançada. Quando sentiu que sua morte era já próxima, chamou seus filhos, filhas e netos para junto de sua cama e disse-lhes :
 
- “Queridos filhos  e crianças, se no futuro algo ruim acontecer em vossas vidas, não culpeis aos outros, mesmo que pareça que eles são a causa da vossa desgraça. Olhai para dentro de vós mesmos. Vede onde sois orgulhosos, gananciosos, ávaros ou rudes. Emendai as falhas dentro de vós mesmos, pois é algo que vós sempre podeis fazer. Se a mudança parece estar além de vossas possibilidades, procurai a ajuda de um professor do Dharma e rezeis para os Buddhas e Bodhisattvas para ajudá-los. Uma vez que mudeis vossos defeitos, felicidade e boa fortuna virão de uma forma natural. E quando bastem  não as guardeis para vós próprios, mas compartilhai. Então elas nunca secarão de vosso rumo. Lembrem-se de mim, através do versículo que entoarei, e que o venerável Narada me ensinou quando o conheci pela primeira vez: 
 
Aquele que causa danos aos outros prejudica também a si mesmo;
Quem ajuda os outros  ajuda a si mesmo ainda mais.
Para encontrar o Caminho Puro, o Caminho da luz,
Abandonai a falsidade de que tendes um ego substancial...”.
 
 
                                   _______________________
 
 
 
CRISTIANISMO. JUDAÍSMO.
 
Entre as questões sensíveis, importantes para a Teologia ocidental – e que, justamente por assim serem, conduziram a muitos para uma melhor compreensão do que realmente é a Divindade [*] – estão a questão do Mal, das guerras e misérias,  e de por quê coisas ruins sucedem a pessoas que procuram seguir, em suas vidas pessoais, o bem. Uma das respostas da Teologia cristã é que o mal é uma insuficiência – o que é verdadeiro [**] . Outra, que Cristo padeceu por nós com dignidade e sem negar o Pai (valor ético-espiritual para os cristãos). Finalmente que, pela verificação dos informações contidas nos documentos do Novo Testamento, a ocorrência de situações aflitivas, como misérias e guerras - apesar da possibilidade de uma vida espiritual verdadeira -, num sentido geral orienta os cristãos a estarem atentos,  vigilantes para um declínio das condições do homem – ao invés de algum “paraíso terrestre”.
 
 
As orientações judaico-cristã e islâmica, não lidam com a Causalidade na perspectiva hindo-budista de relação karma-renascimento. Mas a interioridade humana tem questionamentos: os protestantes, por exemplo, desenvolveram uma espécie de “doutrina da hereditariedade”. Se há elementos desestruturados na linha genealógica de meus familiares – uma consideração envolvendo várias gerações, como na Bíblia - a ocorrência de tendências desviadas (vícios, crime, má-índole, psicastenias) nos descendentes deve ser pesquisada também em sua árvore genealógica. Essa doutrina é questionável em muitos aspectos, mas demonstra a indagação e preocupação das pessoas com respostas, ao menos, aceitáveis. Nas narrativas bíblicas, voltando ao exemplo do 2º livro do Profeta Samuel, capt. 11,  o próprio rei David, tendo sido o escolhido para receber a unção determinada pelo Senhor dos Exércitos (YHWH) ao profeta Samuel, acabou, mesmo encontrando-se ungdo e favorecido pelos Céus,  por cometer um adultério e um homicidio a traição (de seu oficial militar de confiança, Urias) o que teve consequências desastrosas para o rei David individualmente e também para o reino, o qual, no final, com a falha ulterior do rei Salomão, se divide em dois: as dez tribos de Israel e as duas de Judah/Benjamin, além da sequência de infidelidades no domínio religioso para com o Senhor dos Exércitos (YHWH), cometidas por reis, nobres e mesmo os próprios sacerdotes de Israel e Judah.
 
[notas: (*) as declarações do próprio Cristo nos Evangelhos evidenciam que a questão do Pai trata-se de um mistério acima da comprensão humana ordinária...
(**) há também a questão da “Queda” do homem – tanto a “Queda”, no contexto judaico-cristão, quanto a Avidya/Ignorância no contexto hindo-budista, implicam, para sua correção,  uma reintegração...]
 

Avancei sozinho pelo Antigo Testamento (ou a Tanach judaica). 

 

A primeira coisa que percebo é o contexto: arcaico e difícil - guerras tribais e entre as pequenas nações que por ali se formaram, com matanças e despojos; presença de religiões decaídas que executavam sacrifícios humanos e declínio moral de alguns povoados ou populações.

 

Segunda coisa: a religião se faz por mediação de algum homem sagrado, sacerdote ou profeta (por exemplo: Melquisedeq, Abrahão, Balaão); os ritos e ensinamentos são transmitidos às comunidades e individuais por essas pessoas sagradas, as quais atuam como “pontes” entre a comunidade e a Dimensão Sagrada. 

 

Sem essas “pontes” não há interação apropriada com a Dimensão Sagrada e a vida espiritual, se verdadeira, se dá na esfera da Via Mística (sem ritos legítimos nem “pontes”), apenas com os elementos benignos da boa vontade e valores éticos; os resultados na Via Mística, porém, para surgirem, requerem uma carga muitíssimo maior de esforços e observação de medidas; daí a necessidade de filiar-se a uma família espiritual idônea e tomar refúgio bem como receber as transmissões.

 

 

No caso específico da Igreja, por exemplo, com já observei neste site-blog e torno a reiterá-lo, as alterações do Concílio Vaticano II (1961) “desligaram” a Missa Tradicional, rito que chegou à sua forma final à época de São Gregório Magno (séc. IV), sendo um desenvolvimento absorvido pelo Catolicismo que logrou, com pouquíssimas alterações, simplesmente, preservar o nexo de continuidade, interação, contrapartida e conexão com aquele do Cristianismo Primitivo (pré-Constantino). [*]

 

[nota: Isto é real? O Cristianismo Primitivo e o Catolicismo geraram pessoas santas, fora do nível ordinário; geraram também, pessoas interessadas em descobrir a possibilidade e a veracidade de uma Verdade Eterna. Sem ter uma doutrina da Liberação formalmente exposta na Bíblia - a qual não é, realmente, um manual ou tratado de Metafísica - acabaram por desenvolver, no objetivo de compreender o que é Deus, essa posição. 

O Protestantismo gerou pessoas ajustadas, mas com uma resposta espiritual, quando benigna (nos casos idôneos), limitada; gerou o fundamentalismo sola scriptura (rejeitando a Sabedoria do Cristianismo Primitivo, a qual é apenas verificada intelectualmente nos cursos de teologia, sem qualquer influência na vida espiritual dos fiéis) e uma confiança equivocada na posição movediça, vigarista e baseada num erro de julgamento-avaliação, que induz boa parte dos protestantes a acreditarem que são desenvolvedores da “veracidade e pureza cristãs” além de detentores “exclusivos” das mesmas; tudo isto é oriundo da estrutura escorregadia, repleta de remendos e viciada, do Protestantismo...].

 

 

O principal rito cristão, porém, é a Eucaristia. Mas a Missa Tradicional lhe era sua legítima instrumentação. 

 

Com o desligamento da Missa Tradicional, a Eucaristia deslocou-se para a Via Mística, juntamente com a Igreja. 

 

Deste ponto de vista, a Igreja teria que rezar e fazer muito mais penitências, para repor o que foi “desligado”, e, assim fazendo, lastrear e validar este deslocamento. 

 

Entretanto, este esforço adicional suplementar não é levado a efeito, pois não foi previsto pela inteligência do Concilio Vaticano II, que de certa forma, agiu com uma forma de percepção parecida com a dos protestantes [*].

 

[nota: Nem os opositores da Igreja lhe causaram tanto mal quanto esta decisão intelectual - sem levar em conta o que poderia suceder com a contrapartida do rito - do Concilio Vaticano II. 

Embora a decisão de “desligar” o rito tradicional fosse tomada por experts em teologia e liturgia (ou quase) -, o aggiornamento (atualização) teve como consequências de curto e médio prazo o esvaziamento contínuo das vocações - mesmo onde o Catolicismo era forte, por ser bem estruturado, como em França. O Concílio Vaticano II enquadrou como exageradas, em relação à veracidade teológica, as observações dos trentistas (Concilio de Trento, 1545-1563 – cujas decisões favoreceram a manutenção do rito tradicional, no interim do movimento de Contra-Reforma). O resultado para a Igreja com a Missa Tradicional se desdobrava em nutrição e fortalecimento espiritual em todos os seus setores, justamente por não se tratar de uma construção/relação puramente intelectual, mas da preservação de uma transmissão/rito advinda diretamente da continuidade com o desenvolvimento da Igreja Primitiva - o que deveria ser motivo de paz e orgulho. ]

 

 

A Tanach/Antigo Testamento mostra os homens como eles são; alguns relatos são duros de engolir mas, se se tratasse de fraude ou vigarice, para quê mantê-los num livro sagrado? Não seria mais fácil omiti-los? 

 

A Tanach tem relatos acerca dos “filhos de Belial”: um desses foi o chefe do Exército, Joabe (2º livro de Samuel,  1º livro das Crônicas), condutor das forças guerreiras do rei David - Joabe assassinou a traição Abner (2Samuel, 3) e Asa, ambos chefes de exército, sendo que o rei David pretendia colocar Asa em seu lugar,  passando Joabe para segundo em comando, por ter Joabe assassinado Absalão, filho rebelado de David, contra a ordem do rei para se limitar à sua captura (2Samuel 18:15). 

 

Mais adiante, no 1º livro dos  Reis, cap. 21:1-31, as falsas testemunhas compradas pela esposa do rei Acabe, a rainha estrangeira Jezabel – a qual era de Sidon e seguidora do culto a Baal, o qual ela entendia como sendo superior à religião nativa dos judeus, da qual Jezabel se tornou inimiga - que acusaram e levaram à morte por apedrejamento o jizrelita Nabote, com o fito de que o rei Acabe pudesse se apossar da uma sua propriedade (a qual Nabote havia recusado vender ao rei: “Me guarde o Senhor que te dê a herança de meus pais” disse Nabote ao rei Acabe, recusando todas as suas ofertas e a alegação de que sua propriedade era contígua aos arredores da casa real), - e já se vê que a coisa não era boa. 

 

Já o Livro dos Provérbios identifica para o leitor não apenas a Sabedoria (“A filha de Deus”), mas a presença do justo e do ímpio; do prudente e do louco; do sensato e do tolo... Uma das lições informadas pelo Livro dos Provérbios é fulminante (e verdadeira): 

 
"O que repreende o escarnecedor [o louco e o tolo], toma afronta para si; 
e o que censura o ímpio recebe a sua mancha [“mancha” = mácula = negatividade] 
Não repreendas o escarnecedor, para que não te aborreça; 
repreende o sábio, e ele te amará.
Provérbios 9:7,8
 

Traduzido em termos budistas: quando alguém quer repreender um ímpio, incorre angariar para si uma originação dependente não apenas ruim mas também desnecessária e estorvadora (e isto não é exagero ou invenção minha: a "mancha" trata-se da acumulação invertida ou aflitiva); os tibetanos nativos, por exemplo, compreendem desta forma. O processo é parecido com o de um analista que acaba por absorver a carga de crise - e mesmo, em certos casos, de negatividade - de seu paciente (restando saber como administrar isto; e com a diferença que um analista está exercendo sua profissão). A Sabedoria, assim, nos mostra que, a nível prático, pode não ser possível ou viável tentar corrigir ou autuar tudo, mas as decisões práticas e espirituais devem ser procedidas pelas vias adequadas. O Buddhadharma, na sua verificação, enfatiza as práticas de mérito, para que tenhamos um melhor estruturamento interior, mais resistência e força.

 

                                                                                

RAMAYANA. 

 

O Ramayana do rshi Valmiki tem, na Índia,  um certo número de apreciações e exegeses. Uma delas é a dada no Bhagavata Purana 3-16 e 9-10, na qual dois Devas - Jaya e Vijaya - que integram a esfera celestial das hostes de Shri Vishnu, o Vaikuntha (“Lugar da benção eterna”) tendo o encargo dos cuidados com os portões, recebem mal e decidem barrar alguns devas, a saber: os Quatro Kumaras (kumara = criança). Não obstante a longevidade dos Kumaras, os mesmos têm aparência de crianças e Jaya e Vijaya os barram de visitar Shri Vishnu. Em decorrência disto, são avisados que deverão, por esta falha, deixar a participação na Bem Aventurança de Shri Vishnu. Shri Vishnu lhes manda escolher a penitência: sete nascimentos humanos como devotos ou três nascimentos como potestades temporais poderosas, porém opositoras a Shri Vishnu. Não querendo afastar-se por muito tempo de Shri Vishnu, escolhem os três renascimentos como potestades opositoras, de modo a poder retornar mais rapidamente para junto dEle. No contexto do Ramayana, o segundo nascimento de Jaya e Vijaya se dá como os rakshasas Ravana e seu irmão Kumbakharna.

 

Valmiki narra a trajetória pessoal de cada uma das vidas envolvidas.

 

Tadaka, por exemplo, é mãe de Marisha, Subahu e da menina Kaikesi; através da filha Kaikesi se torna avó de Ravana, Kumbhakarna, Vibhishna e a neta Surpanakha. 

 

Tadaka acaba por se tornar um demônio terrível das florestas enquanto Surpanakha, lidando com práticas mágicas, adquire também um aspecto exterior horrendo e infeliz após a perda do marido rakshasa; também o filho de Tadaka, Marisha, vem ao mundo dotado de poderes psíquicos mas como um ser demoníaco enquanto Subahu segue com Tadaka para a floresta. 

 

Ravana e seus irmãos, o enorme Kumbhakarna, o nobre Vibhishna, além de seus sete filhos – entre eles Indrajit e Prahasta - seus sobrinhos da parte de Kumbhakarna, Kumbha e Nikumbha e demais companheiros se tornam guerreiros e submetem, por campanhas militares e alianças - não apenas militares mas algumas obscuras, como a feita com o reino inferior dos rakshasas -, a Ilha de Lanka [*]. 

 

Antes de iniciar a campanha, Ravana havia feito propiciações aos Devas e severas penitências junto a Brahma e, encerradas as penitências e austeridades, negocia com Brahma para não ser atacado pelos devas enquanto cumprindo seus propósitos de reinado e dominação, comprometendo-se, por sua vez, a também não atacar os Devas, restringindo sua luta ao domínio humano, animal e bestial.  

 

[nota: a ilha de Shri Lanka onde, séculos  mais tarde, se daria a composição do Lankavatara Sutra budista; Lanka foi a terra de Bodhidharma, o qual, imigrando para a China, tornou-se o primeiro patriarca da Escola Ch´an de Budismo chinês - no Japão, a Escola Zen. O Lankavatara Sutra foi um dos poucos sutras escolhidos por Bodhidharma.]

 

O estado dos moradores nativos de Lanka é deprimente, caracterizado não apenas pela sua submissão aos dominadores, mas mesmo a escravidão. 

 

O próprio Shri Vishnu - não podendo uma das ameaças (Ravana) ser combatida pelos Devas - surge no palco da guerra como ser humano, encarnando o príncipe Rama, de Ayodhia, usando as brahmashtras (armas celestiais) transmitidas ao príncipe Rama pelo guru Vishwamitra – o rshi Vishwamitra obteve as armas celestiais através de longos anos de penitências e austeridades. 

 

Tadaka, princesa, bela, próspera e feliz, todavia é cobiçosa e quer ampliar mais ainda seus domínios, negligenciando o Sanatana Dharma (Lei Eterna); em uma de suas buscas para angariar mais, entra em desentendimento e conflito com o rshi Agastya, o qual a restringe e sentencia; acaba, sob a sentença de Agastya,  por perder sua realeza e dignidade, adquirindo um aspecto horrorífico e demoníaco. 

 

Derrotada, se refugia nas florestas com seu filho Subahu, e passa a praticar canibalismo; ferida e magoada pela perda de suas qualidades superiores e realeza, agride a descendência de Agastya: os brahmanes retirados que buscam fixar seus ashrams nas florestas, atrapalhando a execução do andamento dos ritos – consistentes em prescrições como o Agni Hotra (Ritual do Fogo) e abluções diárias para os brahmanes. 

 

O príncipe Rama é ajudado por seus amigos: seu irmão mais novo, o príncipe Lakshamana e Hanuman (o filho de Shiva, nascido como deva-macaco) além do rei vanara Sugriva. Vale lembrar também do preceptor de Shri Rama e seus irmãos, o guru Vashishta. 

 

Ravana, instigado por sua irmã Surpanakha - que tentou seduzir, em vão, o príncipe Rama mas acabou, en decorrência de tentar agredir a princesa Sita, sendo ferida por Lakshamana - resolve sequestrar a princesa Sita, esposa do principe Rama, o que motivou inicialmente, o combate entre ele e Shri Rama. 

 

Anos antes, a jovem e casta Vedavati fazia penitências para alcançar a elevação necessária para poder tornar-se esposa de Shri Vishnu – como Lakshimi e Radha – mas Ravana, embora casado e feliz com sua esposa Mandodari, tenta seduzí-la e, neste escopo, acaba por turbar as penitências de Vedavati. Indignada pelo desrespeito de Ravana em relação às suas penitências direcionadas a Shri Vishnu, Vedavati procura uma pira funerária e nela se atira, sentenciando, antes, Ravana: -”Em meu próximo nascimento serei a causa da tua destruição.”. Vedavati renasce no reino de Mitila, como a princesa Sita...

 

O motivo do Ramayana é o reequilíbrio do Dharma na terra, além da recomposição das amizades divinas de Shri Vishnu (conforme a exegese encontrada no Bhagavata Purana). Pelas mãos do príncipe Rama caem Tadaka e seus dois filhos Marisha e Subahu, bem como os amigos, opositores nas circunstâncias do Ramayana, Ravana e Kumbakharna... Shri Rama entrega o reino de Lanka para o nobre Vibhishna, irmão de Ravana e Kumbhakarna. Diferentemente do Mahabharata - onde a guerra e a destruição são necessárias para recompor o Sanatana Dharma - , a circunstância e contexto do Ramayana são pela reintegração dos elementos desconexos ou dissonantes. O conterxto do Ramayana é um contexto de equilibrio, e um mundo que não se altera mas, antes,  se refaz dos traumas recompondo-se à condição original ( no Mahabharata o Sanatana Dharma é renovado justamente pela alteração; heróis e vilões são mortos - mesmo Krishna - ou morrem - os Pandavas).

 

 

 

USHNISHA VIJAYA VISHUDDI. MAHABHARATA.

 

 

Na dharani Ushnisha Vijaya Vishuddi a devatta Susthita, da esfera Trayastrimsa (Devas dos Trinta e Três, regidas por Indra) é informada de que seu karma se esgotará dentro de sete dias e que passará, dali em diante, por sete nascimentos no reino animal (dentre esses, como porco, como corvo, como cachorro do mato, como serpente e como abutre), após o que haverá de seguir para os infernos; somente após a purgação nos infernos, Susthita voltará a ter um nascimento humano, todavia em uma família pobre e miserável e ainda assim, como cego de nascença. Aterrorizado, Susthita vai a Indra (Sakra) pedir conselho; Indra ouvindo o relato de Susthita, entra em samadhi e contempla, em meditação, todo os nascimentos de Susthita no reino animal, se compadecendo de sua situação. Para tentar livrar Susthita, Indra se dirige ao Tathagata, o qual lhe repassa a recitação da Ushnisha Vijaya Darani.

 

 

No Mahabharata de Vyasa, a guerra entre Pandavas e Kauravas é também uma guerrra entre os devas (os Pandavas e sua coalizão) e os rakshasas (os Kauravas e sua coalizão). Em ambos os lados, os integrantes são disciplinados, cumprem normas rituais e militares e se orientam por princípios e valores kshatryas (casta real e militar). A vitória de Shri Krishna e dos Pandavas - embora não tenha vindo sem reveses [*] - todavia, é a vitória do Dharma...

 

[nota: Abhimanyu, o filho dileto de Arjuna, ainda adolescente, foi emboscado e morto pelos Kauravas. O rei Yudhishthira, filho do Dharma, junto com o irmão Bhima, mediante uma mentira e uma astúcia, iludem e derrotam Dronacharya, que liderava as forças dos Kauravas e, com sua sabedoria militar, mantinha em continuidade o conflito. O preço de uma mentira saída da boca de um homem justo e reputado por sua idoneidade (Yudhishthira) sai caríssimo para os Pandavas: A rainha Draupadi, esposa comum dos Pandavas, teve os cinco filhos menores – não envolvidos no conflito, por não terem idade para serem guerreiros - assassinados no acampamento dos Pandavas (fora da zona da guerra) pelo kshátrya Ashwatthaman, como vingança pela morte de seu pai, Drona, mediante astúcia. Na Tanach/Antigo Testamento, o rei David - o homem "segundo o coração do Senhor dos Exércitos (YHWH)" (1Samuel 13:14) e Seu Ungido (1Samuel 16:13), tomba em decorrência de seu amor por Bateseba, agindo execravelmente contra Urias e contra a Lei, sacrificando sua posição espiritual bem como a estabilidade do reino - explicações metafísicas a respeito do caso de David com Bateseba concluem pela posição que Bateseba era realmente sua mulher e rainha numa ligação não apenas humana mas espiritual; entretanto, por não ter revisão para Urias e diante da gravidez de Bateseba, o rei David comete uma segunda falta, esta vez hedionda e gravíssima (homicídio a traição de Urias) e que lhe custa as vidas de três de seus próprios filhos. Yudhishthira, o filho do Dharma, mente para fazer Dronacharya abrir de suas mãos armas - uma vez que Drona só pode ser morto se depuser, espontaneamente, suas armas -  pois, sem a liderança de Drona, o conflito com os Kauravas poderá ser, por fim, abreviado. Ashwatthaman, entretanto, se queria vingar-se com a força de Rudra, poderia fazê-lo contra os reis Pandavas e demais guerreiros - não contra os meninos; por vingar-se contra crianças, foi condenado a renascer por um período de 3 mil anos como pária, vagando sem rumo, além de perder sua jóia interior – oriunda das transmissões e formada no correr de uma vida de adesão e observação contínua dos ritos - para a rainha Draupadi...]

 

 

BRAHMAVAIVARTA PARARIA. PADMA SAMBHAVA.  RAMAYANA.

 

No Brahmavaivarta Pararia, divulgado no Ocidente por Heinrich Zimmer (“Mitos e Símbolos na Arte e Civilização Indiana”, Heinrich Zinmmer – editora Palas Athena), e também por Mircea Eliade (“Imagens e símbolos” - “Mitos indianos do tempo” - editora Arcádia, Lisboa-Portugal), narra a história da “Procissão das Formigas”.

 

Indra, juntamente com Agni-Brhaspati, acaba de derrotar o gigantesco asura Ahi Vitra Namuci, que logrou, por um período de tempo, superar e restringir os Devas, por reter as águas celestiais. Como reconhecimento, e em agradecimento ao livramento, os Devas elegem Indra com regente de todas as hostes celestiais que foram restringidas por Namuci – nomeadamente os Devas e devattas do Trayastrimsa.

 

Jubiloso, Indra decide construir um palácio de acordo com sua posição e convoca o deva-arquiteto Vishvakarman, para tocar o projeto. Um ano depois, Vishvakarman entrega a Indra um esplêndido e majestoso palácio, mas Indra, conferindo as instalações, passa a sugerir a Vishvakarman novos acabamentos e complementos requintados (terraços, jardins, parques, residências adjacentes) para tornar a edificação e seu entorno ainda mais majestosos. A cada complemento feito, Indra indica novas possibilidades a Vishvakarman, o qual, ante a criatividade e inspiração quase infindáveis para motivos suntuosos de Indra, viu-se esgotado no cumprimento de suas exigências para esse mister. Vishvakarman, já estafado, pede ajuda a Brahma, o qual, inteirando-se da causa, decide recorrer, por sua vez, a Sri Vishnu.

 

Shri Vishnu recebe o pedido de Brahma e encarrega-se de fazer Indra retornar à Realidade.

 

Um belo dia, Indra recebe no seu palácio a visita de um jovem andrajoso. Era o próprio Shri Vishnu, que tomara este aspecto para corrigir o Rei dos Deuses. Sem lhe revelar de início a sua identidade, e mesmo com a aparência de um jovem, chama-lhe ”meu filho“ e começa a falar-lhe dos inúmeros Indras que até essa altura tinham povoado os inúmeros Universos.

 

- “A vida e a realeza de um Indra” — disse-lhe ele — “duram 71 eons (um ciclo, um mahâyuga compreende 12.000 anos divinos, ou sejam 4.320.000 anos); um dia e uma noite de Brahma, equivalem a 28 existências de Indra. Mas a existência de um Brahma medida nos ditos dias e noites de Brahma, é de apenas 108 anos. Um Brahma segue-se a outro Brahma; um deita-se e outro levanta-se. Não se consegue contá-los. Não tem fim o número destes Brahmas — para já não falar nos Indras...”.

 

 

- “Mas quem poderá avaliar o número dos Universos, tendo cada um o seu Brahma e o seu Indra? Para lá da mais longínqua visão, para lá de todo o espaço imaginável, os Universos nascem e dissipam-se indefinidamente. Como barcos levíssimos, estes Universos flutuam na água pura e sem fundo que forma o corpo de Vishnu. De cada poro desse corpo, um Universo sobe um instante e, após, desintegra-se. Teríeis vós a presunção de contá-los? Credes poder enumerar os deuses de todos estes Universos — os Universos presentes e os Universos passados?”

 

Durante o discurso do jovem, uma procissão de formigas adentrara a sala principal do palácio. Alinhada numa coluna de dois metros de largura, a massa de formigas exibia-se no soalho. O jovem olha para as formigas, pára e depois, cheio de espanto, desata num riso súbito.

 

- “Porque te ris?” — pergunta-lhe Indra.

 

- “Vi as formigas, ó Indra, desfilando num longo cortejo. Cada uma delas num nascimento anterior, chegou a ser um dia um Indra. Como vós, cada uma, em virtude da sua piedade ascendeu, outrora, ao nível de um Rei dos Devas. Mas agora; após múltiplos renascimentos, cada um se transformou em formiga. Este exército de formigas é um exército de antigos Indras...”

 

Depois desta revelação, Indra compreende a vaidade que deixou ter livre curso em si mesmo, bem como a insensatez de seu orgulho e suas ambições. Chama Vishvakarman, recompensa-o regiamente e renuncia para sempre a ampliar o palácio divino...

 

 

Há uma série de histórias hindús e budistas que poderiam ser agregadas aqui para nos dar uma compreensão mais ampla – ou mais profunda - acerca de Causalidade-Karma-Renascimento.

 

O Buddha Padma Sambhava, atirando uma pedrinha numa mosca, acertou juntamente com a mesma um menino e acabou por cometer um homicídio. O Buddha explicou tratar-se de uma dívida kármica anterior do menino, que havia sido cruel para com ele - havendo aquele menino, num nascimento anterior, cometido um crime passional comunicou, entretanto, que o responsável pelo ato havia sido Gautama (nascimento anterior de Padma Sambhava), o qual foi executado no lugar do verdadeiro criminoso -, tendo a pedrinha “com a força do karma”,  embora pequena, atingido-o em sua cabeça, justamente de um modo fatal. Por causa deste crime o Buddha Padma Sambhava foi preso. Após, realizando ritos tântricos, a esposa de um ministro bem como seu filho, também foram mortos quando o Buddha deixou cair, a esmo, seu Dorje (punhal vajra) e seu trishula (tridente, como o de Shiva), ferindo mortalmente mãe e filho. O Buddha explicou que tanto a mãe quanto o menino integraram também o episódio que culminou na sua execução injusta como Gautama... 

 

 

Também, no Ramayana, o rei Dasaratha, pai do príncipe Rama, acidentalmente numa caçada, matou, pensando tratar-se de um animal, um jovem que era filho único de pai e mãe idosos e cegos. 

Dasaratha, pediu perdão aos pais do jovem, mas o pai lhe disse que ele ainda haveria de sentir algo parecido com o que ele e sua esposa estavam agora sentindo na cremação do filho único (terminado o serviço que antecede a cremação, os pais cegos se jogaram na pira funerária do filho). 

Dasaratha sofreu grande desgosto ao ver o príncipe Rama deixar sua cidade de Ayodhia, exilado, em decorrência da obscuridade que tomou sua terceira esposa Kaikeyi, a qual exigiu dele - em decorrência de uma antiga dívida deste para com ela, e acerca da qual ele havia lhe empenhado sua palavra [*]- , que o trono – de direito ao príncipe Rama, por ser o primogênito - fosse repassado ao segundo filho, o nobre e digno Bharata, porém situado logo atrás de Rama na sucessão real; e ainda pediu Kaikeyi que Rama fosse exilado por catorze anos nas florestas. 

 

[nota: o rei Dasaratha foi ferido em batalha, no ínterim de uma guerra contra um reino dos asuras (titãs; semi-deuses); a rainha Kaikeyi, que conduzia seu carro, removeu o rei Dasaratha do campo de batalha, livrando-o...]

   

Não suportando nem o primeiro mês de afastamento de seu filho dileto e excelente, em pouco tempo adoeceu e veio a expirar em desgosto... 

Bharata foi à floresta buscar Rama no intuito de desfazer, assim, a loucura que veio sobre eles através de sua mãe, Kaikeyi. Shri Rama, todavia, explicou-lhe que a palavra empenhada pelo rei Dasaratha deveria ser cumprida, preferindo prosseguir até o fim o exílio. 

Baratha pediu a benção de Shri Rama e este deu-lhe suas sandálias para que os nobres vissem que o reinado de Baratha tinha sua aprovação. Baratha, porém, recusou sentar-se no trono e ao invés, pelos catorze anos do exílio, deixou ali as sandálias de Shri Rama, restituindo-lhe o reino, ao final...

 

 

Pelas doutrinas hindo-budistas sobre a Causalidade, trazemos o Mal sobre nós próprios negligenciando ou descartando valores éticos; o Mal se amplia quando prejudicamos comprometedoramente os outros ou fazemos vítimas por motivos gratuitos, iníquos ou vis. 

 

Pela nossa conduta, ousadias com nossa próprias vidas e com as vidas dos outros, preferências e aversões, e pelos relatórios de que dispomos (embasando nossas crenças e convicções e orientando nossa maneira de compreender), conforme a Lei do Karma, é possível não propriamente antever, mas delinear o futuro. Muitos karmas em andamento, por exemplo, gerarão - se não corrigidos - os futuros mendigos, entre tantas possibilidades. Alguns karmas estão se esgotando, outros se formando... Alguns karmas são punitivos e seu desdobramento trata-se de um verdadeiro inferno na terra, sendo demônios em corpos humanos os exatores e algozes daqueles nessas miseráveis e doentias situações (por exemplo: tráfico de pessoas e de órgãos humanos [*]). Pelo lei do karma, nos transformamos naquilo que cultivamos pessoalmente, individualmente: anjos, demônios, santos, satânicos, justos, tolos/imbecis, desvairados/loucos, ávaros, generosos, coração duro, coração aberto, etc. 

 

[nota: o que não significa, mesmo se tratando de acumulações kármicas exageradamente aflitivas/invertidas, que devamos concordar ou nos conformar com essas doenças... Parafraseando René Girard, a nobreza é encerrar o ciclo de vinganças...]

 

Em continuação, a possibilidade do Mal só se encerra quando o Sanatana Dharma (Lei Eterna) é devidamente buscado e a origem do Mal verificada e sanada  – dentro de nós mesmos e em cada um individualmente...

 

Acusado certa vez por brahmanes de ser um sábio nihilista, o Buddha Shakyamuni respondeu: “Outrora, como agora,  eu apenas declarei o Mal e a interrupção do Mal...”. Majjhima Nikaya 1:140.

 

 

 
"Oh, rapados... quê andais a buscar?
 
Por todos os lados saís a dizer
 
que o Tao [Caminho] deve ser praticado
 
e ser posto à prova [comprovado]...
 
 
 
Não sejais cabeças-duras!
 
Se há alguém que possa praticar algo,
 
o que esse alguém pratica
 
não é senão a acumulação de karma para vários renascimentos.
 
 
 
Vós deveis disciplinar até a perfeição os seis sentidos,
 
mas isso não é  mais que criar karma,
 
Os Buddhas e  Patriarcas não são tão superficiais!
 
(...)
 
 
Buscar o Dharma é criar karma,
 
estudar os sutras e karikas [comentários] é criar karma,
 
Buscar o Buddha...
 
tudo isso não é mais que criar karma e mais karma,
 
que vos levará direto, de cabeça 
para os Infernos!
 
 
 
Muito pelo contrário,
 
os antigos viviam a vida com enorme despreocupação,
 
agindo apropriadamente em função de cada circunstância particular,
 
segundo esta surgisse  e conforme fosse necessário
 
(sem diretrizes nem ideias preconcebidas);
 
(...)
 
 
 
No há lugar no Budismo [em sua finalidade essencial] para o esforço [egotista (*)],
 
Simplesmente sede vós mesmos,
 
sem acrescentar nada especial.
 
 
 
Defecai e limpai vosso corpo,
 
vesti-vos e comei vossa comida.
 
Quando estejais cansados, repousai.
 
 
 
Os ignorantes desviarão disto,
 
mas os sábios compreenderão...
 
- Mestre Ch'an Lin Chi (japonês: Rinzai).
 
 
 
[nota: Num outro texto, há o seguinte comentário de Lin Chi: "Amigos, digo-vos isto: Não há Buddha, nem caminho espiritual para seguir; não há treinamento nem nenhuma realização espiritual. O que buscais de modo tão febril? Colocais uma cabeça [a noção de um 'eu'/ego separado, seccionado do momento presente/atual] em cima de vossas próprias cabeças, ó cegos idiotas? Mas vossas cabeças estão bem onde deveriam estar. O problema reside em que não acreditais suficientemente em vós mesmos. Porque não acreditais em vós mesmos, vos encontrais tombados: aqui e ali e em todas as situações/circunstâncias com que vos deparais. Estando escravizados e enredados pelas situações objetivas, vós não tendes liberdade interior, absolutamente... não sois mestres de vós mesmos. Parai de girar para o exterior e não estejais ligados nem mesmo às minhas palavras. Apenas cessai o apego ao passado e o desejar o futuro. Essa será a melhor peregrinação que podeis fazer em dez anos."
 
Esta colocação de Lin Chi remete àquela mesma, posicionada sobre a doutrina do Anatman (Não-Eu), constante  do Visudhimagga de Buddhaghosa:
 
 
"Só o sofrimento existe... ninguém que sofra...
 
O feito existe... mas não quem o faça...
 
O Nirvana existe ... mas ninguém que O busque...
 
O Caminho existe... mas ninguém que O percorra..."
 
 
 
O Buddha Padma Sambhava, num cântico exaltando a Clara Luz,  anotou:
 
 
"Clara Luz, Auto-originada, eternamente Não-nascida
 
é um filho órfão da Sabedoria... é maravilhoso...
 
 
Sendo Incriada é Sabedoria  Natural... é maravilhoso...
 
 
Não tendo conhecido o Nascimento, não conhece a Morte... é maravilhoso...
 
 
Embora perceba o Buddha, Ela permanece dissociada do Bem... é maravilhoso...
 
 
Embora vagueie pelo Samsara, Ela permanece não maculada pelo Mal... é maravilhoso...
 
 
Embora seja a Realidade Total, não existe seu percebedor... é maravilhoso..."
 
 
em "O livro tibetano da Grande Liberação" - Evans-Wentz (*)]
 
 
 
Fora do contexto budista, estas observações posicionadas sobre a Dourina do Anatman nos remetem a Shiva - e/ou Shakti -  (simbolizando a Realidade Última) dançando sobre o anão, bem como ao Shiva Linga... O anão remete à cabeça desnecessária, estorvadora e enganadora, indicada por Lin Chi...  Nas palavras de Shri Ramana Maharshi:
 

"toda atividade consciente da mente ou do corpo gira em torno da tácita pressuposição de que existe um “Eu” que está fazendo alguma coisa...".

 

Digna de menção é, ainda, a observação - a qual parece uma bela piada de cunho metafísico - de Shri Ramana Maharshi (em "Joias de Shri Ramana Maharshi"):
 

 

"Não é correto dizer que os Advaitins [não-duais] ou que a escola de Shankara [Escola Vedanta] neguem a existência do Universo, ou que o chamem de irreal. Por outro lado, o Universo é mais real para eles do que para nós. O Universo deles sempre existirá [não tem princípio nem fim], enquanto que o de outras escolas terá início, desenvolvimento e decadência, por esse motivo não pode ser real..."...

 

 

[nota: Prof. Evans Wentz foi um erudito, conectado ao movimento e  à Sociedade Teosófica. Suas obras sobre o Vajrayana e o Budismo tibetano abrangeram, enquanto a diáspora tibetana não se deslocava de forma mais contundente para o Ocidente, tratados de Metafísica e Yoga budistas, até então pouco divulgados, como o "Livro Tibetano dos Mortos"/"Bardo Todol". Hoje seu "Bardo Todol" e seu "Milarepa", bem como o "Yoga tibetano e as doutrinas secretas" (abrangendo os "Seis Yogas" de Shri Naropa além do "Rosário Precioso do Caminho Supremo" de Gampopa e uma pequena obra do Guru Padampa Sanghay) provavelmente não são mais os mais lidos e talvez estejam, atualmente, inclusive no ostracismo pois as pessoas interessadas - inclusive eu mesmo - se deslocam para as edições produzidas por fontes tibetanas e/ou por eruditos engajados como o Prof. Herbert V. Guenther, Keith Dowman, etc. Quanto ao trabalho de tradução do Prof. Evans-Wentz, eis que o mesmo é louvável (basta comparar com as edições oriundas de fontes tibetanas e ocidentais engajados). Devo salientar, porém, que, em relação às suas notas explanatórias, não obstante sua erudição e grande esforço em traduzir o Vajrayana para uma percepção ocidental, eis que, todavia, a erudição das obras acaba sendo comprometida com a necessidade do Prof. Evans não tanto de aproximar - em meio a algumas de suas notas - mas de posicionar conceitos budistas como equivalentes a alguns conceitos espiritualistas. No caso, a aproximação até é possível; não porém a sua equiparação pura e simples. O Budismo não se vale do termo "reencarnação" que nos conduz à percepção da reencarnação biológica; mas sim 'renascimento'. No "Milinda Panha", sem usar termos sofisticados da linguagem budista, o Venerável Nagasena explica isto muito bem, com vocabulário bastante acessível (como este do texto de Mahaduta).  'Karma', também, no Ocidente, adquiriu o sentido de 'evolução' ou ainda "evolução espiritual". Tenho conhecidos, colegas e amigos espiritualistas posicionados na perspectiva da "transição planetária". O problema é que karma entendido como 'evolução', acaba nos desviando justamente das Quatro Nobres Verdades - as quais nos remetem para a pesquisa interior/espiritual e daí, mais ainda, para a Paramartha Satya/Verdade Absoluta ou Final - que é o que está sendo explicado aqui por Lin Chi (e, no seu contexto, também por Shri Ramana Maharshi). As Quatro Nobres Verdades não nos remetem para fora de nós mesmos e a noção interior/exterior não é aplicável à Paramartha Satya. Isto é o que tenho observado para colegas e amigos espiritualistas - lembrando-lhes, também, que muitos espiritualistas europeus e americanos, tendo descoberto Shri Ramana Maharshi e Shri Nisargadatta Maharaj, por exemplo, sentaram com esses verdadeiros gurus e se uniram às suas sat-sangas (ajuntamentos com finalidade espiritual), aderindo a seus ensinamentos e não tendo se afastado mais. 

 

No contexto budista e hindú, 'karma' significa 'ação' - cuja consequência e implicação intrínseca é também, causa e efeito. As obras do Prof. Evans Wentz, só pecam pela tentativa de tentar convergir - e mesmo nivelar como equivalentes - , sem esclarecer adequadamente, conceitos budistas e espiritualistas os quais, verificados em seus fundamentos, têm desdobramentos e interações diferentes, não sendo possível o nivelamento num mesmo patamar... Acaba por se propagar, divulgar ou vender o Budismo como se se tratasse de algo semelhante ao Espiritualismo, mas o Buddhadharma não nos conduz a afastarmos da pesquisa interior/espiritual. A meu ver, o Espiritualismo é uma posição não-metafísica; a mediunidade se propõe nos conduzir  a um  "salto qualitativo" mas o alcance dela e de outros fenômenos psíquicos é limitado.  Não podemos repassar a outros (espíritos, mestres, homens) a responsabilidade que compete a nós mesmos: Salvação, Liberação/Kaivalya e Iluminação dependem das contrapartidas que nosso esforço pessoal, insights, compreensão do processo interior/espiritual e elevações conseguem realizar. E o parinamana (transferência de mérito)? Está no lugar de sempre (Amitabha, Cristo), mas ainda assim há posições que dependem de nós. O parinamana fará a sua parte, desde que nós façamos a nossa. Podemos, ainda, por exemplo, usar técnicas mentalistas ou Programação Neurolinguística: isto pode até nos ajudar num certo número de situações e corresponder, tais práticas, a alguns pequenos sucessos; mas aqui também o alcance é limitado (e tentar ir além do limite com essas técnicas, esperando resultados que elas não são capazes de produzir, pode trazer decepções ou auto-ilusão/auto-engano). Por fim, em relação aos mestres ascensos - que o Prof. Evans tenta honrar (particular e especificamemente a figura de 'Koot Hoomi') -, o ensino atribuído aos mesmos é tão espiritualista que não é possível, nem forçando, conectá-lo aos ensinamentos budistas tradicionais/ortodoxos... Outro exemplo, embora não relacionado em nada a este post, seria a obra "Budismo Esotérico" de A. P. Sinett, a qual, distante do esforço do Prof. Evans-Wentz (que, não obstante alguma dissonância doutrinal nas notas explanatórias, nos repassa traduções de documentos budistas) -  foca sobre o Devakan/Mundo dos Devas - que, para mim, parece tratar-se mais do 'Mundo dos Espíritos' - repassando poucos ensinamentos budistas...].  

 

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Relembrando a tragédia da ocupação chinesa do Tibet

02/05/2015 23:11

Relembrando a ocupação chinesa do Tibet

 

 

Em setembro/2014, pela terceira vez, em cinco anos, Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama - líder espiritual da linhagem Gelug do Budismo Tibetano, iniciada por Tsong Ka Pa -, teve visto de entrada negado pelas autoridades da África do Sul, por pressão oriunda de fontes da República Popular da China, a qual é o principal parceiro comercial da África do Sul.

 

Nesta última tentativa de visitar a África do Sul, o Dalai Lama pretendia comparecer às solenidades de entrega do Prêmio Nobel, contudo, para Pekim, posto o Dalai Lama tratar-se de “peça chave na articulação por alterações que anulam a estabilidade da Região Autônoma do Tibet”,  a África do Sul não deveria conceder-lhe o visto, pois a entrada da Dalai Lama poderia ensejar oportunidade para exposição ou pregação de cunho político.

 

O Dalai Lama, entretanto, não é mais o lider formal do Governo do Tibet no Exilio (não-reconhecido) desde 2011 - quando contava 76 anos de idade (hoje ele está com seus 80 anos) - sendo a posição passada para o acadêmico de Harvard, tibetano étnico nascido na Índia, Lobsang Sangay, o qual tem a missão de manter acesa a chama da Causa Tibetana sem a presença de seu principal e emblemático ícone.

 

(...)

 

A descontinuidade do sistema feudal e o estabelecimento do modelo implantado pelos chineses trouxe algumas melhorias materiais para os tibetanos; entretanto, melhorias materiais à parte, os étnicos chineses formam a “nova classe dominante” e abundam em Lhasa letreiros e placas grafados em mandarin (nas escolas é ensinado tibetano e mandarin até o ensino médio; no ensino superior prevalece o mandarin). É duro ser “cidadão de segunda classe” na própria terra. Entre os tibetanos, ao que tudo indica, os nativos abrigam em si - não obstante as melhorias materiais - o sentimento de se ver livres do predomínio chinês – ou, ao menos, ter mais autonomia e oportunidades na própria terra -; as autoridades chinesas associam e atribuem tal insatisfação dos nativos a ações do Dalai Lama.

 

(…)

 

Em 29 de novembro de 1997, num encontro entre Jiang Zemin e Bill Clinton - então, os respectivos presidentes de República Popular da China e Estados Unidos da América – Clinton declarou que os Estados Unidos não sustentam nenhum objetivo nas questões concernentes aos tibetanos, ao Budismo Tibetano e ao Dalai Lama, - ou seja: não se envolvem em questões políticas, territoriais e de soberania -, limitando-se alguma intervenção americana ao fomento de ajuda coordenativa quanto aos quesitos Liberdade Religiosa e Preservação da Cultura Especial Tibetana - entenda-se: o Budismo Tibetano e a religião nativa pré-budista Bon.

 

Em continuação, em julho de 2011, sob protestos da China, Barack Obama recebeu o Dalai Lama – na qualidade de líder espiritual mundialmente reconhecido - e reafirmou ambos os termos declarados por Bill Clinton: 1) reconhecimento da soberania chinesa e não-intervenção americana em temas como soberania e politica; e 2) solidariedade em relação a questões culturais e de identidade dos tibetanos.

 

(...)

 

Gostaria de apresentar agora, ao prezado leitor, mais alguma informação oriunda de um artigo do senhor I-Yao Bao - pois a leitura de seu artigo sobre a questão tibetana me motivou a  escrever este post -, que encontrei na internet, publicado em 2008.

 

O sr. I-Yao Bao é um bibliotecário de origem chinesa, radicado, então, há mais de 50 anos nos Estados Unidos; ele é também vinculado à Columbia University e figura diretamente ligada a interesses da República Popular da China nos Estados Unidos.

 

O sr. Bao teceu as seguintes observações, numa matéria intitulada “The truth about Tibet” ("A verdade sobre o Tibet"), a qual foi publicada e divulgada, posteriormente à publicação original (uns dez anos depois), no digesto Chinese American Forum - Volume XXIV, No. 1 - July 2008, o qual localizei na web:

 

o 14º Dalai Lama, com suporte estrangeiro, abriu dois escritórios em Washington DC e New York City, em nome do Movimento de Ajuda ao Tibet. Eles usam a religião como um pretexto para camuflar suas atividades políticas, publicar jornais, sustentar conferências de imprensa, monitorar eventos no Congresso, e exercer pressão sobre a administração Clinton. Através de dois anos de esforços, o Departamento do Estado americano anunciou, em 31 de outubro de 1997, o estabelecimento de uma Coordenadoria Especial de Assuntos Tibetanos.”.

 

O 14º Dalai Lama, exilado no estrangeiro por 40 anos, tem pouco conhecimento das grandes mudanças no Tibet. Escravos e servos tibetanos, anteriormente gemendo sob seu governo, se tornaram pessoas livres e o poder político, com o qual ele costumava governar o Tibet, tem sido substituído pelo Governo do Povo do Tibet. Como pode ele voltar sem poder político e o que poderia ele fazer? Ele não sabe que as mudanças são irreversíveis?”.

 

Em relação ao artigo supra, o sr. I-Yao Bao evita falar sobre os mortícínios e violações de direitos humanos realizados pelo Exército Popular de Libertação Chinês, em decorrência da necessidade de destruição da cultura tibetana - para viabilizar a transição - e também em resposta às insurgências havidas num grande levante decorrente da insatisfação e contrariedade populares contra a presença chinesa, a partir de 1959; as ações de retaliação foram cruéis e perduraram até 1961, desdobrando-se em destruição de mais de 6.000 mosteiros e assassinato de milhares de religiosos.

 

O sr. I-Yao Bao apela para dados estatísticos de crescimento anual da população tibetana, todavia, os números parecem não totalmente confiáveis.

 

Em continuação, a revolução maoísta destruiu por completo a “velha cultura” na China. Os comunistas chineses, guiados por Mao, adotaram uma postura fortemente pragmática mas, também, impositiva, coercitiva e, finalmente, totalitária em relação à sua posição com o socialismo materialista; não tinham qualquer apreço por qualquer posição atinente à religião/tradições espirituais em geral, tampouco pelo Buddhadharma, em particular.

 

O Exército Popular de Libertação invadiu Lhasa logo em 1951; nesse momento a revolução maoísta tinha pouco mais de 2 anos de existência e havia muitas coisas para resolver a nível doméstico – e, se se levar em conta as expressivas densidade demográfica e extensão territorial, mesmo sem o território do Tibet, da China, realmente havia muito que fazer para se preocupar com uma província de fronteira como o Tibet. A política isenta de preocupações sociais efetivas do último império Qing gerou as situações de miséria e estagnação social que foram o principal motivador a levar os camponeses/campesinato, a aderir à causa do Grande Timoneiro (Mao Tsé Tung), o qual formou uma coluna paramilitar; essa coluna paramilitar acabou tendo efeito dominó entre os camponeses chineses e foi engrossando suas fileiras até constituir uma massa humana em número suficiente para efetuar a revolução pela força; em continuação, com a queda do império, a primeira república nacionalista chinesa também não tomou as medidas saneadoras necessárias para evitar novas convulsões e colapsos (a China vinha sofrendo com a estagnação das condições de vida de sua população; na embaixada inglesa, por exemplo, havia uma placa com os dizeres “Proibido cachorros e chineses”; as promessas socialistas de Mao vieram a cair como uma luva [*]).

 

[nota: Antes de Mao iniciar a Grande Marcha, no ambiente urbano os socialistas chineses estavam desanimados e desiludidos da possibilidade de um levante armado; Mao Tsé Tung apostou, contra a teoria marxista de que a revolução não seria possível entre os camponeses - em decorrência de que, na Europa, os valores tradicionais e espirituais eram mais presentes/arraigados entre os habitantes do campo e havia resistências contra a perspectiva nihilista/materialista inerente ao socialismo. Ao contrário da teoria marxista clássica, a revolução socialista chinesa veio do campo para o meio urbano.].

 

Não tendo os chineses maoístas qualquer consideração por questões espirituais, fica a pergunta: o Tibet foi ocupado logo em 1951 e, então, por que os maoístas não efetuaram um aperto imediato, mais forte e mais contundente contra a cultura tibetana, implantando de uma vez o socialismo, ao invés da medida negociada?

 

O aperto mais forte/contundente - e maligno - contra os tibetanos e sua cultura já estava ocorrendo em dosagens - cruéis e traumáticas, não-arbitrárias (não foram decisões isoladas ou circunstanciais com excesso de uso de força por este ou aquele oficial), mas sistemáticas -, com a transição para a nova perspectiva – que implicava a anulação metódica, ordenada e efetiva da perspectiva anterior – as convulsões e retaliações ainda mais pesadas e agressivas se deram entre 1959-1961.

 

Não houve benevolência ou preocupações sócio-humanitárias dos chineses e, ao menos aparentemente, se o massacre não foi ainda maior e pior, a delonga disto foi decorrente, provavelmente, apenas da questão quanto aos custos operacionais, pois, em 1949, a recém-formada República Popular da China estava ainda estabelecendo as bases e colunas do novo regime; dispender mais recursos, imediatamente e além do planejado, e exercer uma pressão ainda mais forte sobre o Tibet, do ponto de vista operacional, seria imprudente, leviano ou anárquico. Vale lembrar que, em 1951, Lhasa foi invadida por uma força militar chinesa composta por 40.000 soldados, efetivo suficiente, nas condições minimais tibetanas, para intimidar e convencer qualquer oposição.

 

Em relação às matanças e violações de direitos humanos cometidas pelo Exército Popular de Libertação Chinês, remeto o leitor aos livros (dentre os que eu mesmo tenho comigo) “La cuestion del Tibet e El Imperio de la Ley” de autoria da Comissão Internacional de Juristas da O.N.U., bem como, também, ao dedicado capítulo 9, intitulado “Tibete: O Buda e a nova felicidade”, do renomado mitólogo Prof. Joseph Campbell, na obra “As Máscaras de Deus - Mitologia oriental” - Editora Palas Athenas, ambos contendo relatos e depoimentos de testemunhas oculares, nunca impugnados pelas autoridades chinesas – o relatório da Comissão Internacional de Juristas (utilizado também pelo Prof. Joseph Campbell) já começa, logo em seu primeiro capítulo, com a conclusão de genocídio dos tibetanos pela forças do Exército Popular de Libertação.

 

 

(…)

 

Os tibetanos se insurgiram contra os comunistas chineses quando sua cultura, seus símbolos e seus valores logo começaram a ser anulados, desmontados ou destruídos, além do autoritarismo e crueldade dos recém-chegados, uma vez que a ocupação havia sido, a princípio pacífica, pois pautada em negociações que decidiram:

  • pela aceitação da anexação do Tibet pela China,

  • pela descontinuidade do sistema feudal e implantação do novo sistema proposto pelos chineses,

  • pela manutenção de uma autoridade tibetana (o Dalai Lama e o Panchen Lama) em sua regularidade normal - uma das poucas condições a serem cumpridas pelos ocupantes chineses e expectativa maior das lideranças tibetanas -,

  • e, por fim, não-alteração e não-intervenção deletéria sobre as tradições espirituais tibetanas.

 

O que foi aceito por ambos os lados; porém, em pouco tempo, os comunistas começaram a mostrar para que fim se deslocaram ao Tibet, perpetrando arbitrariedades e violações contra uma cultura que já estava condenada pela autoridade chinesa desde a decisão da ocupação. Resta a observação que, na densamente populosa China, as autoridades socialistas embora preocupadas que “o trem social não descarilhe” (inclusive de sua tutela e controle) todavia, não fazem questão da importância da vida humana, as quais são apenas números, sendo as baixas/perdas humanas avaliadas também pela perspectiva da redução (benvinda) de custos.

 

O compromisso firmado pelos chineses de manutenção de uma autoridade tibetana e não-alteração das tradições espirituais revelou-se ser não mais do que cínicas, falsas e hipócritas promessas dos maoístas .

 

Os maoístas já haviam demolido/esmagado e anulado, em seu próprio território, não apenas as forças politico-militares de Chiang-Kai Shek mas as tradições taoísta, confucionista, budista, islâmica e cristã [*]; o Taoísmo remanesceu somente em seguimentos das ciências tradicionais milenares, continuadas por mestres e discípulos, como Tai Chi Chuan, Chi Kung, Kung Fu, Acupuntura, etc.; estes seguimentos de ciências tradicionais foram, então, aproveitados pelos comunistas somente na qualidade de medicina e artes marciais, vetada, porém, a possibilidade de correlacioná-las a identidades como “taoísmo” ou “tradição taoísta” - os ritos taoístas e confucionistas foram descontinuados e extirpados, remanescendo apenas em Taiwan, Hong Kong e adjacências do sudeste asiático, para onde comunidades étnicas chinesas haviam se deslocado, em fluxos migratórios, e fixado residência - todas as manifestações culturais e religiosas da “velha cultura” foram anatematizadas e proscritas pelo novo regime - a maior parte dos templos remanescentes foi reduzida, praticamente, à condição de meros museus para turistas.

 

Hoje, a estrutura de poder na República Popular de China está baseada num tripé, formado pela interação entre Partido Comunista, Militares e Professores Universitários - excluídos, mesmo hoje, os prósperos empresários de áreas como Shangai e Shenzen; por outro lado, correndo por baixo, há o crime organizado, as “Tríades Chinesas”, as quais se esconderam e se adaptaram à implantação do novo regime e garantiram sua continuidade e crescimento dançando, ao menos exteriormente, na fachada, conforme a música tocada pelos maoístas.

 

[nota: em termos de sobrevivência e continuidade dinâmica em meio ao regime comunista chinês somente o Islam conseguiu manter alguma autonomia e identidade verdadeiras – podendo por exemplo, frequentar o serviço espiritual nas mesquitas -, porém, na China, o Islam é apenas uma pequena minoria...]

 

O artigo do sr. Bao se esforça, reitero aqui, em evitar, em sobrepassar, em ocultar e/ou encobrir fatos que, se divulgados amplamente para a opinião pública, gerariam indignação e acarretariam um resultado, mesmo com o atual poderio material chinês, negativo para as políticas chinesa sobre o Tibet e sobre direitos humanos. I-Yao Bao se posiciona como um pragmático, como alguém interessado apenas num aspecto parcial da realidade, desde uma perspectiva prática, e ainda se servindo, quando necessário, - no objetivo de sustentar esta parcialidade -, de mentiras. Dados e estatísticas, como todos sabemos, podem se tratar apenas de números de amostragem:

 

Em 1950, um ano antes da "liberação pacífica" [negociada] do Tibet, haviam 300,000 monges e monjas (25% de 1.2 milhões de pessoas). Em 1996, haviam 46,000 monges e monjas (cerca de 2% de 2.45 millhões de pessoas). Este decréscimo de monges e freiras é decorrente de grandes mudanças nas condições sociais. Após 1951, famílias não eram mais forçadas a prover candidatos para serem monges e monjas. O povo desfruta a nova liberdade de escolher suas próprias crenças e se engajar em atividades produtivas [*]. O Palácio de Potala, e os Monastérios de Jokhang, Zhaibung e Sera estão abertos a todos.

 

 

[Nota: antes da anexação e da destruição que se seguiu da cultura tibetana, os tibetanos eram budistas, bonpos, algo entre ambas (Budismo e Bon ) ou, exceções à regra, nenhuma delas. Na República Popular da China não há liberdade de crenças nem para os próprios chineses - e quanto mais para os tibetanos. Exemplo notório é o caso da seita Falun Gong, a qual surgiu como um método terapêutico objetivando o cultivo da mente e do corpo e a saúde mental e moral – sem qualquer caráter religioso e, também, obviamente, apolítica– baseada, inicialmente, em cinco exercícios de Chi Kung. É verificável, também, nos ensinos e práticas Falun Gong, elementos do Taoismo, do Confucionismo, do Budismo chinês, além do Yoga. Chegou a ter 70 milhões de adeptos somente em solo chinês (em 1999 se fala em algo em torno de 100 milhões, somente na  China) e adesão de membros do governo, militares e das forças de segurança. No início permitida e até mesmo incentivada pelas autoridades, entretanto, setores do Partido Comunista - com Jiang Zemin à frente - enxergaram no avanço/expansão da Falun Gong um elemento cultural diferenciado do mainstream e que poderia estar induzindo os chineses para uma visão não integrada ao tripé político-cultural dominante (Partido Comunista-Militares-Professores universitários). A Falun Gong foi criminalizada pelos comunistas e brutalmente perseguida, sensivelmente na administração de Jiang Zemin, o qual determinou a sua erradicação e que pareceu querer reeditar medidas violentas usadas em outras oportunidades pelo aparato policial-militar chinês, agora contra os adeptos da Falun Gong  (enquanto a Falun Gong mesma seria uma "reedição" com vestes mais brandas da tradicional cultura chinesa milenar). Calúnias, prisões sem julgamento, torturas, aplicação de substâncias nocivas ao cérebro humano, extração de órgãos vitais de pessoas detidas e identificadas como membros da Falun Gong para venda no mercado negro e assassinatos – da aplicação de todas estas medidas impiedosas e cruéis  pesam acusações contra o governo chinês por aqueles que defendem a causa da Falun Gong... A Falun Gong estava trazendo os chineses de volta para sua origem, mas ela não soube - ou não se preocupou com - prevenir melhor,  a um nível suficiente/satisfatório ou seguro, numa sociedade em que o indivíduo e a vida humana são propriedade/permissões do Estado,  a reação demoníaca dos totalitaristas - talvez acreditaram  que informar não se tratar de um movimento de índole religiosa fosse suficiente (numa sociedade em que a religião é considerada nociva e criminalizada)...]

 

O texto do sr. I-Yao Bao termina mais brando, informando sobre algumas concessões (minimais, pois tudo o que os tibetanos fazem tem que ser informado e autorizado pelas autoridades comunistas) e melhorias materiais trazidas ao Tibet por conta de sua anexação à China.

 

(...)

 

Como budista eu vejo - e sinto em mim mesmo - as dificuldades passadas/suportadas pelo Dalai Lama com a Causa Tibetana, maiormente quando ele encabeçava a mesma. Hoje ele já está com 80 anos de idade e fez bem em afastar-se, em 2011, haja vista sua idade e sua posição na ordem Gelug.

 

Quando, no interesse da causa tibetana, ele se via na situação de não apenas ter que se posicionar em relação à R. P. China – que recusa não apenas qualquer negociação mas, também, o mero diálogo e exige renúncia integral de qualquer demanda/postulação ou pretensão em relação a um Tibet senão independente, ao menos com uma maior autonomia dos tibetanos em sua própria terra levando-s em conta a presença chinesa – o Dalai Lama, por força desse engajamento, tinha que se envolver com o mundo da política, com as escusas e desculpas, com as artimanhas e promessas sem cumprimento, com as muitas desistências e recuos por causa das pressões chinesas... tinha que se envolver com pessoas, não poucas vezes, com um nível ético muito abaixo daquele formulado pelo Buddhadharma e assim se expor, desviando, por causa da atividade política, de um engajamento mais profundo com as práticas e acumulações de mérito e sabedoria budistas. Se via também na posição de tentar abrir portas que a pressão chinesa não conseguisse fechar.

 

Figura pública notória e vendo-se na posição de ter que “abrir portas” (ao invés de fechá-las), em 1984 o Dalai Lama presidiu uma cerimônia budista no Japão, a pedido da seita Agon-Shu. Naquela ocasião encontrava-se presente o sr. Shoko Asahara (responsável pelo atentado com gás sarin no metrô de Tokyo, em março/1995 - o evento terrorista, porém, é posterior à formação de amizade entre o Dalai Lama, a seita Agon-Shu e Asahara). Também, o Dalai Lama estava pouco informado sobre a maneira de Asahara conduzir seu grupo pessoal no Japão [*]; ele não sabia, nos contatos que tiveram, inclusive na Índia (meditaram juntos), que o grupo de Asahara NÃO se tratava de um núcleo budista tradicional japonês (apesar dos conselhos repassados a Asahara pelo Dalai Lama) porém, assim como a Agon-shu - a qual tem em seu corpo de ensinamentos modificações que são desvios doutrinais flagrantes e significativos - uma complicada seita (na acepção negativa da palavra “seita” - envolvendo desvio doutrinal, deificação do líder e fanatismo - já que, no âmbito japonês, a palavra “seita” pode significar apenas “escola” ou “seguimento”).

 

[nota: Asahara se engajou, em 1986, numa busca por realização espiritual, deslocando-se à Índia e, uma vez lá estando, à região dos Himalaias onde teve contato com mosteiros budistas; por lá voltou a rever o Dalai Lama, o qual recebeu sua visita e formou alguma amizade entre ambos (na verdade, o Dalai Lama ciente da situação decaída de algumas seitas budistas japonesas, tentou trazer Asahara para um posicionamento melhor com o Buddhadharma); praticou Yoga, técnicas taoístas e budistas e teve contato, também, com o Shaivismo, tendo realizado alguns siddhis (faculdades supranormais) como o da levitação (evento comprovado). Alega ter atingido alguma forma de samadhi que interpretou corresponder a uma altíssima elevação. Do ponto de vista budista (e também hindú), se uma elevação espiritual altíssima é atingida, efetiva e verdadeiramente, a busca cessa (ou cessa como nós imediatamente a podemos perceber, pois passa a se postar ao nivel da elevação alcançada). Ainda, desde o ponto de vista budista, todos os líderes de seitas que se vêem a si mesmos como deuses, gurus supremos, avatares, iluminados etc, estando na perspectiva de um "eu" que é apenas uma auto-apreciação ("eu sou isto", "eu sou aquilo", "eu sou ninguém", "eu sou um grande iluminado") estão na perspectiva egotista/egóica, portanto enfermos, no erro e não iluminados. Curiosamente, Asahara ao invés de “descansar” ou permitir os desdobramentos espontâneos de sua experiência - os quais, em se tratando realmente de uma elevação espiritual autêntica, legítima, deveriam ser desdobramentos sadios, benignos - , não encerrrou a busca mas passou a interessar-se, primeiro pelo Apocalipse de São João e, em continuação, pela obra de Nostradamus. Os ensinamentos cristãos de Asahara não eram ortodoxos nem tradicionais, mas propriamente inclinados, imbuídos do estilo messiânico (Cristo se forma dentro das nossas almas como o Menino Jesus, não como "Messias" - a imagem do Menino Jesus com os santos se trata de uma realização espiritual  alcançada; adentramos, vamos penetrando e crescendo  na realidade crística e ela vai nos direcionando ao nosso verdadeiro lugar/posição, sem necessidade de intervenções ou manifestações egotistas/egóicas). Quanto a Nostradamus, não tenho muito o que dizer, por não ser o universo espiritual que eu formulo - prefiro a ortodoxia/tradição sem pretensões messiânicas/avatáricas (e embora Nostradamus me despertasse alguma curiosidade - por sinal, aquela verificável, também, nas demais pessoas). Asahara estava em boa posição com vários representantes do Budismo Tibetano face seu interesse espiritual e preocupação com os refugiados tibetanos. A "mistureba" de Asahara parece ser a responsável por seu colapso - no meio de sua "MISTUREBA" deve ter havido algum(ns) componente(s) ou "alimento" ruim, fake ou estragado. A “quebra” - ou queda - de Asahara começa a apresentar seus sinais exteriores justamente neste período com preocupações proféticas, que é quando ele começa a fazer profecias de cunho próprio e achar-se uma espécie de avatar, altíssimo guru ou deus... Após o atentado, preso e julgado, ele foi condenado à pena de morte. O Japão não informa as datas das execuções capitais e, em princípio, Asahara encontra-se em reclusão por tempo indeterminado...]

 

 

O Judaísmo ensina, com veracidade e palavras simples, que “a opressão faz enlouquecer até o sábio” (Livro Eclesiastes, 7:7). Segundo o governo chinês prevalece quem é mais forte e mais influente. Segundo o Judaísmo, a verdadeira sabedoria, todavia, termina por vencer a força (Livro Eclesiastes 9:13-16).

 

A preparação de uma dalai lama é especial, incomum, mas o homen Tenzin Gyatso não é um “super-homem” como alguns supõem, mas um ser humano passível de também sentir dor, tristeza, frustração, etc – uma vez que, ainda que munidos de formação e treinamento especiais, ele e outros mestres tibetanos também têm entranhas como todos nós [*].

 

Quem está engajado com a causa tibetana tem que lidar com o lodaçal que muitas vezes pode ser encontrado nos circuitos e meandros da politica - além do pesadelo da prepotência e arrogância chinesas.

 

Vendo muitos tibetanos fortemente envolvidos com a causa do Tibet, o conselho espiritual/ético da Bhagavad Gita sobre o Karma Yoga (capítulo 3) é apropriado na situação de pessoas que não lutam apenas por causas políticas: agir da melhor maneira possível, fazer o melhor que nossas mãos possam, sem se prender à expectativa de resultados (venham os mesmos favoráveis ou desfavoráveis), sem deixar a perspectiva de resultados tomar conta do coração, ao ponto de turbá-lo e desviá-lo/embotá-lo para a perspectiva metafísica, transcendente ou superior.

 

[nota pessoal: só Buddhas encarnados, manifestando plenamente a iluminação alcançariam a condição que algumas pessoas supõem que já esteja manifesta nos mestres tibetanos. Os chineses informaram encontrar buddhas vivos no Tibet. O Buddhato e o Nirvana são formados em nós. Podem então estar latentes ou subsistir juntamente com o karma de uma existência social? Sim... É o que acontece não apenas em relação ao Budismo Vajrayana, mas em todo o processo espiritual verdadeiro... ]

 

 

O Prof . Joseph Campbell recolheu alguns depoimentos de testemunhas oculares no seu livro “As Máscaras de Deus – Mitologia Oriental”, capítulo 9 – Editora Palas Atenas; esses depoimentos fazem parte dos relatórios reunidos pela Comissão Internacional de Juristas. Transcrevo uma parte deles aqui:

 

 

Um monge de trinta e sete anos, que fugira de Thrashak, aldeia Nyarong, para o Nepal, testemunhou que em março de 1955 todas as pessoas de sua aldeia, inclusive os monges, foram convocadas para uma reunião e interrogadas sobre onde seus chefes haviam conseguido suas fortunas e se eles as tratavam mal.

 

A resposta foi que ninguém tinha sido maltratado e que não havia queixas dos líderes.

 

Na reunião, os chineses requisitaram as armas e munições. 

Então, perguntou-se aos monges que tipo de colheitas, propriedades e bens eles tinham e quem eram os bons e maus líderes. 

A resposta foi que seus líderes eram bons e os tratavam bem.

Os chineses então disseram aos monges que eles eram todos corrompidos e que deveriam casar-se.

Os que recusaram casar-se foram mandados para a cadeia e ele próprio viu dois lamas, Dawa e Naden, que estavam entre eles, crucificados com pregos e abandonados à morte.

 

Um lama chamado Gumi Tsering foi perfurado na coxa com um instrumento pontudo como um furador da grossura de um dedo. Ele foi torturado dessa maneira porque se recusou a pregar contra a religião.

 

Os chineses chamaram seus companheiros lamas e monges para carregá-lo. Eles participaram da tortura e ele morreu. Não se sabe se foram forçados a fazê-lo.

 

Depois disso muitos monges e aldeões fugiram.

 

Até onde sabe o informante, nenhum monge concordou em casar-se e ouviu dizer que outros doze tinham sido crucificados.

As crucificações eram realizadas nos mosteiros e ele soube delas porque fugitivos voltavam a noite para saber o que estava acontecendo. [...]

 

Eles viram muitos chineses dentro do templo, para onde também levavam seus cavalos.

 

Os chineses levaram também mulheres para ali, mas os monges recusaram-se a possuí-las. Eram mulheres khamba, levadas em grupos por chineses armados.

 

As escrituras foram transformadas em colchões e também usadas como papel higiênico.

 

Um monge de nome Turukhu Sungrab pediu aos chineses que desistissem e seu braço foi cortado acima do cotovelo. Disseram-lhe que Deus lhe daria de volta o braço. Os chineses lhe disseram que a religião não existe e que sua prática era o desperdício da vida e do tempo da pessoa. Por causa da religião as pessoas não trabalhavam.

 

(...)

 

Um agricultor de cinqüenta e dois anos, de Ba-Jeuba, ao ouvir um alvoroço na casa do irmão, olhou pela janela e, em suas próprias palavras, "viu os gritos da esposa de seu irmão serem sufocados com uma toalha. Dois chineses seguraram-lhe as mãos e outro estuprou-a; em seguida, os outros dois, cada um por sua vez, a estupraram e foram embora".

 

(...)

 

Em 1954 quarenta e oito bebês daquela aldeia, com menos de um ano de idade, foram levados para a China, porque, disseram os chineses, assim seus pais poderiam trabalhar mais. Muitos pais suplicaram aos chineses que não levassem os bebês. Dois soldados e dois civis com alguns colaboradores tibetanos entraram nas casas e tomaram os bebês dos pais à força. Quinze pais que protestaram foram jogados no rio pelos chineses e um se suicidou. Todos os bebês eram de classe média e alta. [...]

 

Os filhos eram estimulados a submeter os pais a injúrias e a criticá-los se não se sujeitassem aos costumes chineses. A doutrinação tinha começado.

 

Um jovem doutrinado viu o pai com um moinho de orações e um rosário e se pôs a chutá-lo e maltratá-lo. O pai começou a bater no garoto, que lhe devolveu os golpes e algumas pessoas vieram fazê-los parar com aquilo. Três soldados chineses chegaram e impediram que as pessoas interviessem, dizendo-lhes que o garoto tinha pleno direito de fazer o que estava fazendo. O garoto continuou a maltratar e a golpear o pai, que ali mesmo se suicidou, jogando-se no rio. O nome do pai era Ahchu e o do filho Ahsalu, de dezoito ou dezenove anos. [...]

 

(...)

 

Em 1953, esse mesmo informante foi chamado para testemunhar a crucificação de um homem de uma família abastada, em sua aldeia de Patung Ahnga.

Uma fogueira foi acesa por baixo do homem e ele viu a carne queimar. 

Ao todo vinte e cinco pessoas das classes abastadas foram crucificadas e ele assistiu a todas as execuções. Quando deixou o Tibete, em janeiro de 1960, a luta ainda continuava em Trungyi. [...] 

 

A esta altura os mosteiros daquela região tinham deixado completamente de existir enquanto instituições religiosas. Estavam sendo usados como alojamentos dos soldados chineses e os andares inferiores eram usados como estábulos. 

 

Algum tempo depois de as crianças terem sido enviadas para a China, ele viu vinte e cinco pessoas assassinadas em Jeuba com pregos enfiados nos olhos. Novamente o povo foi chamado para testemunhar. Eram pessoas de classe média e os chineses disseram que aquilo estava sendo feito porque elas não estavam no caminho do comunismo, pois haviam expressado sua relutância em colaborar e em enviar os filhos à escola. 

 

(...)

 

"Em 1956 os chineses cercaram o mosteiro Litang enquanto se realizava uma cerimônia especial, e a testemunha (um nômade de 40 anos, de Rawa, situada a um dia de viagem), assistia à cerimônia dentro do mosteiro junto com outros forasteiros. 

Os chineses disseram aos monges que havia apenas duas vias possíveis: o socialismo e o antigo sistema feudal. 

Se eles não entregassem toda sua propriedade ao socialismo, o mosteiro seria inteiramente destruído. 

Os monges recusaram-se. [...] 

Durante sessenta e quatro dias, com a testemunha ainda dentro, o mosteiro permaneceu cercado. 

Os chineses atacaram os muros e os monges lutaram com lanças e espadas. 

No sexagésimo quarto dia aviões bombardearam e metralharam o mosteiro, atingindo os prédios anexos mas não o templo principal.

Naquela noite, cerca de dois mil monges fugiram e mais ou menos dois mil foram presos. [...]

 

" Um lama foi crucificado, outro morto queimado, dois outros baleados e feridos — um lançado em água fervendo e estrangulado e o outro apedrejado e golpeado na cabeça com um machado.

 

(...)

Um chefe de aldeia de Ba-Nangsang foi mandado para Minya a fim de ver o que acontecia com as pessoas que se opunham à reforma. 

 

"Um homem chamado Wanglok foi preso e levado a um grande salão onde tibetanos foram obrigados a presenciar o que acontecia. Mendigos que se tinham tornado soldados do exército chinês golpearam-no com varas e despejaram água fervendo em sua cabeça. Ele então admitiu possuir nove carregamentos de ouro (que jamais apareceram, diz a testemunha). Ele foi amarrado e pendurado pelos polegares e dedões dos pés. Queimou-se palha embaixo dele e interrogaram-no sobre o paradeiro do ouro. Um prego de cobre incandescente, de uns 3 cm de comprimento foi então enfiado em sua testa. Em seguida foi posto em um caminhão e levado embora. Os chineses disseram que o tinham levado para Pequim."

 

Os pés do lama Khangsar, o abade de Litang, foram algemados juntos e uma estaca foi atravessada sobre seu peito e braços. "Então amarraram-lhe os braços, com um arame. Ele foi pendurado com uma pesada corrente em volta do pescoço e enforcado, apesar de as pessoas suplicarem por sua libertação. O uza (recitador de orações) foi preso, despido e queimado nas coxas, peito e nas axilas com um ferro incandescente de mais ou menos dois dedos de espessura. Isso foi feito por três dias, com aplicações de ungüentos entre uma sessão e outra. Quando a testemunha partiu, após quatro dias, o uza ainda estava vivo."

 

(...)

No mosteiro Sakya, perto de Sikkim, arrancaram o cabelo, em público, à mãe da mulher de um lama Nyngmapa (linhagem dos Bonetes Vermelhos, na qual os religiosos se casam). 

 

Em Derge Dzongsar a filha de um chefe de aldeia, de aproximadamente 40 anos, foi primeiro maltratada como exploradora do povo; depois, com a boca cheia de capim, foi arreada e selada e a ralé montou em suas costas, fazendo-a andar de quatro; em seguida, os chineses fizeram o mesmo. 

 

(...)

 

Em uma aldeia da província de Amdo, Rigong, onde as pessoas estavam reunidas para ver seus líderes serem mortos, "um homem foi baleado por etapas, de baixo para cima, em nove etapas ao todo. A um outro homem perguntou-se se preferia morrer de pé ou deitado. Ele preferiu de pé. Abriu-se uma cova e ele foi colocado dentro. Em seguida, a cova foi coberta de terra e socada. E continuaram socando, mesmo depois de ele já ter morrido, até seus olhos saltarem da cabeça e serem então cortados pelos chineses. Quatro outros foram obrigados a relatar as culpas de seus próprios pais, que eram devotos da religião etc., para em seguida serem mortos com tiros na cabeça. Como seus miolos se espalharam, os chineses os chamaram de flores vicejando".

 

(...)

"Que uma centena de flores viceje", escreveu Mao-Tsé-Tung, "e que se enfrentem uma centena de doutrinas de pensamento."

 

"Identidade, unidade, coincidência, permeação recíproca, interpenetração, interdependência (ou interdependência para existir), interconexão ou cooperação — todos estes diferentes termos significam a mesma coisa e se referem às duas condições seguintes: primeiro, no processo de desenvolvimento de uma coisa, cada um dos dois aspectos de cada contradição encontra a pressuposição de sua existência no outro aspecto e ambos os aspectos coexistem em uma entidade; segundo, cada um dos dois aspectos contraditórios, de acordo com as condições dadas, tende a transformar-se no outro. É isso o que se quer dizer com identidade."

 

"A revolução agrária que realizamos já é e será um processo no qual a classe dos latifundiários se torna uma classe privada de suas terras, enquanto os camponeses, antes privados de suas terras, se tornam pequenos arrendatários. Os 'ter e não ter', ganhos e perdas, estão interligados por causa de certas condições; há identidade dos dois lados. Sob o socialismo, o sistema de propriedade privada dos camponeses tornar-se-á, por sua vez, a propriedade pública da agricultura socialista; isso já ocorreu na União Soviética e ocorrerá em todo o mundo. Entre a propriedade privada e a propriedade pública há uma ponte que liga uma à outra, que em filosofia se chama identidade, ou transformação uma na outra, ou permeação recíproca."

 

(...) 

 

Na região de Amdo, também em Rigong, arrancaram o cabelo, em público, a três lamas muito importantes; tiraram seus sapatos e eles foram golpeados e depois forçados a se ajoelhar no cascalho. "Perguntaram-lhes: "Pelo fato de serem lamas, não sabiam que seriam presos?' Três poços foram abertos e os lamas colocados dentro deles. Os presentes foram obrigados a urinar sobre suas cabeças. Os chineses, então, convidaram os lamas a sair dos poços. Em seguida, foram levados para a cadeia e algemados juntos nos pescoços e forçados a carregar excrementos humanos em balaios." 

 

(...)

 

Um homem de vinte e dois anos, de Doi-Dura, na região de Amdo, foi informado pelos chineses de que necessitava de tratamento para tornar-se mais inteligente. Os chineses naquela época diziam aos tibetanos que eram uma raça estúpida inferior que teria de ser suplantada pelos russos e chineses. Fizeram exames de sangue desse homem, de sua mulher e muitos outros e há uma série de relatos coincidentes de muitas partes do Tibete detalhando o tipo de operação a que esse homem e sua mulher foram forçados, no dia seguinte, a se submeter. Ambos foram levados a um hospital. "Ele foi totalmente despido, colocado numa cadeira e seus órgãos genitais foram examinados. Em seguida o submeteram a um exame digital do reto e o dedo foi movimentado. Ele então ejaculou um líquido esbranquiçado e uma ou mais gotas caíram em uma lâmina de vidro que foi levada embora. Depois, um longo instrumento pontudo com cabos como os de tesoura foi inserido na uretra e ele desmaiou de dor. Quando se recuperou os médicos lhe deram um comprimido branco, dizendo-lhe que ia dar-lhe forças. Aplicaram-lhe então uma injeção na base do pênis, onde ele se une ao escroto. A agulha causou dor, mas a injeção não. Ele sentiu a região momentaneamente anestesiada até a agulha ser retirada. Ficou dez dias no hospital e depois um mês de cama em casa. [...] Ele estava casado há apenas dois anos e antes desse tratamento tinha fortes desejos sexuais. [...] Depois disto, eles desapareceram totalmente. [...]"

 

Enquanto isso, sua mulher "foi despida e amarrada. Suas pernas foram erguidas e abertas. Inseriram-lhe na vagina algo muito frio e que lhe causou dor. Ela viu uma espécie de balão de borracha com um tubo de borracha, cuja ponta foi inserida na vagina. O balão foi apertado e ela sentiu algo muito frio dentro de si. Não lhe causou dor, pois apenas o tubo e não o balão foi inserido. Ela permaneceu consciente o tempo todo. Então foi levada para a cama. O mesmo procedimento foi realizado todos os dias durante uma semana. Depois disso, foi para casa e permaneceu de cama por mais ou menos três semanas". A partir daí não teve mais nenhum desejo sexual nem menstruou.

 

 

"O oficial do distrito de Tuhlung fugiu e foi capturado dois dias depois. Cortaram-lhe os lábios, o amarraram e o levaram nu de volta para Tuhlung. Os chineses não estavam satisfeitos com o ritmo de sua marcha; como era um homem gordo, não conseguia caminhar muito rapidamente e era espetado com baionetas para caminhar mais depressa. A testemunha viu-o coberto de ferimentos de baioneta. Os chineses amarraram-no a uma árvore e convidaram os tibetanos a bater nele, acusando-o de crueldade. Disseram-lhes que não o matassem com os golpes, pois isso o beneficiaria. [...] Na verdade, ele foi golpeado pelos chineses e morreu depois de oito dias. Seus lábios foram cortados quando ele suplicou para ser morto em vez de torturado."

 

(...)

 

E finalmente — apesar de os relatos serem inúmeros — havia um nômade de 49 anos, antigamente proprietário de vinte ou trinta iaques e que vivia em tendas, que viu dois de seus companheiros queimados vivos em público. 

 

Depois viu todas as pessoas abastadas da região de Kham serem executadas e, em seguida, os lamas e os monges. Estes últimos foram tirados dos mosteiros do distrito e cerca de mil foram executados em público. 

 

O informante viu-os claramente de uma montanha onde estava escondido. "Viu quatro serem estrangulados com uma corda da qual pendia uma pesada imagem do Buda. [...] E ele viu Dzorchen Rimpoche, um dos mais famosos lamas do Kham, amarrado a quatro estacas e inteiramente eviscerado. A acusação contra os lamas era que enganavam e exploravam o povo." 

 

Em Doi, na região de Amdo, em 1955, os monges "foram levados para as lavouras, encangados aos pares, para puxarem o arado sob o comando de um chinês que empunhava um chicote".

 

 

 

                                                                                    ___________________________

 

Al Hallaj (Hussain Ibn Mansur Al Hallaj)

09/03/2015 04:26

 

 

Al Hallaj (858-922 EC), “o que desperta as consciências” (o santo), “o que está perdido em Deus” (o místico) é um dos grandes sufis do século X, vinculado à tariqa/confraria sufi do grande Al Junayd de Baghdad (atualmente capital do Iraq).

 

Mansur Al Hallaj ("o cardador de algodão"), foi uma persa que descendia de uma linhagem de sacerdotes zoroastristas, por parte de seu avô paterno.

 

Num momento em que os sufis, não apenas em Baghdad, mas em outras localidades, no intuito de evitar entrechoques e contendas com os Ullemahs/Doutores da Lei Corânica adotavam uma postura caracterizada pela discrição e por deixar em paz o grande público, Al Hallaj, em alcançando êxitos significativos em sua prática espiritual e ascese, surge divulgando e pregando a Unidade e o Amor Divino, muitas vezes em locais públicos - como praças e centros abertos com concentração de pessoas -, se dirigindo, conforme a disposição que o guiasse, a quem quer que fosse do público em geral (e tornando-se pai espiritual de muitos que, pelos seus feitos miraculosos e pregação, tornaram-se seus discípulos).

 

[nota: quando Hallaj se associou à tariqa de Al Junayd o mesmo orientou-o a que observasse retiro e silêncio. Com efeito, Hallaj cumpriu a recomendação do mestre por um certo número de anos; entretanto, com o surgimento dos resultados benignos em sua ascese, decidiu, de per si, romper com a norma e seguir a vocação que pulsava dentro de si, o que foi motivo de desagrado e censura pelos sufis que observavam a sobriedade e a discrição ...]

 

Hallaj esteve por dois anos com o mestre sufi Abd Allah Teshtari, após o que se tornou discípulo de Al Junayd de Baghdad. Fez três peregrinações à Meca sendo que, na primeira delas, permaneceu por um ano, frente à mesquita, em jejum e em silêncio. Fez viagens distantes para localidades da Ásia Central bem como à Índia e seguidores iam se agregando ao santo. Findas suas viagens, estabeleceu-se em Baghdad.

 

 

Fato, para mim notável, é constar no registro biográfico que Al Hallaj usou as vestes amarelas (açafrão) dos yogues e gurus indianos. Eivados de uma visão não-estreita e aberta ao reconhecimento da validade de outras posições/orientações tradicionais, eis que os Sufis se associaram com posições do Hinduísmo como o Vaishnavismo, o Vedanta e o Yoga. Um caso exemplar sucedeu em relação à Tradição Natha - shaiva yogins remontando a Matsyendranath e Gorakshanath, com várias ramificações  -, que abrigava em seu âmbito shaivas, budistas e também muçulmanos sufis (com a chegada do Islam à Índia) através da observação de uma regra comum pelos membros das diversas confissões, devendo ser mencionado, inclusive, que a Tradição Natha teve, onde ela agregou membros sufis, muçulmanos na posição máxima de liderança da ordem. Como os membros da Tradiçao Natha mantinham regularmente suas posições de origem - budistas vajrayana e sufis -, naturalmente algumas práticas dos sufis indianos foram incorporações resultantes deste contato dos sufis com posições das tradições originárias da Índia. Nao há base documental para eu afirmar, por exemplo, que Hallaj contactou e/ou integrou algum ramo da Tradição Natha (e, sinceramente, no momento eu repassaria a incumbência desta verificação/reconstituição aos eruditos da área); mas verificando sua biografia - e não apenas em decorrência de seu deslocamento material à Índia - percebe-se (para a minha pesquisa, nitidamente) que ele praticou - e dominou - técnicas do Yoga, as quais ele poderia tê-las aprendido com os próprios sufis indianos[*].

 

[nota: tentando eu efetuar uma reconstituição pessoal de quais foram as práticas espirituais de Hallaj – uma vez que Hallaj possuía faculdades supranormais/siddhis -, dá-se a entender que ele, no mínimo, praticou (e foi bem sucedido nesse propósito) o Hatha Yoga e/ou o Kundalini Yoga. Se conta que certa vez, num ajuntamento, Hallaj adotando uma ásaná (postura corporal do Yoga) consistente em suster-se apoiado sobre os ombros e a cabeça com as pernas para cima (ásaná realizada com objetivo de movimentar e fazer ascender a Kundalini), ao invés de manter-se em silêncio na execução da referida postura, começou a rezar o Dikhr (prece contínua muçulmana) - o equivalente a um yogin indiano ou ocidental, adotando a mesma postura corporal, acrescentar, no interim da execução da mesma, a entoação/recitação de japa

 

Em relação aos siddhis/faculdades supranormais, Mansur realizou um feito público miraculoso em Baghdad, por fazer aparecer num pomar, por sua intercessão, frutas próprias da estação de verão em pleno inverno; entretanto, quando chegou o verão tornou a surpreender fazendo surgir frutas do inverno na estação quente. Hallaj era capaz de perceber e revelar o que tinha sido feito pela pessoa em segredo e conhecia os pensamentos mais íntimos dos que se aproximavam dele.

 

Essas faculdades supranormais não denotam nem caracterizam a presença de uma elevação ou de uma iluminação efetivas, sendo apenas consequência da execução correta e contínua de algumas práticas e exercícios espirituais – como os desenvolvimentos da prática do Yoga, por exemplo - podendo, inclusive, os siddhis se tornarem uma fonte de estorvo e desvio, um “narcótico espiritual” (e mesmo uma doença) para o seu possuidor e para aquele que aprecia presenciar a sua manifestação – o autoengano tem várias fontes: não apenas o que pode advir como decorrência da postura adotada em relação ao surgimento/manifestação de faculdades supranormais, mas também as belas e bem colocadas palavras, a erudição e a acumulação de conhecimentos – necessárias já que não é possível avançar sem informações verdadeiras, fidedignas, objetivas e abrangentes - porém sem a contrapartida da realização interior/espiritual. 

 

Além do mais, se são os siddhis que alguém está interessado em - ou procurando por -, vale lembrar que nem todos os praticantes – no Yoga, por exemplo - desenvolvem siddhis; e isto é assim, mesmo que, no caso do Yoga, pratiquem por anos a fio e ainda que cumpram todas as séries  de ásanás e demais exercícios, preceitos e sadhanas prescritos bem como estejam vinculados/conectados a uma família/linhagem espiritual autêntica (afinal, não obstante a possibilidade efetiva de advirem benefícios reais à saúde, todavia o Yoga: 1) não é "ginástica" e 2) possui transmissão). 

 

A verdadeira realização interior/espiritual pode ser percebida em Hallaj, o qual tinha um coração puro – pois que nunca perdeu o foco na Unidade e no Amor Divino -, sendo possível perceber, no seu caso pessoal, que os siddhis para ele eram não mais que meros acessórios - ou ainda meros “brinquedos” - que ele se valia quando julgava conveniente... 

 

Não deve ser negligenciado também que Al Hallaj recebeu a Baraka de dois santos sufis: Teshtari e Al Junayd, e deve ser considerado a possibilidade de outras transmissões advindas de seus contatos em Ásia Central e Norte da Índia. Pessoalmente, entendo que Hallaj não precisava do rito que submete os Djins (gênios, espíritos de índole boa e má) - rito esse pertinente à senda/mundo dos magos -, haja vista a sua bem estabelecida colocação com a perspectiva da Unidade e do Amor Divino. É improvável que este rito tenha vindo de Al Junayd ou Teshtari. O padrão espiritual de Al Junayd, por exemplo, é altíssimo; e ele, prudente, desenvolveu uma exposição do Sufismo que não se chocava com os Ullemahs...]

 

Entre o povo simples de Baghdad corriam os comentários que Hallaj poderia ressucitar os mortos, e que os djinns – gênios, espíritos benignos e malignos - lhe eram totalmente submissos, e faziam tudo o que ele pedia. Também Hallaj desconsiderava os Ullemahs, baseando seu ensinamento em Cristo, quem ele considerava ser um sufi e reverenciava. 

 

O sogro de Al Hallaj  indignou-se contra ele em decorrência de suas façanhas, exposição e fama – e lamentou ter dado a mão da filha em casamento a um “mago astucioso” e um farsante. Mansur foi pai de quatro crianças. 

 

Para os Ullemahs, Hallaj se tratava de um feiticeiro e de um apóstata.

 

Posteriormente, Mansur haveria de ser condenado primeiro à prisão, depois à pena capital, por membros da corte abássida - em conluio com os Ortodoxos - como fanático e cristão secreto.

 

 

O Objetivo Final para o Sufismo é a Identidade Suprema. Requisito necessário para se chegar a esta posição é a eliminação da dicotomia entre sujeito e objeto. O Sufismo desenvolveu em sua metafísica a doutrina do Fanna/Extinção do 'Eu' ('Nafs'). Fanna é realizado pelo sufi que destruiu ou desembaraçou-se da noção de identidade baseada em um 'eu' (nafs). Entenda-se: o 'eu'/nafs é “eu” psicológico, tendências e inclinações latentes, é natureza-desejo; não o que é. Realizado o Fanna/Extinção o que há, então? ou o que resta? Para o Hinduísmo, a consciência testemunha; já a resposta budista é que há apenas o que é - em ambos os casos a verdade daquilo que nós sempre somos [*].

 

[nota: após a leitura do pequeno e ótimo livro “A mente na psicologia budista” de Ye-shes rgyal-mtshan (Geshe Gyaltsan) - o título original é "O colar da compreensão clara" -, traduzido do tibetano para o inglês pelo prof. Herbert Guenther juntamente com Leslie S. Kawamura, decidi engajar-me mais detidamente nesse estudo da abordagem Yogachara – especificamente a obra explana o Abhidharmasamuccaya (de Asanga) complementando as explanações com comentários do Abhidharmakosha (de Vasubandhu), e algo do Sikshasamuccaya (este de Shantideva, o qual não foi da escola Yogachara). 

 

Acompanhando com vagar o trajeto exposto nesta obra, tomando notas num caderno e me esforçando em absorver corretamente aqueles ensinamentos sobre o funcionamento da mente, acordei numa manha e não ocorreram a mim as recorrentes impressoes da psique (nem as conhecidas samskaras e vasanas -  bem como kleshas/más paixões e, no plano dos tattvas, o constituinte  ahamkara/sentido dualista de separação  "eu"/"mundo"-"eu"/"outros" ou sentido egotista - conforme o ensino das escolas shaiva e samkhya; já na doutrina sufi, foram categorizados 54 nafs/'eu' e atingir Fanna/Extinção significa ter queimado, extinguido todos esses padrões, no sentido de não mais interpretá-los/reconhecê-los como sendo “meu eu”); acordei naquele dia e passei aquela manhã inteira sem o peso, sem a carga do 'eu' psicológico, sem a bruma do ahamkara  - enquanto que as tendências latentes fluíam sem a identificação egotista. 

 

Se alguém me perguntasse: “e como é isto?”. Shiva dançando sobre o anão. Uma abertura, uma fluidez mental, como uma cachoeira cristalina deslocando-se naturalmente para um rio limpo, sem as categorizações do egotismo... Um dos objetivos da prática espiritual é fixar permanentemente esta abertura ou fluidez... 

 

No mais, sendo eu um Madhyamika, nunca mais a abordagem psicológica do Yogachara saiu da minha casa...]

 

 

 

Al Hallaj proclamou, abertamente e em voz alta, às pessoas em Baghdad, as seguintes declarações:

 

  1. Ana al-Haqq” ("Eu sou a Verdade").

  2. Debaixo deste turbante nada existe a não ser Deus”

  3. Sob este manto não há nada exceto Deus”

 

Al Haqq” (“A Verdade”) é um dos 99 nomes divinos de Allah constantes no Corão; então, num primeiro momento, isto poderia levar a crer que Hallaj talvez pretendesse dizer que ele, pessoalmente, era o próprio Deus - o que implicaria em delírio, megalomania ou esquizofrenia (ou ainda endemoninhamento).

 

Para o Sufismo, porém, “Al Haqq” corresponde a uma elevação espiritual, a qual, não obstante tratar-se de grau espiritual elevado, ainda não se trata da Identidade Suprema, antes de uma aproximação incisiva e decisiva até ela.

 

Al Junayd, constatando a realização espiritual de Hallaj, havia orientado-o: "Ficai quieto. Eu sei, tu sabes, e é o suficiente. Não precisas dizer isso a ninguém - caso contrário, tu estarás em perigo e irás criar perigo para mim e para outros discípulos também... posso ver que alcançaste. Mas que isto seja um segredo entre eu e tu."

 

As autoridades religiosas se escandalizaram com as declarações feitas em público e Hallaj foi detido e preso como herege.

 

Instado a se retratar, recusou todavia fazê-lo, o que lhe custou a prisão por dez anos.

 

Num momento de profundo êxtase místico, Al Hallaj gritaria diante do próprio Califa: “Ana al Haqq”.

 

Como os cegos não enxergam, nem o califa nem as testemunhas das declarações inusitadas de Hallaj - proferidas no ínterim de estados de êxtase espiritual/místico - foram interpretadas corretamente. Não viram nem perceberam que diante deles estava um pessoa santa, embora um louco – entretanto não um louco em delírio por aflição mental, mas um louco divino -, maravilhado, deslumbrado com a abertura interior/espiritual, com seu transbordamento. Por causa disto Hallaj foi rejeitado e condenado - quando ele deveria ser deixado livre e em paz pelas autoridades. Mansur foi condenado sem haver crime [*].

 

[nota: O que fazer com seres humanos em situação como a de Al Hallaj? A resposta é: Nada. Ou, então, classificá-los como "loucos divinos" mas deixá-los livres, não perturbá-los. É como a Índia procede com os loucos divinos. Se Al Hallaj se conduzisse da maneira como se conduziu nas localidades do Norte da Índia, os indianos, presenciando suas ações, explicariam que se trata de um santo yogue ou um avadhuta muçulmano...]

 

Certa ocasião Al Junayd e Al Hallaj conversavam sobre a Tasawuff (Metafísica). Junayd, alterando o rumo da conversa,  disse, "Ó Mansur, antes de não muito tempo teu sangue vai avermelhar a cabeça da estaca.". Hallaj respondeu: "O dia quando eu avermelhar a cabeça da estaca, tu vais lançar fora a veste do derviche e assumir as vestes dos homens comuns.".

 

 

Posteriormente, mantendo Hallaj a mesma posição, o califa abássida Al Muqatadir, em conluio com as autoridades religiosas, condenou-o à morte por heresia.

 

Ante disto, Al Muqatadir convocou Al Junayd – o qual estava entre aqueles que rejeitaram Hallaj (em decorrência, no caso de Al Junayd, não das declarações em si, mas da exposição que poderia sobrevir aos sufis e ao Sufismo). Al Muqatadir disse, "Ó Junayd, qual é o significado destes dizeres de Mansur?". "Ó califa", respondeu Junayd, "este homem deve ser levado à morte, pois tais dizeres não podem ser razoavelmente explicados pela literatura sufi...”.

 

No dia em que Mansur foi levado à execução, todos os Ullemahs assinaram a sentença de morte. "Junayd também deve assinar," disse o califa Al Muqatadir.

 

Junayd colocou um manto e um turbante próprio dos Ullemahs e assinou – dando a entender que era a ortodoxia não-metafísca quem condenava Hallaj, e usando "vestes de um homem comum" como previsto por Mansur - a sentença com a seguinte observação; "embora aparentemente Mansur mereceu a morte, interiormente ele possuiu o conhecimento do Altíssimo."

 

Condenado como herege e como cristão em segredo, decidiu-se também crucificar Al Hallaj. Um derviche foi visitá-lo no patíbulo, aproximou-se e perguntou: “Ó Mansur, o que é o amor?”. Ao que Hallaj respondeu: “Tu o verás, hoje, amanhã e depois de amanhã...

 

Era o dia 26 de março de 922 EC. Al Hallaj, num ato realizado em três dias seguidos, foi acorrentado, espancado, torturado, açoitado, crucificado e mutilado... seu corpo foi decapitado, seus restos mortais queimados e as cinzas espalhadas no rio Tigre.

 

 

Eu sou Aquele que amo

E Aquele que amo é eu

 

Nós somos dois espíritos

morando em um corpo

 

Se tu me vês Tu vês a Ele também...

E, se acaso o viste, tu viste a nós ambos juntos...”

 

 

Uma noite se levantou o Sol que amo 

Resplandeceu e já não se ocultou mais.

 

Pois o sol do dia se recolhe em prol da noite

Mas o Sol do coração jamais se ausenta...”

 

 

A separação existe para a realização.

A realização para o verdadeiro caminho do amor.

A amor que nada quer,

O amor que nada necessita,

Nem mesmo ser amado

Porque num tal estado de realidade

Amante e Amado não são dois separados

Nunca!

Mas dois tornam-se um.

 

Contemplai!

Esse é o segredo do sufi

Dito por Mansur al Hallaj,

'Ana al Haqq',

Um verdadeiro amante em submissão total e aniquilação (fanna).

Imergiu no amor divino do Amado Final”

 

 

Cortaram as mãos e os pés de Al Hallaj, de modo que ele ficou amarelo com a perda do sangue. Logo, porém, ele esfregou os cotós dos braços no rosto, dizendo:

Nao me convém parecer pálido, porque pensarão que estou com medo”...

 

A isto, Farid Ud Din Attar, anotou:

 

Quem come e dorme no mês de julho com o dragão de sete cabeças se dará muito mal num jogo desses; mas o patíbulo será uma coisa insignificante para ele...”

 

O “dragão de sete cabeças” é a ascensão da Kundalini pelos canais sutis, percorrendo os sete chakras. Attar quer dizer que nalguma pequenina coisa, nalgum pequeno detalhe Al Hallaj não foi perfeito ou distraiu-se... Isto não alterou, porém, o resultado da sua realização.

 

Ibrahim Ibn Fatik, um discípulo de Hallaj, anotou [*]:

 

 

"Quando Al Hallaj foi levado pela turba para ser crucificado e viu a cruz e os cravos ...disse uma oração de duas inclinações [ajoelhando-se para rezar]. Eu estava muito perto dele. Recitou, primeiramente, a Abertura do Al Corão e o verso: “E te provaremos e tentaremos com o mau e o odioso” (Surata 21:35). Na segunda inclinação recitou novamente a abertura e o verso que principia com “Toda alma provará o gosto da morte” (Surata 29:57). Quando ele acabou, disse algumas palavras de que não me lembro, mas aquelas que me lembro foram as seguintes:

 

"Ó meu Deus, que estais revelado em todo e qualquer lugar e que não estais visível em qualquer lugar, eu vos rogo pela verdade da Vossa Divina Palavra, a qual declara que eu sou, e pela verdade da minha frágil palavra humana que declara que Vós sois, amparai-me em gratidão por esta Vossa Graça, que haveis escondido de outros e que haveis revelado a mim da Glória de Vossa majestade; e lhes haveis interdito o que me haveis permitido: a visão das coisas secretas pelo Vosso divino mistério.

 

E esses Vossos servos que estão aqui reunidos para me trucidar, em zelo pela Vossa religião, buscando Vosso favor, perdoai-lhes, Senhor. Pois se Vós lhes houvésseis revelado aquilo que Vós revelastes a mim, eles não estariam a fazer aquilo que estão fazendo; e tivésseis Vós ocultado de mim o que tendes ocultado a eles, jamais eu teria sido tentado nesta grande tribulação.

 

Louvado sejais Senhor, por tudo o que fazeis; louvado sejais por tudo o que esteja em Vossa Vontade...

 

Em continuação, Ibn Fatik concluiu:

“Fez-se depois grande silêncio... O carrasco avançou alguns passos e desferiu um tremendo golpe que lhe esmagou o nariz e a boca, enquanto o sangue corria pela sua túnica branca. Al Shibli [mestre sufi] que estava entre a multidãao, gritou em altas vozes e rasgou as suas vestes. Abu Hussein al-Wasitti desmaiou e o mesmo aconteceu com outros famosos sufistas que ali estavam, pelo que um motim quase eclodiu àquela altura. Depois, os carrascos terminaram seu trabalho...”.

 

[nota: obra “Islamismo” por John Walden Williams, publicado no Brasil dentro da coleção Biblioteca de Cultura Religiosa, 1964, Zahar Editores. O prof. Williams extraiu este testemunho dos estudos sobre Al Hallaj empreendidos pelo erudito francês prof. Louis Massignon - os trabalhos do prof. Massignon são a principal referência ocidental de estudos sobre Al Hallaj. 

 

No mais, do ponto de vista do exposto por Ibn Fatik,  patente a relação de unidade entre Islam e Sufismo. Embora  uma boa parte dos Ullemahs prefiram o teísmo dualista, o que corresponde a apenas um nível, uma esfera de se vivenciar o Islam e que, com as traduções modernizadas como as de Sayyd Qutub conduziu uma parte do Islam - tradição espiritual que reconhece a validade de outras posições - a uma visão reducionista da validade das outras tradições espirituais que o Islam sempre reconheceu, já eivada no seu nascedouro das características fundamentalistas.


No Ocidente temos a observação doutrinal repassada por René Guénon e os perenialistas de que "não há Esoterismo sem um Exoterismo que lhe corresponda"

Essa informação é verdadeira, em relação às tradições espirituais em geral (e ao Islam em particular),  no sentido de que: nem todos têm vocação metafísica, mas muitos têm abertura para a Espiritualidade. Nem todos são jnanis  mas a Via do Amor está aberta e é benigna a todos. Não obstante o desenvolvimento no Ocidente - bem como o crescimento - de correntes de opinião e engajamentos que pretendem limitar a possibilidade humana numa interação com a Realidade isenta de quaisquer considerações sobre o que concirna ao "Transcendente", "Espiritual" ou "Metafísico"; o fato é que o ensinamento de Cristo permanece atual: "A seara,  verdadeiramente, é grande, mas poucos os obreiros" (São Matheus 9-37).  Esoterismo (Metafísica - na caso, Metafísica Tradicional não a acadêmica derivada  da Filosofia) e Exoterismo (Religião) numa situação de normalidade, se complementam. 

O Esoterismo corresponde à Metafísica Tradicional - verifica os princípios, as essências espirituais e planos de ser e a possibilidade de reintegração com a Realidade Última - enquanto que o Exoterismo corresponde ao domínio religioso - adesão a uma confissão religiosa, integração com os ritos e práticas objetivando, num primeiro momento, a Salvação post mortem – construída, contudo, em vida - a qual consiste em participação na Bem-Aventurança (participação essa, todavia, no nível que alguém consigar alcançá-la, pelos relatórios e meios do Exoterismo), em relação a Céu e Inferno - o que não impede que, no domínio religioso, individuais alcancem elevações, mesmo sem valer-se dos relatórios e meios metafísicos. 

Na prática, na relação Exoterismo/Esoterismo os relatórios tradicionais metafísicos são mais aprofundados e as transmissões correspondem a realizações conforme  ao indicado em tais relatórios. O Budismo e as tradições hindús são metafísicos (e os relatórios metafísicos existem inclusive nos desenvolvimentos baseados na Bhakti Marga – Via do Amor – bem como no Amidismo). O Catolicismo engloba os dois níveis, mas o Catolicismo aprofundado só se torna acessível aos católicos que se engajam não apenas nos estudos, mas na efetivação da contemplação, dos exercícios espirituais e na realização da Vida Unitiva. O Islam tem sua tasawuff (metafísica) posicionada no Sufismo; e o Judaísmo na Kabbalah. 

O Protestantismo é não-metafisico, o que o conduz, pela sua estrutura sem os relatórios do Cristianismo tradicional, a ser antimetafísico bem como a restringir-se ao nível inicial do Louvor/Adoração, sem outros desenvolvimentos. Isto chega a ser estranho, pois entre os protestantes cultos, há eruditos que não apenas sabem grego e hebraico mas conhecem os documentos da Igreja Primitiva (conhecem também estudos valiosos, com importância para a perspectiva  cristã, como o do sábio francês René Girard e também Mircea Eliade); entretanto tal acervo de sabedoria e experiência cristãs não é incorporado em tempo algum ao que é repassado aos fiéis nem em cursos de doutrina (se limitam a cursos bíblicos, os quais, obviamente, são apenas iniciais). Tal situação pode gerar alguma ilusão e algum equívoco, pois há protestantes que acreditam ser tãos efetivos e tão profundos quanto o Cristianismo Primitivo - não desrespeitando o esforço pessoal de ninguém, mas isto é uma ilusão. A idéia fundamentalista de um Cristianismo "sola scriptura" (somente a Bíblia) é um produto moderno, inexistente na Igreja Primitiva, a qual se valia de obras como a Didakê e a Filokalia, registrava e prezava as homilias além das obras instrutórias/doutrinais e evangelizadoras dos santos padres.  Em relação à Igreja Primitiva os protestantes estão apenas - e, pelo que se vê, até o dia do Juízo Final - nos primeiros rudimentos. Os protestantes não sabem em que consistiu/consiste a  Liturgia Tradicional,  preservada enquanto o Catolicismo se manteve firme nas posições consignadas nos sete concílios ecumênicos - e a que, tristemente, o Concílio Vaticano II conduziu a Igreja a abrir mão, posicionando a Igreja na Via Mística, ao nível dos protestantes. A situação espiritual que se formou com o deslocamento do Catolicismo para a Via Mística a meu ver é tão grave - uma preservação fundamental, essencial do Cristianismo Primitivo (a Liturgia Tradicional) foi simplesmente "desligada" e isto  não por ineficiência ou ineficácia mas por não ter a aparência exterior que uma parte das pessoas modernas acha aceitável ou concorda - que a Igreja, hoje, respira menos no seu próprio alento/contrapartida, no seu próprio depósito espiritual, na sua dispensação e exaltação.  Há pessoas - mesmo na classe sacerdotal - que não entendem o que é um rito verdadeiro e, consequentemente, tampouco o seu valor e importância... Não tenho a pretensão de entender mais de liturgia que os sacerdotes e minha visão e formação pessoais em torno do Cristianismo não correspondem à amplitude que os estudos cristãos necessitam - não sei grego nem hebraico e preferi especificar/delimitar meus estudos cristãos, no intuito de que as escolhas alocadas em meu "perímetro" resultassem em uma espiritualidade viva e não simplesmente em um erudito (e, por sinal, para se chegar ao nível próprio de um erudito/scholar saber grego, hebraico e aramaico seriam de grande valia) - porém o fato é que eu fui  testemunha pessoal de uma transição da Liturgia Tradicional para a Nova Liturgia/Nova Missa: o padre da igreja que eu frequentava já era idoso, e estando eu já há um ano por ali, o mesmo veio a falecer; aqueles que o sucederam entenderam por bem cumprir a diretriz  ordenada pelo Concílio Vaticano II (efetuar a transição com a saída dos padres mais velhos) e deste modo, naquela paróquia foi cumprida esta medida. E qual a diferença (se há realmente alguma de fato)? Significativa. Este post é sobre o Sufismo... imagine-se o Sufismo sem Baraka/Benção, as tariqas nessa situação cairíam imediatamente na Via Mística (embora o padrão do Sufismo prime pela busca de elevações, eles também ficariam sujeitos não apenas à redução em algumas consecuções e habilidades mas também a desvios e erros). Diria que a Liturgia Tradicional  foi substituída por uma construção intelectual (embora oriunda da mente sacerdotal) e a contrapartida relativa à Liturgia Tradicional ficou sem "instrumentação" (sem aparato ritual) para interargir, para afluir com a Missa (do ponto de vista do SufIsmo, ficamos "sem vinho" -  e deslocado o rito (a missa) do depósito espiritual da Igreja para a Via Mística, também a Eucarisitia é envolvida neste processo). Pessoalmente, com a transição,  acabei ficando, na época dos fatos, sem "residência" na Igreja, daí o meu deslocamento (uma amiga minha explica que a posição espiritual que a minha estrutura reconhece e procura está vinculada à Liturgia tradicional; segundo ela, eu "não encontro a minha família espiritual na Igreja fora da liturgia e práticas tradicionais"). Diante disto, insisto em afirmar que uma preservação, uma continuidade legítima, autêntica da Igreja Primitiva foi "desligada" e a Igreja alinhada com a  Via Mística. 

Continuando, na relação Exoterismo/Esoterismo, fica, entretanto, a questão da vocação. Se eu estou em paz no domínio do exoterismo não tenho porque me envolver com metafísica tradicional sem ter vocação para a mesma.


No domínio religioso, se alguém está fora dele, normalmente esse alguém é uma pessoa mundana – não necessariamenrte uma pessoa com conduta questionável ou execrável (embora existam os “perdidos” e “desandados”), em muitos casos, o que temos é o que se vê no Brasil: ausência ou insuficiência de relatórios fidedignos e, no caso do Catolicismo, redução da transmissão.


No domínio metafísico, se alguém não se envolve com forças obscuras, movediças, normalmente é possível ter um vida tranquila. A certeza interior é baseada em Jnana (conhecimento) e Prajna (Sabedoria).

 

Em ambos os casos Shradda (Fé) está presente – a diferença são os relatórios.


O risco para alguns interessados em metafísica no Ocidente é cair numa falsa compreensão do que seja “transcendência dos opostos” – traduzindo-a como alguém se envolver tanto com o bem quanto com o mal e, se esta posição é ainda acompanhada com a adesão a certos andamentos que lidam com forças obscuras, chegar a enxergar isto (ou a avaliar-se) como “estar acima do bem e do mal”, e incorrer, inclusive, em tornar-se maligno, sendo que não há transcendência verdadeira nesta posição -. Os tradicionalistas explicariam que isto não se trata de metafísica tradicional verdadeira, mas, antes, de desenvolvimentos do “psiquismo sutil” (por exemplo: Seyyed  Hossein Nasr - "Homem e a natureza", Zahar Editores, 1977), no que eu concordo.


Tudo o que eu particularmente prezo, que eu tenho em apreço em relação ao Sufismo está conectado ao Islam. Para mim não existe Sufismo sem Islam, ainda que, lamentavelmente, as coisas não estejam transcorrendo bem fora  da Paciência, da Dignidade e da Tolerância do Sufismo.

 

Não há Budismo Vajrayana sem formação doutrinal consistente – e aplicada – e sem transmissão vinda de professores/mestres budistas vinculados às linhagens regulares de transmissão. Em continuação, os ritos/transmissões - e estou me referindo a ritos/transmissões objetivando elevações/iluminações - não podem fazer o seu máximo se nós não fizermos o nosso minímo (posição ética, esforços nas práticas e na compreensão e vivência dos ensinamentos na medida que for necessária – nem mais nem menos) .

 

Não há Sufismo sem Baraka (Benção). Nem tariqas (confrarias sufis) sem participação na Silsilat (transmissão regular remontando ao Profeta Mohammed - a paz seja sobre ele – bem como aos seus primeiros discípulos/”filhos”). Cada tariqa tem a sua genealogia informando a sua linhagem e conexão com o Profeta - o mesmo se constata em relação ao Budismo Vajrayana bem como às escolas hindús com os respectivos gurus).


Pessoalmente, vejo o Sufismo como um tesouro do Islam..  

No mais, dizem as más línguas - só as más (não recebem o Islam) - que eu já sou candidato a louco divino... quem sabe? ]

Kabir. (Santo Kabir)

12/02/2015 06:49

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Kabir e Angulimala são bastante conhecidos por quem, nos meios ocidentais, tem interesse  pelo Sufismo, pelo Buddhadharma e pelo Vaishnavismo.
 
 
 
A informação sobre a Bhakti Marga (Via do Amor), sobre sua validade, relevância e consistência é necessária – mesmo se a veia da Jnana Marga (Via do Conhecimento) é mais forte ou preponderante em nós. A meu ver a Bhakti Marga tem uma qualidade curativa. Porém, mesmo a Bhakti Marga tem transmissão e sua Bhakti Vidya (Vidya = Ciência Espiritual). Embora eu não descarte a possibilidade da Via Mística - ou seja, sem transmissão - entretanto, o fato da Prática Espiritual é que sem a Benção/Baraka, vai ser mais difícil avançar até onde os iluminados bhaktas chegaram. A Bhakti Marga, suportada pela Bhakti Vidya, é para ser desenvolvida na prática –  se não o que temos consiste dos níveis exclusivamente relativos à religiosidade e/ou ao nível literário. 
 
A Bhakti Marga e a Jnana Marga se complementam e em determinados indivíduos a Jnana é mais forte, em outros a Bhakti... [*]
 
[nota: e como fica a Bhakti Marga no âmbito do Budismo? No caso do Buddhadharma, por exemplo, é explanada a necessidade do cultivo da Bodhichitta - qualidade necessária aos desenvolvimentos da Grande Compaixão/Maha Karuna e, em continuação, da Vacuidade/Shunyata - como requisito para o Buddhato/Estado de Buddha.
 
             MAHA KARUNA/Grande Compaixão              SHUNYATA/Vacuidade
 
                                                          \                                              /
                                                                            __________________________
                                               BODHICHITTA
 
 
Para tal desenvolvimento é necessário cultivar a qualidade Amor-Bondade, a qual não se trata de mero sentimentalismo ou emocionalismo; tampouco de algo que possa ser sabotado ou curvado pela armadilha das exigências antiespirituais e antimetafísicas da nossa cultura hodierna.
 
O ensinamento budista aqui é relevante: ele demonstra que a energia da santidade é permeada pela qualidade Amor-Bondade aberta a todos os seres - desenvolvimento necessário à elevação/iluminação - , nos arhants, bodhisatvas e buddhas; todavia, se a causa da bodhichitta é a qualidade Amor-Bondade aberto a todos os seres, tal qualidade não é exclusividade do Buddhadharma e também está presente nos santos e iluminados das demais tradições espirituais. Nesse caso, os santos têm bodhichitta, mesmo não sendo budistas nem tendo a informação budista sobre a relação bodhichitta/amor-bondade... senão não seriam santos...]
 
 
 
Entretanto, também a armadilha feita de palavras é perigosa – mesmo as palavras de expressão mística, metafísica e/ou religiosa. Se não há uma contrapartida - a qual é luminosa e sadia - é necessário desconfiar (na melhor das hipóteses, talvez alguém não está no lugar/perspectiva espiritual ou ajuntamento que é o mais adequado para si; na pior delas, já se trata de situações movediças ou mesmo falidas ou, ainda, traumáticas)...
 
Onde não há Amor/Bondade nem observação real de valores éticos – pois em alguns casos os valores éticos existem, porém são relativizados - a situação está aflitiva e significativamente comprometida e, nos casos graves, "a vaca já foi para o brejo", "o barco já afundou", "a cidade já caiu"... [*]
 
[nota: o que acontece em toda agremiação, ajuntamento, partido político, grupo ideológico, tradição filosófica, espiritual, religiosa ou esotérica é que há o conhecido discernimento entre os “de dentro” e os “de fora”, os “irmãos” e os “não-irmãos”, os “da família” e os que “não são da família”, os "militantes" e os "não-militantes", os ”iniciados” e os “não-iniciados”.
 
Esse discernimento não é, em si mesmo, maligno nem doentio: um pai e uma mãe hão de se preocupar com suas crianças; as crianças com seus pais, avós, tios, irmãos e primos; um professor há de se preocupar com seus alunos e talvez merecer a preocupação destes; um mestre espiritual há de se preocupar com seus discípulos e esses com o mestre; se eu vou para a prática da sadhana em grupo, devo me preocupar com os outros praticantes e com o bom andamento da sadhana (e a sadhana é para os engajados, para aqueles que têm a instrução e a transmissão; não para quem não os têm)...
 
Todavia, tal discernimento pode tomar rumos malignos quando são perdoados crimes e acobertadas doenças (sem nenhuma reparação justa para as vítimas, - quando o “outro”, o “de fora”, o “não-irmão” é prejudicado no seu direito legítimo de maneira injusta ou maligna - e tudo se decide, simplesmente, por “provimento interno”, como se "o de fora" tivesse alguma relação, compromisso ou obrigatoriedade com o "meu provimento interno" ). Nesse caso, os “de dentro” têm um status especial, uma valoração "superior"; enquanto que os “de fora” não contam para nada que seja benigno e, nos casos graves, são apenas “algo irrelevante”, “sem importância” ou ainda “algo descartável e desprezível” (sem comprovação real destas condições) não prevalecendo a balança imparcial da justiça nos azares, desencontros e conflitos de interesses, mas sim a esperteza, a astúcia, a malícia e a força.
 
Isto se reflete, inclusive, numa certa porção das famílias: “esse é da minha família...” ou “é conhecido da minha família...” ou “é agregado/associado da minha família”... enquanto que aquele outro eu “nunca o vi”, “não sei – e não quer saber - quem é”, “não é da nossa circulação”, ... e isto não daquela maneira necessária à preservação da própria integridade e à cautela no envolvimento com recém-chegados e estranhos (afinal, tudo é uma faca de dois gumes e a posição da prudência e da cautela é sadia; as coisas não estão fáceis) mas de uma maneira que corresponde a uma estreiteza mental/interior, desconsiderando/descartando a possibilidade de acolhimento justo, bem como de alguma hospitalidade (benigna, obviamente). Ao invés, temos uma reação padrão estúpida, implacável, que obsta a possibilidade de uma melhor convivência ("Eu", "meus sonhos, metas e ambições", "minha família", "os amigos que escolho" ... o resto não é da minha conta nem me preocupa outros universos ou planetas que não esses).
 
 
Em nós tudo começa; em nós tudo pode terminar...
 
 
 
O que, por exemplo, a veracidade do Cristianismo sempre ensinou, bem como o Budismo, é que há um limite para o exercício deste tipo de distinção entre os “de dentro” e “os de fora”– a qual muitos colocam em prática inexoravelmente, implacavelmente (e ainda de maneira automática, porque foram criados e educados desta forma) - há um limite ético que não pode ser rompido, não pode ser violado por causa deste valor associativo-comunal, caso contrário, dependendo da situação envolvida, o que temos são condutas iníquas, criminosas, desleais, miseráveis e/ou doentias sendo acobertadas (e haja sujeira/imundície debaixo do tapete da rotação dos crimes sem punição/castigo nem reparação justa para os vitimizados porque perpetrados “por membros da família”...)
 
Não sendo a distinção entre os “de dentro” e os “de fora” irrelevante, mas tendo a sua importância em diversos andamentos para comunidades e famílias – inviável, por exemplo, passar as sadhanas (não me refiro às práticas abertas a qualquer visitante) do Vajrayana para quem não tem instrução nem transmissão - até porque elas simplesmente não funcionam -, entretanto, o uso desta distinção precisa estar, necessariamente, amarrado a uma valoração ética inequívoca, não violadora e não molestadora de limites e observâncias fundamentais, dos direitos legítimos “dos outros” (e que, na verdade, são os direitos de todos nós, engajados nalguma perspectiva ou não). A distinção entre “os dentro” e “os de fora” pode e deve ser utilizada no seu vetor sadio, mas não no vetor que toma um rumo doentio/miserável.
 
O Judaísmo, por exemplo, que por ser uma tradição espiritual vinculada à nação de Israel – e que, portanto, poderia ser considerada autoprotetora e entrópica - tem, na verdade, como ensinamento prescrito justamente o receber os estrangeiros, não fraudá-los nem hostilizá-los, mas acolhê-los, como consta no capítulo 10 de Deuteronômio e relembrado no salmo 81:
 
 
18 Ele [o Senhor] defende a causa do órfão e da viúva e ama o estrangeiro, provendo-lhe alimento e vestimenta.
 
19 Portanto, amareis o estrangeiro, porque fostes igualmente peregrinos na terra do Egito. (Deuteronômio)
 
 
4 Tocai a trombeta na Lua Nova, no dia assinalado para a vossa solenidade
 
5 Porque está ordenado a Israel: um estatuto em honra do Deus de Jacob 
 
6 Ordenou-o por testemunho a José  quando saíra da terra do Egito, 
 
   onde ouvi uma língua que não entendia... (salmo 81)
 
 
 
No que concerne àqueles nas fileiras das tradições espirituais não há elevação nem iluminação sem observação digna, idônea de valores éticos, entre outras observações... E os ritos? (entenda-se: os ritos objetivando elevações). Em geral, não decolam ou decolam muitíssimo menos do que poderiam, ou seja: quando voam, voam baixo... Como me observou um amigo meu, a diferença entre você adentrar um caminho espiritual pela via mistica (identificação + estudos + práticas que não necessitam de iniciação nem de guru ) e ter participação em uma transmissão regular (com iniciações + guru + o suporte da família espiritual correspondente) é que na transmissão regular, em alguém recebendo as iniciações por um guru autêntico, existem certas portas ou corredores que são secretos ou especiais, acessíveis somente para aqueles que tem a regularidade efetiva na linhagem de uma família espiritual e estão, na sua regularidade, aprovados pela mesma – nesse caso, uma pessoa, dependendo da sua construção interior-espiritual, pode ter acesso integral ao resultado de uma transmissão.  Isto já não ocorre na via mística, onde, por não ser possível resgatar uma iniciação ou contactar uma família espiritual com a qual nos identificamos, as portas ou corredores especiais/secretos não são alcançados por falta de rito regular válido que faculte o acesso, mesmo se somos estudiosos e zelosos. O alcance da via mística existe; mas é parcial e restrito, na verdade, limitado... Seja como for, o fato é que, mesmo numa transmissão regular válida, os ritos não decolam ou seu alcance se torna limitado quando há falhas éticas comprometedoras...
 
 
Nós estamos no ano de 2015 EC e o homem está na terra há bem mais tempo. Os ritos das diversas tradições espirituais que correspondem a procedimentos objetivando elevações continuam não afiançando, não avalizando, até o momento presente, condutas miseráveis ou vis, independentemente de opinião humana (e é preciso entender que quando  os ritos "voam baixo" esse resultado já é diferenciado do resultado mundano comum e pode gerar a ilusão de que "tudo vai bem", que "não é nada" ou ainda que "é só um pequeno desvio", "uma besteirinha", e que os ritos estão resolvendo, equacionando tudo sem reduções; sem falar que há, também, quem minta que "tudo está ok"... Uma autocorreção seria o mais adequado...)...
 
Nem o Cristianismo no qual nasci nem o Buddhadharma ao qual, posteriormente (e em decorrência de algumas dificuldades na Igreja), aderi estão me autorizando a cometer crimes, ações mesquinhas, trapaças cruéis, autuações gratuitas ou por motivos ínfimos ou ainda por motivos injustos ou vis - tampouco me acobertando ou protegendo em eu adotando tais condutas ... O dia em que a Tradição estiver acobertando e “perdoando” crimes e misérias (sem compensar justamente o vitimizado) pelo simples e exclusivo fato do criminoso/miserável “ser membro da família” eu estou tirando o meu time de campo  (ou do setor dela que estiver procedendo desta forma).
 
Sem a observação efetiva de valores éticos a novela continua; – entretanto, numa sequência infeliz ou sinistra/miserável…]
 
 
 
Em relação a Angulimala, o fato é que eu, pessoalmente, vejo algo no sofrimento que o atingiu que permanece, infelizmente (e letalmente), atual - ainda que com outras vestes, outras nuances/variantes e outras circunstâncias. Quem viu pessoalmente as pessoas perdidas, desorientadas, fraudadas, com a mente e a alma danificadas e reduzidas - e ainda sem saber o “como” nem o “porquê” de sua situação aflitiva - sabe do que estou falando. Foi o que tentei demonstrar - ou ao menos aventar - nas observações que anotei no post sobre Angulimala.
 
 
Em relação a Kabir, eu tenho algumas poucas observações a fazer, acerca de sua iconoclastia e de sua posição na Tradição.
 
 
Canções de Amor Místico - muitas delas lembrando São João da Cruz e o Cântico dos Cânticos de Salomão bem como a princesa Mira Bai) e Sufismo, Vedanta dual e Vaishnavismo... Procedente a posição que entende Kabir como uma fusão, um sincretismo entre Islam e Hinduísmo.
 
 
A introdução de Evelyn Underhill nos “Cem Poemas de Kabir” por Rabindranath Tagore (Attar Editorial, 1988), procurou ser enxuta, sóbria. Eu preferi verificar também o material do “Bijak”, dos vaishnavas vinculados a Kabir bem como do movimento Kabir Panth (Via de Kabir) e colher mais um pouco de informação sobre sua vida [*].
 
 
[nota pessoal: Esta vez vou ficar devendo o Guru Nanak - cairia bem neste post - e o Sikhismo, porque em decorrência de compromissos materiais e espirituais (visitas/sadhanas no Buddhadharma) - e depois a enfermidade (fortíssima gripe) - não pude efetuar melhor a necessária pesquisa, a qual ficou a meio caminho... Num ulterior post repassarei alguma coisa...]
 
 
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Nascido no norte da Índia, na cidade sagrada de Benares (Kashi, atualmente Varanasi) atribui-se seu nascimento ao ano de 1398 – outra fonte o posiciona em 1440 - , enquanto que há concordância sobre o ano de 1518 como sendo o de seu falecimento, no distrito de Maghar, em Gorakhpur. Não se sabe da circunstância exata de seu nascimento - uma fonte afirma que a mãe indiana de Kabir concebeu virgem e morreu devido a complicações pós parto; na obra “Bijak of Kabir” - tradução para o inglês de Ahmad Shah da principal obra de Kabir – dá-se a entender que Kabir, como o buddha Padma Sambhava, simplesmente apareceu numa lagoa em meio aos lótus da mesma. Em continuação, ele foi encontrado e adotado por um casal muçulmano e criado conforme o Islam, sendo seu pai adotivo um julaha/tecelão.
 
 
Embora - e com ajuda determinante do Sufismo - o Islam lograsse conversões autênticas em seu avanço pelo região Norte da Índia - os persas Attar, Hafiz, Saadi e Jami já eram muito estudados e difundidos na Índia islamizada -, costumes e tradições sociais/exteriores permaneciam sendo estritamente observados em ambas as tradições; toda a família de Kabir era da casta dos julahas (tecelões), sendo a referida considerada uma casta simples, de estrato social inferior entre as trinta e seis castas sociais existentes em Benares.
 
 
O ensino tradicional estava em mãos dos pandits hindús e malavis muçulmanos mas o menino de origem simples, Kabir, foi afastado dos centros hindús (pathashalas) e muçulmanos (maktabs) de ensino. A educação de Kabir é atribuída a pessoas piedosas.
 
 
 
Ele foi um músico e pinturas do santo o retratam com seu instrumento musical.
 
 
 
Kabir - o filho de Rama e de Allah - desde menino demonstrou interesse em questões espirituais e procurava frequentar os encontros religiosos e satsangas que ocorriam em Benares. Incomodados com os questionamentos de Kabir, pandits e malavis expeliam-no dos mesmos, alegando a falta de formação doutrinal de adolescente bem como, no caso dos hindús, que ele era apenas um Nigura (sem guru, sem professor formal, portanto, sem transmissão nem conexão com alguma linhagem).
 
 
Foi assim que Kabir decidiu procurar um guru autêntico (o que demonstra seu apreço e admiração pelo cerne das doutrinas hindús, mesmo sendo repelido pelos pandits nas reuniões). Sendo Swami Ramananda - da linha espiritual vaishnava do grande reformador indiano Ramanujacharya (séc. XI)- então, um dos espirituais mais respeitados em Benares, Kabir, um muçulmano, decidiu que Ramananda seria seu guru.
 
 
Informando-se sobre o ashram de Ramananda, todavia, ali chegando, Kabir foi estorvado de encontrá-lo pessoalmente pelos discípulos hindús, alegando que o jovem tratava-se de um simples julaha (tecelão) muçulmano.
 
 
Inconformado, Kabir procurou inteirar-se das rotinas de Ramananda e soube que o mesmo ia às margens do rio Ganges, para banhar-se, sempre pela parte da manhã. Kabir se escondeu numa passagem de acesso e quando Ramananda chegou, passando pelo mesma, eis que tropeçou em algo - Kabir - e, ao ver um jovenzinho chorando diante de si, disse: 
“-Não chores filho. Diga: Rama! Rama!”.  
 
Kabir recebeu isto como a transmissão do mantra e, voltando para a casa de sua mãe, contente com o mantra “transmitido” por Ramananda, ele declarou, por si próprio, já ser seu discípulo.
 
 
Inteirando-se do assunto e intrigada, Neema, sua mãe adotiva, dirigiu-se até Ramananda para confirmar a informação de Kabir, tendo em vista ser o mesmo muçulmano. Ouvindo a explicação de Neema, Ramananda requisitou o comparecimento do jovem Kabir e, ao chegar o mesmo, disse-lhe:
 
“Ó filho, por que mentes? Diga-me quando te fiz meu discípulo? Por que me difamas?”.
 
 
Com as mãos em reverência, Kabir respondeu a Ramananda que teve uma visão com ele transmitindo-lhe o mantra. Daí sua insistência, ainda que repelido pelos discípulos quando de seu deslocamento ao ashram. 
 
Em continuação, reverenciou e honrou o nome de Shri Rama, o que não apenas foi aceito, mas comoveu Ramananda, o qual admitiu e ainda abençoou Kabir.
 
 
Entretanto, espalhou-se o rumor que Ramananda estava recebendo, iniciando e abençoando pessoas de baixa casta e de outra tradição espiritual, o que lhe angariou transtornos com os hinduístas.
 
 
Kabir, também, teve sua santidade testada em diversas ocasiões pelo ciúmes de muçulmanos e hinduístas.
 
 
Em uma delas os brahmanes enviaram uma cortesã para caluniá-lo e assim reduzir sua reputação como espiritual iluminado, a qual crescia em Benares; encontrando-se a mesma com Kabir no local onde o mesmo vendia as peças de tecido, começou a dizer em voz alta que Kabir era um enganador de mulheres e que ela mesma era uma das mulheres enganadas por ele, sendo falsa a reputação de sadhu atribuída àquele homem mau. Kabir teve paciência e convidou a cortesã a acompanhá-lo ao seu retiro. Lá chegando, tratando-a cordialmente e conversando benignamente com a cortesã, eis que a mesma compreendeu que estava realmente diante de um santo e tornou-se sua discípula.
 

 

 

Gorakhnath pergunta a Kabir: 

 

-Diz-me, Kabir, quando começou tua vocação? 

Onde nasceu teu amor?”

 

Kabir responde:

-Quando Aquele cujas formas são múltiplas 

ainda não havia começado seu jogo;

quando não havia nem mestre nem discípulo;

quando todavia não existia o próprio mundo;

quando o Supremo Um estava sozinho,

então foi quando me fiz asceta;

então,oh, Gorakh! Brahman atraiu meu coração a Ele.

 

Quando me instruí na doutrina dos ascetas,

Brahma não estaba coroado,

nem Vishnú ungido rei,

nem havia nascido ainda a potência de Shiva.

 

Foi em Benares onde tive uma revelação repentina...

Ramananda me iluminou...

 

Trazia comigo a sede pelo infinito;

e vim a este mundo para reunir-me com Ele.

 

Em simplicidade me unirei com o Ser simples

e meu amor transbordará.

 

Ó Gorakh, marcha ao ritmo desta música!”

 

 

Os deslocamentos de Kabir foram estorvados, em oportunidades diversas, pela observação de aspectos exteriores e sociais por parte de hindús e muçulmanos. Alcançando sua iluminação com Ramananda, Kabir não poupou diversos andamentos de ordem exterior em suas críticas – não poupou também os pandits e malavis (eruditos hindús e muçulmanos) nem algumas autoridades religiosas que tinham os conhecimentos e as práticas porém sem a Realização dos Frutos; aparentemente herético [*], Kabir, em verdade, acabou por se tornar um espelho e um contra-peso da tradição, nas localidades em que viveu.

 

[nota: pessoalmente, vejo Kabir mais como um provocador - ou melhor dito, um desafiador - com seu desdém metafísico, do meu ponto de vista, benigno (afinal é só as pessoas se esforçarem um pouco mais - cada qual na sua possibilidade - não estancarem e os resultados efetivos aparecem)  - das posições constituídas do que como um herético. Mas ele tinha realização interior/espiritual para proceder desta forma...Quem dera eu me encontrar com um Kabir... sentar-me-ia com ele e o teria na conta de um amigo...] 

 

 

Iluminado, pessoas das populações locais acorriam a Kabir para receber sua benção e ensinamentos. Foi crítico do exclusivismo religioso e da rigidez formalista dos doutores da lei, e, vale salientar, tal posição é também a mesma dos sufis (alguns sufis se revoltaram contra os ullemahs, acusando-os de matar a propagação do Amor Divino e ensinar um credo meramente exterior - ou pautado rigidamente nos parâmetros iniciais do Islam, nos primeiros rudimentos -, sem muita interação com as essências divinas nem penetração/aprofundamento nas mesmas). 

 

Na verdade, tal posição deveria ser a de todos os muçulmanos, pois segundo o Corão e o Hadith, todas as religiões verdadeiras até a Hégira (início do Islam)– verificada a veracidade de seus ensinamentos e de seus fundadores, bem como a existência de homens e mulheres sagrados em suas fileiras – são reconhecidas pelo Islam [*]. O Islam, ao menos em relação às tradições espirituais ortodoxas, deveria ser a mais tolerante e universalista das religiões sobre a terra. 

 

[nota: o fundamentalista islâmico Haroon Yahia escreveu o livro “Islam and Buddhism” comparando uma forma de teísmo dualista extraído de passagens do Corão, - parecido com o fundamentalismo protestante - com o Buddhadharma e, obviamente, impugnando o Buddhadharma. Isto chega a ser estranho se se levar em conta que o Corão afirma a existência de “outros profetas” e fundadores de religião em outras nações, reconhecendo sua validade espiritual, ao menos até a Hégira.
 
“Cada comunidade terá o seu enviado” (Corão, X, 47)
“Nunca mandamos nenhum enviado que não falasse a língua do seu povo” (Corão XIV, 4)
 
Um detalhe fundamental, desligado e jogado fora por Yahia: o Buddhadharma é anterior à Hégira, não posterior à mesma... Pela orientação corânica, Allah não apenas é Sem-Forma, mas nos traz uma certa noção de Absoluto, em comparação com o Hinduísmo, mesmo de Brahman; todavia, no campo das energias divinas (lembrando São Gregório Palamas),  há os 99 Nomes Divinos, onde cada um dos nomes divinos traz um atributo ou característica dos caminhos da manifestação divina, abrindo vias para a uma Bhakti Vidya muçulmana (ser "devoto do Absoluto" é possível para quem tem estudos, Bhakti Vidya, mas, numa parte dos casos, as pessoas simples se contentam com noções básicas).  O Buddhadharma, entretanto, pelas Quatro Nobres verdades, nos remete diretamente, à pesquisa interior-espiritual; e das Quatro Nobres Verdades, um budista é remetido, imediatamente às Duas Verdades: Samvritti Satya (verdade condicionada ou relativa) e a Paramartha Satya (Verdade Transcendental, Absoluta ou Final). A pesquisa budista, iniciando com as Quatro Nobres Verdades, busca a Paramartha Satya ou, na terminologia hindú, a Realidade Última... Nesse caso, me pergunto, então, não se é possível, mas se é verdadeiro  idôneo, enquadrar e nivelar o Buddhadharma com um teísmo dualista surgido no Islam moderno (por exemplo: o que foi desenvolvido e divulgado por Sayyd Qutub) muito parecido com o teísmo simplista  protestante?
 
O segundo detalhe fundamental - também jogado fora por Yahia - é: alguém já viu o Buddhadharma estorvar o Islam - ou, ainda, o Protestantismo – em alguma coisa? Alguém pode informar onde o Budismo está fraudando o Islam? No sudeste asiático? Mas o Buddhadharma estava lá primeiro...
 
Embora a invasão muçulmana do Norte da Índia tenha sido cruel para o Buddhadharma, os registros muçulmanos anotaram a presença da religião de Kifl, o profeta da Kapilavasthu (o Buddha Shakyamuni). É preciso entender, salientar que, para o Islam, “profeta” = iluminado = homem sagrado. O livro de Yahia - que não percebe que o Buddhadharma é um formulação diferente da sua interpretação pessoal do Corão -  o Buddhadharma é uma forma de tasawuff (metafísica) e caberia a Yahia compará-lo com o Sufismo, uma vez que a pesquisa do Buddhadharma já se dá ao nível do fim das coisas, da Realidade Última. Não é por ser uma formulação diferente que o Buddhadharma tratar-se-ia de algo maligno ou vil - alguém acredita que há algo perverso ou maligno ou antiespiritual na doutrina do Caminho Óctuplo? ou na doutrina da Maha Karuna/Grande Compaixão?.  Yahia traz uma ponderação que poderia até servir de pretexto para as agressões covardes dos extremistas no sudeste asiático. Mas parece que ele não se preocupou nem um pouco com isto, que seu livro poderia subsidiar uma hostilidade que, à luz da investigação idônea e não-superficial, se mostra desnecessária, gratuita do Islam em relação ao Budismo, se houvesse um pouco mais de estudos e preocupação com as outras pessoas.]

 

.

 

“O fato é que Ishwara e Allah

estão presentes no coração de todos os seres vivos.

Keshava (Krishna) e Karim (o Generoso)

estão também presentes no coração.

 

Pecorra as páginas dos Vedas e do Corão,

essas escrituras também dizem que Rama e Rahim (o Clemente/Misericordioso)

estão presentes em cada ser vivo."

 

Kabir diz: "Eu sou a criança de Allah e Rama;

Ele é meu Guru… Ele é meu Pyr (Mestre).

Eu não tenho fé em nenhuma uma outra coisa que não Ele...

 

 

 

Os poemas de Kabir são conhecidos por muitos no Ocidente – seus poemas foram traduzidos ao inglês por Rabindranth Tagore com introdução por Evellyn Underhill, obra essa disponível também em português (pela brasileira Attar Editorial). A obra principal de Kabir é chamada "Bijak" (localizável em hindi e em inglês no site www.archive.org em Pdf e Epub – o Epub da tradução inglesa, porém, está repleto de erros de grafia, sendo recomendável o Pdf). O belo trabalho de R. Tagore pode ser localizado em sebos, podendo ser consultada na EstanteVirtual a obra “Cem Poemas de Kabir” de 1988 (www.estantevirtual.com.br).

 

 

(...)

 

Conta-me, ó Cisne, tua antiga história...

 

De que terras vens

e a que margens vais?

 

Onde descansarás

e o que é que buscas?

 

Cisne, desperta já,

nesta mesma manhã

levanta-te e segue-me...

 

Há um lugar onde não existe

sofrimento nem dúvida...

 

Onde não se conhece o terror da morte...

 

Ali os bosques em flor

estão sempre em uma eterna primavera

 

E o vento leva a fragrância de seu aroma:

“eu sou Ele”

 

A abelha do coração

está profundamente submersa

e não deseja outra alegria...

 

 

(…)

 

 

Para Ti atraíste meu amor, oh Fakir!

 

Me encontrava, em mim, adormecido

no obscuro aposento de minha alma,

mas Tu me despertaste

sacudindo-me com Tua voz, ó Fakir!

 

Estava me afogando

nas profundezas do oceano deste mundo

e Tu me salvaste,

agarrando-me com Teu braço, ó Fakir!

 

Uma palavra tão somente

e Tu rasgaste as minhas ataduras, ó Fakir!

 

Kabir diz:

“Ligaste meu coração com o Teu, oh Fakir!”

 

(…)

 

Ouço a melodia de sua flauta

e não posso conter-me.

 

A flor se abre

ainda que não seja primavera

 

A abelha já recebeu seu convite...

 

Trovejam os céus

e relâmpagos faíscam

encapelam-se as ondas em meu coração

 

A chuva cai

e meu coração desfalece

anelando meu Senhor

 

Onde o ritmo do mundo nasce

e então declina e morre

até ali meu coração chegou

 

Ali flutuam ao vento

os pendões ocultos...

 

Kabir diz:

“Meu coração morre, embora ainda viva”

 

(...)

 

Amigo

busca-O enquanto vives

conhece enquanto vives...

 

Compreende enquanto está em ti

o fôlego de vida

pois na vida reside a liberação.

 

Se os laços e grilhões

não são rompidos ainda em vida

que esperança de felicidade

se pode almejar da morte?

 

Não é mais que um sonho vazio

pensar que a alma se unirá a Ele

somente porque deixou o corpo...

 

Se O encontras agora

encontrá-lO-ás para sempre [*]

caso contrário, irás habitar a Cidade de Morte...

 

Se obténs a união agora

obtê-la-ás depois...

 

Banha-te na verdade, conhece o Guru Verdadeiro,

tem fé em seu Nome.

 

Kabir diz:

 

É o espírito de busca contínua que nos socorre;

eu não sou mais que um escravo desse espírito de busca...”

 

[nota: ver o santo/iluminado sufi Bayazid Al Bustami: “Os que vêem o Bem Amado hoje são os que O verão também amanhã... Com efeito, que saberá do Amado lá quem está cego aqui?”. Em continuação Kabir – e alinhado com Bayazid - expõe que quem não encontrá-lO aqui “habitará a Cidade da Morte”. O que Kabir chama de “Senhor”, “Verdadeiro Guru” ou “Fakir” refere-se não apenas a Shri Rama – personalidade suprema da divindade no teísmo hindú - mas também a Brahman, ao Último, ao Um sem um segundo, à Libertação; então, “habitar a Cidade da Morte” corresponderá a continuar preso ao samsara, ao ciclo de ignorância, nascimentos e mortes em diversos estados dos seis reinos da existência cíclica...]

 

 

(…)

 

Mais do que qualquer coisa guardo comigo o amor

que me permite viver neste mundo

uma vida sem limitações [*]

 

É como a flor de lótus que florece no pântano

sem que jamais a água toque em suas pétalas

as quais se abrem fora do seu alcance

 

É como esposa que se lança à fogueira

ao chamado do amor:

se incinera e deixa que outros a pranteiem

mas nunca desonra o amor... [**]

 

Kabir diz:

Escuta-me Sadhu: poucos chegam à outra margem...”

 

[nota:

I - quem tem acompanhado este blog e leu o post “Bhakti Marga – Via do Amor”, talvez recorde do amálgama que fiz - e ali apresentei - utilizando versos de cânticos de Kabir:

 

Delicado é o caminho do amor

nele não há perguntas nem respostas

somente umas poucas almas puras

sabem de seu verdadeiro deleite...

 

Onde avareza pode haver sabedoria?

Onde há sabedoria a avareza não pode perdurar...

 

Onde há luxúria pode haver amor?

Onde há amor a luxúria não tem lugar...

 

Em minha vida cativa encontrei a liberdade...

rompi os grilhões de toda a mesquinhez...

 

E mais do que qualquer coisa

guardo comigo o amor

que permite viver neste mundo

uma vida sem limitações...

 

II – A questão da prática de Sati por uma parte dos hindús é observada neste cântico de Kabir. Coloquei as minhas observações sobre a prática de Sati – alinhada com a observação de Kabir - no post anterior a este, sobre a Princesa Mira Bai...]

 

(…)

 

Faz-me rir quando me dizem

que o peixe na água tem sede

 

Não vês que a Realidade mora em ti?

E que tu vagas sem rumo pelas selvas?

 

Eis aqui a verdade:

não importa para onde vás

- a Madrás ou a Madura -

 

Se não O encontras dentro de ti mesmo

é ilusório o mundo para ti...

 

 

(…)

 

 

Oh Sadhu, purifica teu corpo com sahaja.

 

Como a semente descansa no balneário,

e em seu seio moram a flor, o fruto e a sombra;

Assim palpita o gérmen no corpo,

e nesse gérmen se encontra novamente o corpo.

 

Fogo, ar, água, terra e éter;

inexistentes são fora dEle [*].

 

Oh kazi, oh pandit, escutai atentamente:

que coisa existe que não possua a alma?

 

Um cântaro cheio de água

e também submerso nela [em um tanque],

está rodeado de líquido por dentro e por fora [*].

 

Não deve se lhe dar nome,

pois suscitaria o erro da dualidade.

 

Kabir diz:

 

Escuta a palabra, a Verdade, que é tua essência;

Ele pronuncia a Palavra a Si mesmo,

e é Ele mesmo o Criador.”

 

[nota: Comparar também com Kaivalya Upanishad, verso 22: “Para Mim não existem virtude nem vício; Eu não posso ser destruído... Eu não tenho nascimento nem corpo... nem sentidos nem intelecto... Para Mim não existem nem água, nem fogo, nem terra... para Mim não existem nem vento nem céu (éter/akasha)...”.    O “cântaro” é a vida individual. Mas, por dentro e por fora, o que há é “água”. ]

 

(...)

 

 Quando Brahman se revela,

se manifesta Aquele que jamais pode ser visto.

 

Assim como a semente palpita na planta;

a sombra acompanha a árvore,

o vazio está no céu,

e formas infinitas no vazío;

 

Assim do mais além de Infinito emana o Infinito,

e do Infinito se desdobra o finito.

 

A criatura mora em Brahman

e Brahman na criatura:

distintos, mas sempre unidos [*].

 

Ele é a árvore, a semente e o germén.

Ele é a flor, o fruto e a sombra.

Ele é o Sol, a luz e o que a luz alumia.

Ele é Brahman, criatura e maya.

Ele é a multiplicidade de formas e o espaço sem fim.

Ele é o alento, a palabra e seu significado.

 

Ele é o límite e o sem límite;

e Ele é, além do limitado e do ilimitado,

o Ser Puro.

 

Ele é a mente imanente em Brahman e a criatura.

O Ser Supremo é visto dentro do Ser Supremo,

e dentro do ponto é vista novamente Sua projeção.

 

Kabir é bendito porque tem esta visão suprema!

 

[nota: A doutrina nuclear das Upanishads. Ayam atma Brahma: Este Atman é Brahman; Tat tvam asi: Tu és isto...]

 

 

 (…)

 

Não sou devoto nem ateu

Não sou moralista nem libertino

 

Não sou um orador nem um ouvinte

Não sou um servo tampouco um senhor

 

Não estou acorrentado tampouco sou livre

Não tenho preferências nem aversões.

 

Estou longe de ninguém...

Estou perto de ninguém...

 

Não irei para o inferno nem para o céu...

 

Cumpro todos os deveres que me cabem

mas estou dissociado de todos os deveres

 

Poucos comprendem meu significado

que aquele que me entende encontre a paz.

 

Kabir não procura mais criar nem destruir...

 

[nota: Kabir tem alcançado a liberação. Neste versos descreve, mais que convicções pessoais ou filosóficas, a liberdade interior/espiritual de alguém que alcançou a Outra Margem...]

 

(...)

 

Ó servidor, onde me buscas

Se estou junto a Ti?


 

Não me encontrarás na mesquita nem no templo;
nem na Kaaba nem no monte Kailasa;
tampouco nos ritos e cerimônias;
nem no Yoga nem nas austeridades.


 

Se, verdadeiramente, me buscas,

me verás em seguida,
Sem que tempo algum transcorra

me encontrarás.

 

Kabir diz “Oh Sadhu. Deus é o alento de tudo quanto respira.”

 

[nota: A iconoclastia de Kabir lhe trouxe a acusação de herético e sectário pelas autoridades religiosas. Não obstante, Kabir sentou-se junto a ascetas, yogues, sufis e pessoas santas da Índia. A tradição informa que, além de Ramananda, esteve junto de três mestres sufis. Das pessoas com quem sentou-se, algumas se tornaram discípulos; outros já estavam bem encaminhados ou já tinham chegado. Em outro poema Kabir escreveu: “Nunca poderei expressar quão doce é meu Senhor. O Yoga e as pregações, a virtude e o vício, nada significam para Ele.”.

 

O “Senhor” de Kabir, na forma como ele O alcançou e O propôs, já é o Resultado Final e não é atingível intelectualmente. O desdém metafísico de Kabir não é só uma provocação (ou desafio): a ligação de Kabir é uma ligação (e transmissão) direta, a essa ligação direta remete à Benção de Kabir... Como no Sufismo - do qual Kabir também fez e faz parte –, é necessária a transmissão da Benção/Baraka. A provocação de Kabir é um convite para essa proposta pois, verdadeiramente, abriu-se um caminho com ele. A iconoclastia de Kabir não tratou-se de um ceticismo como o dos céticos da nossa época; pois era difícil para as autoridades religiosas de seu tempo tentar impor suas convicções a quem já tinha a Realização, o Fruto.

 

Os engajamentos objetivando a União Suprema ou a Libertação, como o Yoga ou o Tantra, têm sua finalidade - e o filho espiritual dileto de Kabir chamava-se Kamal e era um hatha yogin. Entretanto, alcançada a meta, é como a “Jangada” mencionada pelo Buddha Shakyamuni (Majjhima Nikaya 22): útil/benigna para ajudar alguém a alcançar a Outra Margem, todavia, uma vez alcançada, não é mais necessário carregá-la conosco... isto é, no caso budista, se alguém alcança a "outra margem", este se estabelece na linhagem/família espiritual porém já não são necessárias, para esse que alcançou, a utilização, por exemplo, das técnicas samatha/vipassana, uma vez que o objetivo foi atingido. Resta a quem alcançou ajudar quem não conseguiu chegar ainda...

 

No mais, Kabir se põe a si mesmo como um “servidor” de Deus. O tipo de servidor de Deus que Kabir é pode ser percebido no poema abaixo:

 

Entre os pólos do consciente e do inconsciente,

se mede a mente;

 

Daí pendem todos os seres e todos os mundos,

e jamais cessa seu vaivém.

 

Ali há milhões de seres:

o Sol e a Lua com suas órbitas;

 

Transcorrem milhões de kalpas,

e o vaivém continua.

 

Tudo se mede

O ceú e a terra; o ar e a água

e o Senhor mesmo tomando forma:

Esta visão converteu Kabir em um servidor... ]

 

 

(…)

 

Onde reina a primavera, senhora das estações

e uma música soa por si mesma.

 

Onde torrentes de luz fluem por todas as direções

 

Poucos são os homens capazes de chegar a esta margem

 

Ali, onde milhões de Krishnas permanecem de postas

Onde milhões de Vishnús, em reverência, inclinam a cabeça

Onde milhões de Brahmas lêem os Vedas

Onde milhões de Shivas estão absortos em meditação

 

Nos Céus, iluminados por milhões de Indra

onde são inumeráveis os semideuses e os munis

onde milhões de Saraswatis, deusas da música, tangem suas harpas

 

Ali está meu Senhor presente

e o perfume de sândalo e das flores

permeia aquelas profundidades...

 

1. Princesa Mira Bai. 2. Breve observação sobre a Bhagavad Gita e o Mahabharata.

07/01/2015 20:43
 
(..)
 
"Indestrutível, Ó Senhor,
é o amor
que me une a Ti.
 
Como um diamante,
que quebra o martelo que o atinge.
 
Meu coração vai para ti
Como o lustre vai para o ouro.
 
Como o lótus vive em suas águas,
Eu vivo em Ti.
 
Como o pássaro que olha a noite toda
para a lua passageira
 
Perdi a mim mesma 
habitando em Ti.
 
Ó meu amado...
Volte..."

(...)

 

 

A princesa Mira Bai (1498-1547) nasceu no Rajasthan, no povoado de Kurki (Mertha), província de Chaukari. Se conta que, aos 5 anos de idade, Mira Bai viu passar um procissão de casamento junto à residência de sua família e perguntou à sua mãe: “Mãe onde está meu noivo?”. Sua mãe respondeu apontando para uma imagem de Krishna que se encontrava próxima. Desde então Mira Bai afeiçoou-se profundamente a Krishna.
 
 
 
O mais antigo relato biográfico sobre a santa é um comentário vaishanava de Priya Das na obra Sri Bhaktammal de Nabha Das, datada de 1712; contudo, muitos relatos acerca de Mira são oriundos de tradição oral.
 
 
Aos 8 anos sua mãe faleceu. Aos 12 anos, conforme o costume local, sua família a casou com o príncipe Bhoj Raj do estado de Chittor, então um dos mais poderosos da Índia (outra tradição fala da idade de 16 anos, [*]). O coração de Mira Bai, porém, não desviava do amor a Krishna e ela não quis aceitar nenhum presente de casamento; durante as cerimônias carregou o tempo todo a imagem de seu Senhor.
 
 

[nota: Não consegui apurar a data efetiva do casamento de Mira Bai com Bhoj Raj. Ambas as informações podem ser encontradas nas biografias disponíveis sobre ela sem mais esclarecimentos; certo é que, como os casamentos na Índia eram arranjos familiares, - e, nalguns casos, com consultas a astrólogos bem como a algum rishi/sábio ou pessoa santa -, não é improvável que ambas as informações estejam corretas e Mira se deslocou para a côrte, a fim de cumprir  o papel efetivo de esposa, somente aos 16 anos...]

 

 

Aos olhos materiais, o amor de Mira Bai por Krishna poderia parecer exagero ou até mesmo demência (no caso, a loucura divina) bem como o tempo dispendido com sua devoção; Mira Bai compunha canções para Krishna e se ajuntava com os devotos para a adoração, sem preocupação com regras de casta tampouco de realeza. A dedicação a seu amor custou-lhe invejas, dissabores e difamações. Sua cunhada, por exemplo, acusou-a de, ao invés da prática devocional a Krishna, estar Mira Bai ocupada em entreter-se com os devotos masculinos, na ausência de seu marido.
 
 
A família de Bhoj Raj tinha Durga devi por deidade principal. E a de Mira Bai, Krishna. Os familiares de Bhoj Raj, no intuito de afligí-la, pressionaram Mira Bai para que ela adotasse a mesma posição, mas Mira manteve-se impassível no louvor/adoração a Krishna. Tal episódio denota algum rancor ou inveja dos familiares de Bhoj Raj, uma vez que tanto Krishna quanto Durga protegem os guerreiros e, com base no Mahabharata e nos Puranas, não há relação de oposição, incompatibilidade ou inimizade entre Krishna e Durga, pelo contrário. Perceba o leitor a anotação de Mira Bai no bhajan abaixo:

 

 

Amigo, não posso viver sem Harí.
Minha sogra me insulta
sua filha me humilha.
 
Quando o príncipe ferve de cólera
sou feita prisioneira
e mantida trancada num aposento
 
Como posso entregar nosso amor ancestral?
Amor que nasceu em tempos anteriores.
 
O Senhor de Mira é Girdhar Nagar [Krishna]
Ninguém mais pode alcançar
seu coração...
 

 

 

Um episódio significativo da carreira de Mira Bai consiste da visita que lhe fez o imperador mongol Akbar [*], o qual era muçulmano. Pois, em uma ocasião, o imperador Akbar e seu músico Tansen, ambos muçulmanos, se disfarçaram em andarilhos e deslocaram-se a Chittor, então estado inimigo, com o intuito de assistirem incógnitos os prodígios que Krishna operava através de Mira Bai [**]. Em decorrência de combates na região norte, correspondente ao Afeganistão, os mongóis haviam matado o pai de Mira Bai e mais tarde, também, seu sogro. Chegaram Akbar e Tansen, à noite, ao local onde Mira Bai costumava ter suas experiências espirituais diante da imagem de Krishna e se misturaram com os demais devotos que lá estavam reunidos.

 

 

[notas: 
*  se aventa que Akbar tratou-se de muçulmano vinculado ao Sufismo... 
** "Bhajans" referem-se aos versos que Mira compunha entoados como canções; os versos em si são chamadados "padavali"; com efeito Mira Bai realizou Seva/serviço espiritual voluntário para o louvor a Krishna no templo de Girdhar Nagar/"Aquele que remove as montanhas", sendo designada para os cânticos. Conforme Mira Bai entoava os bhajans, entrava em êxtase e dançava; e, então, segundo os relatos indianos, a imagem de Krishna costumava corporificar-se e acompanhá-la na dança. ]

 

 

O que viram lhes causou profunda impressão e quando já todos se retiravam, o imperador Akbar, ainda disfarçado, implorou a Mira Bai que aceitasse um presente seu que havia sido dedicado ante a imagem de Krishna, a saber: um colar de pedras preciosas. Mira Bai aceitou somente por amor a seu Senhor e, ao despedirem-se, o imperador Akbar inclinou a cabeça até o chão e beijou-lhe os pés.
 
 
Todavia, dias depois se soube a notícia de que Akbar, um muçulmano, esteve disfarçado em Chittor e havia tocado os pés de Mira, uma princesa hindú, notícia que teve um efeito negativo em sua família. Para seu esposo, príncipe Bhoj Raj, aquilo se tratava de uma ocorrência extremamente desagradável para ele e sua dinastia - em vista do andamento da guerra entre o estado hindú e o mongol. Tanto Mira Bai como Bhoj Raj eram de uma linhagem seleta de kshátriyas (casta real/guerreira) na Índia e a honra da dinastia se via como que manchada pela visita incógnita - e considerada insultuosa - de Akbar. Tomado de repulsa e escândalo, Bhoj Raj dirigiu-se taxativamente a Mira: “Encontra algum rio e afoga-te nele!”. Mira Bai obedeceu à petição de Bhoj Raj; dirigindo-se a um rio atirou-se no mesmo, entretanto uma mão impediu que ela se afogasse. Era seu Amado quem a havia protegido. Krishna, no coração de Mira Bai, lhe ordenou que abandonasse aos seus e se deslocasse a Brindaban, povoado no qual Ele havia nascido cinco mil anos atrás e lugar de peregrinação de muitos devotos vaishnavas. E assim Mira Bai o fez, sob os auspícios de Krishna, sendo bem acolhida por onde passava. Deteu-se algum tempo em Brindaban e, após, deslocou-se a Benares (Varanasi) onde permaneceu até o dia em que reencontrou-se com Bhoj Raj o qual, vestido de peregrino, veio implorar seu perdão e suplicar que retornasse com ele ao palácio. Mira acedeu e retornou com Bhoj Raj a Chittor.
 
 
Entretanto, decorrido pouco tempo do retorno, o príncipe Bhoj Raj veio a falecer em combates com os mongóis, e o trono a ser ocupado por seu irmão. Mira Bai contava, então, vinte e cinco anos de idade. Rana Sanga, pai de Bhoj Raj, viu na cremação de seu filho a ocasião para se ver livre de Mira Bai; ordenou-lhe que cumprisse “Sati” (quando a viúva adentra viva a pira crematória na qual jaz o corpo do marido, costume não prescrito no Hinduísmo mas que estava em voga na região do Rajasthan). Mira Bai recusou-se, explicando a Rana Sanga e aos presentes que seu marido verdadeiro era Krishna, o qual é eterno. Tal episódio foi registrado por Mira Bai num de seus bhajans:
 
 
“Não cometerei Sati
pois cantarei as canções de Girdhar [Krishna]
eu não me tornarei Sati
porque meu coração é enamorado de Harí.”
 

 

 

[nota: Mira Bai, nessa passagem, já de há muito era santa. Quando Bhoj Raj, enojado com o descobrimento da visita de Akbar, ordenou-lhe que se atirasse ao rio, ela assim o fez. A intenção de Rana Sanga, entretanto, não era verdadeira ao requisitar-lhe que cumprisse Sati, uma vez que o que desejava realmente era apenas livrar-se de Mira, sendo a requisição de cometer Sati apenas um pretexto/oportunidade. Daí a recusa de Mira Bai, baseada na eternidade de Krishna, seu verdadeiro amor, amigo e esposo, empurrando para longe/repelindo a exigência do cumprimento de uma tradição não apenas não constante das prescrições do Hinduísmo - tal prática porém existia, por exemplo, no Rajasthan de Mira Bai - mas ainda baseada em uma falsidade...
 
Episódios de Sati constam no Mahabharata e nos Puranas - a rainha Madri (Mahabharata livro 1, capítulo 125) e/ou a própria rainha Sati (Padma Purana capítulo 2, Skanda Purana capítulo 4, Shiva Purana/Rudra Samhita cap. 5). No Mahabharata, a decisão da rainha Madri em ser cremada viva com o rei Pandú foi baseada numa certeza interior inabalável; já a decisão da rainha Sati, nos Puranas, está ainda mais longe do plano humano comum e baseou-se num amor verdadeiro, numa certeza interior/espiritual e na decisão própria de uma deusa (e, todavia, Shiva vivia - não havia se retirado a nenhum lugar ignoto ou diferenciado - quando Sati se auto-imolou); eventualmente teríamos Satis em decorrência de amores/uniões conjugais consistentes em uma ligação profunda entre os cônjuges, acarretando a separação de corpos em perda pessoal inconsolável e incontornável - hodiernamente, mesmo numa sociedade secularizada como a nossa, casos há em que o cônjuge remanescente quereria ter ido embora também. O que ultrapassar isto não é nem pode ser Sati (indução familiar, pressão comunitária, alegação de costume infundido na tradição, etc.). Sati é voluntário e, também, espontâneo, como no caso da rainha Madri - ninguém solicitou ou pressionou a rainha Madri para que se imolasse na pira com o rei Pandú (e, afinal, por que a rainha Kunti, segunda esposa do rei Pandú, não cometeu Sati também? Tanto Madri como Kunti amavam os filhos - razão suficiente para prosseguir. A continuidade do Mahabharata ficaria comprometida, não seria a mesma  sem a rainha Kunti...). Não há no Hinduísmo prescrição para as mulheres cometerem suicídio - ou auto-imolarem-se - em decorrência do falecimento de seus maridos, mas sim que lhes sejam fiéis ainda em meio a circunstâncias adversas ou difíceis e ainda sob risco da própria vida (Manavadharmashastra, cap. 5). Muitas mulheres hindús - parte delas oriundas do Rajasthan - cometeram Sati; dentre essas, - e embora isto possa parecer inaceitável, repulsivo ou abominável do ponto de vista da nossa cultura - as que o fizeram livremente, espontaneamente e com alguma certeza interior em suas almas, tais são Sati, na linha das rainhas Madri e Sati. No Rajasthan e regiões onde o costume de Sati é observado, as viúvas que não o cumpriram foram vistas como mulheres fracas, de pouco caráter e honra, de limitada qualidade interior e tratadas com algum ou muito desdém - daí se afirmar que nalgumas comunidades da Índia as viúvas sejam vistas como um fardo. Mira Bai abriu um caminho de livramento ao menos para uma parte das viúvas do Rajasthan... 
 
Culturalmente a prática de Sati cutuca os nossos sentimentos ocidentais: eu, por exemplo, tento me por na pele de uma família hindú oriunda de uma comunidade onde o costume de Sati ainda é forte e observado e penso o que eu faria. Acho que eu conversaria com a minha esposa e pediria para ela fazer o que ela sentisse no seu interior, não aceitando nenhuma pressão externa; explicaria que o Manava Dharma Shastra não exige Sati, que não  consta no Mahabharata, por exemplo, que alguma das esposas de Krishna cometeu Sati quando  ele foi morto,  e que ela precisaria ter a mesma certeza interior/espiritual das rainhas Madri e Sati para também fazer o mesmo; diria para ela que eu não aceito uma Sati que "não venha para a minha fogueira sem ser por vontade própria e sem uma certeza interior do ato, acerca do qual, uma vez perpetrada a cremação,  a devolução nesta vida não é mais possível";  até porque, diria eu, não podemos nem devemos esquecer que, numa união onde existem crianças e/ou onde há engajamento aprofundado com o Sanatana Dharma, talvez fossem mais adequadas as posições da rainha Kunti e de Mira Bai: acompanhar o desenvolvimento dos filhos (rainha Kunti) e dedicar-se ao Sanatana Dharma (Kunti/Mira)...]
 

 

Estando na côrte, as invejas e os ressentimentos voltaram a ganhar corpo contra ela, a qual, a seu turno, buscava proteção em Krishna. Foi oferecida a Mira Bai uma taça contendo veneno informando tratar-se de néctar; confiada em Krishna, Mira Bai bebeu o líquido o qual não lhe fez mal algum e possuía sabor de um néctar. Em outra ocasião lhe foi preparada, secretamente, uma nova cama para dormir todavia com cravos no estrado. Mira Bai dormiu sem sentir dor alguma nem apresentar qualquer ferimento.

 

 

Mira Bai foi tomar conselho com Tulsidas - autor da versão moderna do Ramayana -, e decidiu partir, desta vez em segredo, para Benares (Varanasi), abandonando finalmente o palácio. Em Benares conheceu seu guru Sri Raidas, quem lhe revelou a Jñana Marga. A Bhakti Marga (Via do Amor) se complementa e é coroada pela Jnana Marga (Via do Conhecimento). Eis o trajeto de Mira Bai, a qual, sendo já santa e grandississimamente abençoada por experiências espirituais pessoais com Krishna, esteve também aos pés de um autêntico guru de seu tempo.
 
 
Mira Bai, após cumprir seus dias como discípula de Sri Raidas, regressou mais uma vez ao convívio com os devotos em Benares. Reunida com os fiéis se pôs a cantar seus bhajans e a dançar para Krishna, como já havia feito tantas vezes. Segundo os hindús, nesta última noite em Benares, Mira Bai foi, diante dos devotos, absorvida por Krishna...
 
 
 
 
 
 
 
 
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                                                                                       (...) 

 
 
Este amor errante
é a raiz de todo o sofrimento
 
Quando vem cortejar-me
diz coisas que logo esquece,
facilmente...
 
Colher uma flor
ou romper uma promessa
tardam o mesmo tempo...
 
Quando tu estás ausente
há um espinho
em meu coração...
 
 
(...)
 
 
O amor me enlouquece
ninguém conhece o meu sofrimento...
 
Somente a que está ferida
a que alimenta um fogo em seu coração
sabe o que esta agonia significa...
 
Somente o joalheiro
ou aquele que perdeu uma jóia
conhecem o valor real de uma gema...
 
Atormentada,
vou errando de porta em porta
em busca de um curandeiro
Mas não posso encontrar nenhum...
 
Minha dor só desaparecerá
quando Shyam [Krishna] voltar...
 

[nota: comparar este bhajan e o próximo com o Cântico dos Cânticos de Salomão, por exemplo com versos do capítulo 5: conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu Amado, fazei-o saber que estou enferma de amor...]

 

(...)
 
Como receberei a meu Senhor?
Veio a meu jardim e se foi...
Desde então o perdi...
E agora sempre o espero...
 
Hari veio e se foi
enquanto eu, mulher desafortunada
não estava alerta.
 
Agora minha alma não tem descanso
atada à roda de fogo [do amor]
 
 
Mira é a escrava;
Girdhar é seu senhor.
Tais amantes não podem nunca ser separados...
 
 
(…)
 
 
Despertaste meu anelo por Ti
onde posso escapar-te agora?
 
Em tua ausência não encontro paz
Sofro e perco meus dias...
 
Por Ti renunciarei ao mundo
e adotarei a rota dos peregrinos.
 
 
Meu Senhor
para sempre serei uma escrava
aos teus pés de lótus...
 
(…)
 
 
Vê amigo meu
Harí endureceu seu coração.
 
Prometeu-me que viria
mas tem me abandonado...
 
Em sua espera tenho perdido 
a fome e os sentidos...
 
Como hei de sobreviver?
 
Pois escolhi suas promessas
contra as do mundo tangível....
 
Por que agora me desdenha?
 
Escuta-me Girdhar:
o amor tem ferido meu coração!
 
(…)
 
Mãe
Dinanath [Krishna] o esposo dos humildes
me tem feito sua noiva.
 
 
56 milhões de devas [seres celestiais]
vieram no séquito de Krishna
o noivo...
 
 
Sonhei com uma grinalda 
de folhas de manga...
 
 
Sonhei que Ele sustinha mão
e juntos dançávamos 
ao redor da fogueira...
 
Sonhei uma felicidade imortal...
 
Mira ganhou a Girdhar:

o prêmio a seu amor ancestral...                                                                                              

               

 

[nota final: há em português, a pequena obra "O amor chegou com as chuvas" de Mira Bai, tradução de Jorge Sousa Braga do trabalho inglês de A.J. Alston ("Devotional poems of Mira Bai"), 2009, 64 páginas, Editora Assírio & Alvim/Portugal. Eu não sou um literário - como expliquei no post sobre Hafiz, prefiro, ao menos,  tentar me aproximar do espírito dos poemas místicos, daquilo que eles indicam, e não arriscar reduzí-los na tentativa de dar explicações racionais, as quais acabam por formar uma "cortina"  e, destarte, uma distância - nessa obra o tradutor observa a linha literária (normal, até por se tratar de um contrato profissional)... Algumas explanações dadas na livro sobre Mira Bai procuram ser razoáveis outras têm fundamento (a relação de Mira Bai com o guru, se tornando não apenas discípula mas, muito provavelmente, yogini - cabendo na relação yogi/yogini a mesma relação de Krishna com sua esposa Radha, sendo o guru realizado não muito mais que o reflexo do próprio Krishna ou ainda totalmente permeado por Ele). Eu prefiro verificar como a Bhakti Marga se desenvolve  e não alterá-la...  não altero também nenhum arroubo ou arrebatamento interior contido nas canções místicas no sentido de tentar, com as alterações, fazer os cânticos parecerem, de algum modo, "respeitáveis" ou ainda sóbrios/razoáveis a alguma leitura mais cética - o que não quer dizer que eu - ou outras pessoas nas tradições espirituais - sejamos meramente crédulos. 
 
Num aspecto importante entendo os céticos: o desafio das tradições espirituais é formar espiritualidades vivas - sem isto, 
1) o que corrobora que as nossas escrituras e tratados metafísicos são realmente verdadeiros? 
2) têm realmente validade? 
3) fazem nossa cultura tradicional valer a pena?... 
 
 
Se, todavia, os tratados e escrituras das tradições espirituais são verdadeiros, há um elemento de equívocom de falta de verificação e/ou de falsidade no ceticismo. Eu, por exemplo, sou budista, então, por estudar o Buddhadharma, o nihilismo já não me interessa ("Não há fruto/resultado das obras boas nem más; nem há mundo do além..."... segundo o Buddha Shakyamuni, no Majjhima Nikaya 41, v. 10 e 14/Saleyyakka sutta e tb. Digha Nikaya 23/Payasi sutta - bem como Nagarjuna na Ratnamala/Grinalda Preciosa v. 21 e 144 -   essa posição é nihilista e inviabilizadora do necessário para a ascese interior/espiritual  - e interação com os estados superiores - e para o despontar da Iluminação; e a perseverança nessa posição é conduzente aos estados inferiores). 
 
Nas tradições espirituais há êxitos... mas há também fracassos (e os fracassos são feios de se olhar e trabalhosos de se conviver); há acertos mas há, também, desvios comprometedores, os quais podem constituir-se em misérias e doenças... por fim, o estudo e a ética são necessários mas há a necessidade de desenvolvimento da prática ...]
 
 
 
 
 
 

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ADENDO:  Breve observação sobre a Bhagavad Gita e o Mahabharata de Krishna Dwaipayana-Vyasa.
 
 
 
 
A Bhagavad Gita é considerada a essência do Mahabharata, pois dela constam, em cada um de seus 18 curtos capítulos, um ensinamento sapiencial (Karma yoga, Samkhya Yoga, Jnana Yoga, Dhyana Yoga, Moksha Samnyasa Yoga, etc.).
 
 
Dos estudos/leituras mais enriquecedores, edificantes e gratificantes que me dispus a efetuar, sem dúvida merece nota honrosa o Mahabharata - obra monumental de Krishna Dwaipayana-Vyasa -, estudo que, inclusive, me trouxe uma fixação melhor da Bhagavad Gita, de alguns Puranas e do Manava Dharma Shastra [*]. Num momento em que meus estudos estavam ainda incipientes, o Mahabharata me trouxe um endereçamento, um guiamento melhor em relação ao Hinduísmo. Pessoalmente, e embora concorde que a Bhagavad Gita seja a essência do Mahabharata, não recomendo a ninguém deixar de verificar a obra completa. 
 
 
[nota: o Mahabharata traz não apenas os eventos envolvendo Krishna e a Bhagavad Gita, e Hastinapura, as famílias dos Pandavas e Kauravas e a guerra em Kurukshetra: há uma série de histórias e ensinamentos paralelos, agregados ao tema prncipal que não apenas encorpam a obra mas ampliam a compreensão do leitor em relação a aspectos importantes do Hinduísmo... ]
 
 

Quem estiver como eu, - precisando nalguns momentos que o dia tivesse 36 horas ou dormindo menos para que a organização diária não vire uma bagunça e possa incluir algum estudo/leitura em sua rotina de atividades – tirem algumas poucas horas e experimentem o filme “the Mahabharata”, de Jean Claude Carriére  (autor do livro equivalente, publicado no Brasil pela Editora Brasiliense) e Peter Brook, em três dvds, produção européia que eu não desmereço, e que contou, no cast, com atores europeus, africanos e asiáticos (não sei por que motivo, mas, independentemente de qual seja, o fato é que o Mahabharata se trata da “história poética da humanidade” e acabou dando certo ter gente de todo o lugar e etnia).

 

 

Peço, contudo, a compreensão do leitor uma vez que, realmente, não sou crítico de cinema nem é o cinema a minha área. Dou aqui apenas as minhas impressões pessoais: não se trata o filme de Carriere e Brook de nenhuma superprodução e, inclusive, obviamente por questões de dinheiro, foi omitido o episódio da “Casa de Cêra” bem como a presença de alguns personagens como Kripa (também filho de Vyasa, irmão dos reis Pandu e Dhritarashtra) e Vidura; a trama poderia ter sido filmada em, pelo menos, quatro dvds.  Nakula e Sahadeva (irmãos de Arjuna, Bhima e Yudhishthira) tiveram participação minimal/discreta; também onde houve necessidade de efeitos especiais os mesmos são adaptações singelas, mesmo simplórias. Mas a História Poética da Humanidade de Vyasa é tão profunda e poderosa, com momentos dramáticos - o sofrimento da rainha Draupadi, da rainha Kunti, a dor de Karna, a necessidade dos Pandavas de se valerem da astúcia - e não apenas do heroísmo - em algumas etapas do combate -, que faz o filme valer a pena. Ao final, é realmente possível sentir um pouco da força do Mahabharata nesse trabalho... 

 

 

 

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Hafiz - Shams Ud Din Mohammed

12/12/2014 20:15

Hafiz – Shams Ud Din Mohammed (1320-1389 EC)

 

 

Para terminar este ano, deixo aos leitores e amigos minhas anotações de alguma poesia de Hafiz - no caso alguns dos gazéis - cuja leitura penetrou em mim de tal forma que simplesmente os lembro de memória.

 

Na web está disponibilizado no site www.archives.org a tradução inglesa de Henry Wilberforce Clarke, em dois volumes do “Diwan i-Hafiz” (https://archive.org/details/thedivan01hafiuoft e para o segundo volume ...thedivan02hafiuoft ), o qual inclui não apenas os gazéis, mas rubayat, masnavi, kitáati entre outros trabalhos poéticos de Hafiz.

 

Em português, que eu saiba, há somente a tradução do trabalho francês de Charles Devilliers - e a tradução brasileira se restringiu apenas aos Gazéis – feita por Aurélio Buarque de Hollanda (Livraria José Olympio, 1944), não mencionando a edição do livro brasileiro que a tradução não é direta do persa mas sim do trabalho de Devilliers, o que o leitor deve deduzir pela leitura da introdução.

 

Para mim o semestre final deste ano foi cansativo e mesmo desgastante, me permitindo poucas horas de sono - se eu quisesse manter alguma organização no meu dia a dia -, o que me forçou mais uma vez a reduzir a continuidade dos meus estudos (os quais me são importantes - as minhas perguntas ainda remanescentes estão vinculadas a esses estudos, ao menos enquanto não os concluo).

 

À época em que Hafiz, Kabir e São João da Cruz chegaram para mim - 25 anos de idade -, eu estava num percurso que me conduzia/encaminhava para uma orientação mais intelectualista. Há algum tempo, tinha alguns colegas/amigos na Filosofia (USP, Faap, PUC/SP) com quem trocava ideias e de quem recebia sugestões de leituras e estudos e pensava em cursar Filosofia (USP ou ainda na Faap - menos militante* ); e também alguns colegas/amigos da Igreja, seminaristas ou formados em Teologia - os quais se conduziam, também eles, num alinhamento fortemente intelectual. 

 

[nota: nada pessoal contra os estudantes - esquerdistas ou não -  e nem mesmo contra os militantes - acerca dos quais tenho relação normal  de amizade com alguns -; à época que procurei alguma aproximação com a USP  - desde 1989, quando encerrei o ensino médio - dos professores que tive notícia do Departamento de Filosofia todos eram esquerdistas engajados e isto se refletia no curso (em 1992 por exemplo, era apenas um semestre com Platão e Aristóteles, seguido o semestre subsequente por Kant (what the hell?) o que me fez recuar, já que eu tinha lido a "Política" de Aristóteles e queria aprender mais; meu amigo da PUC - também socialista - dizia que o curso da PUC "era melhor"; eu mesmo preferia o da Faap - meu professor do ensino médio era um sujeito incrível  e sua aula muito elogiada pelos alunos -. Ao final fui para a área técnica - para descobrir que não era um deles - me arrependo até hoje (eu não anulo amizades sinceras nem convivências que são espontâneas... sendo eu um metafísico tradicional e ortodoxo, tenho amizades verdadeiras até com alguns contrários à minha posição - ou em posições contrárias à minha - realmente, meditando hoje,  preferiria ter estado com o pessoal na USP, mesmo com diferenças)...]

 

Do ponto de vista da espiritualidade, eis que a mesma necessita do desenvolvimento interior/espiritual efetivo e isto envolve a Mente-Coração e a formação de uma espiritualidade viva. Não tendo eu interesse nem pretensão de corrigir ou mesmo me indispor contra a preferência intelectual de ninguém, quero apenas consignar que uma apreensão que se dá somente ao nível intelectual dos ensinamentos e informações espirituais acaba criando uma lacuna ou hiato - como eu percebo essa lacuna/hiato no meio teológico (mas não somente neles) - a qual, infelizmente, para alguns acaba sendo não transposta em tempo algum. 

 

Podemos nos tornar eruditos - acumulação de estudos e saber - isto, porém, num universo que se preocupa com elevação/iluminação (ou ainda com o autodescobrimento a um nível que não pode ser considerado superficial), não implica que há uma contrapartida, uma realização efetiva; não implica que alguém - quem quer que seja - “tem alguma coisa” (alguma realização interior/espiritual verdadeira) mesmo vinculado a uma tradição espiritual que viabilize muitos recursos.

 

Some-se a isto, também, a existência de equívocos (pois, como bem sabemos, há falsos mestres, pseudogurus, a escroqueria espiritual...). 

 

As pessoas, entretanto, normalmente não são bobas de procurar “quem não tem nada” (todavia isto é uma faca de dois gumes - eu prefiro a energia de paz, ou aquela energia que é uma alegria inexplicável a qualquer fenômeno psíquico). 

 

Lidando com religião, espiritualidade ou com autodescobrimento o fato é que precisamos de informações verazes, consistentes, fundamentadas - inviável avançar, trilhar adequadamente um caminho/via sem esse requisito ou agregando tapeações/informações inverídicas; todavia, manter-se apenas ao nível das palavras pode se tornar uma armadilha e fonte de decepção (sendo que a preocupação demasiada ou ainda o apreço por fenômenos psíquicos podem constituir outra armadilha).

 

A Via do Amor/Bhakti Marga – a qual não descarta a Via do Conhecimento Unitivo, pois que esta última, na verdade, é o seu complemento e coroamento - é peça fundamental nas obras de São João da Cruz, Kabir e Hafiz e o meu contato inicial com obras desses espirituais para essa posição me remeteu – em continuação, lá vou eu com Rumi, Mira Bai, Santa Teresa de Ávila, etc. 

 

O que me veio avante, no decorrer das leituras/estudos, foi que se eu me empenhasse numa apreensão somente intelectual, eu não conseguiria ir muito longe, chegaria no máximo ao nível literário da coisa. 

 

Ao menos ler as explanações de São João Cruz - e não apenas os cânticos em si - sobre os processos interiores que caracterizam os desenvolvimentos da 'Noite Escura da Alma ', ou na 'Chama de Amor viva' e assim por diante; analogamente Hafiz e Kabir requerem mais estudos: Kabir usa algumas formulações as quais são notórias a quem sabe um mínimo sobre Hinduísmo ou então que não nos são tão estranhas ou difíceis de captar/entender como o tema da “abelha do coração”, símbolo conectado à Bhakti Marga, ao Amor Divino e ao Teísmo [*]; no caso de Hafiz, entretanto, o estudo implica compreender o significado das imagens/figuras simbólicas próprias do Sufismo como o “vinho” (a influência derramada do depósito espiritual), a “taverna” (tariqa/confraria sufi), “Sáki” (a escanção/sommelier, “a que serve a bebida na taverna”, a qual é, por isto, também “a Amiga”), a “Bem-Amada” (O Feminino metafísico; Hafiz situa a “Bem-Amada” num nível superior ao do domínio exoterista do Islam, a uma realidade ou meta metafísica), o “rouxinol”, a “rosa” e demais flores (diversas aptidões/vocações bem como diversos resultados espirituais), e assim por diante.

 

Deve ser salientado ainda a conexão de Hafiz com os derviches - como os Qalandares - os quais, como os sadhus e kapalikas hindús e monges budistas eram errantes/mendicantes[*].

 

Sem uma compreensão das figuras/imagens simbólicas do Sufismo uma leitura de Hafiz pode se restringir ao nível literário. Alguma compreensão sobre o contexto no qual Hafiz estava inserido pode ser útil - sobre o Corão, os derviches, alguma informação sobre a Pérsia - o rio Roknabad, as cidades de Mosela e Shiraz, as cortes da nobreza islâmica e alguns de seus reis -, as madrasas, as tariqas, etc, ressalvado, entretanto, que tal conhecimento se trata de informações acessórias; a chave é a compreensão do simbolismo.

 

[nota (*) uma amiga indiana  - muita sorte a minha  em encontrar uma que valoriza o Sanatana Dharma (pois já cheguei a conhecer quem não valorizasse - e, claro, isto é pessoal, é dos motivos e experiências de cada um, de seu karma pessoal/samskara/vasana/klesha - e, a meu ver, o que não é espontâneo não pode ser forçado de fora - porém eu  e minha amiga já somos como "irmãos") - certa vez me dizia que, nas tradições espirituais teístas, “quem não tem 'abelhinha' já está complicado com Yama”. Quem não tem “abelhinha”, entre algumas circunstâncias que justifiquem tal carência, ou cometeu/vem cometendo faltas éticas graves/gravíssimas, ou preferiu/prefere viver baseando suas decisões na plataforma de um coração frio/pétreo ou então já é maligno - pois quem vai para Yama tem fracassado na sua jornada terrestre e/ou transgredido de modo significativo-aflitivo o Sanatadharma/Lei Eterna - ou ainda o Buddhadharma (no âmbito budista); Yama apresenta diante do morto um espelho cujo reflexo mostra todas as obras perpetradas por aquele em vida; a pessoa é acareada com suas próprias obras através do espelho. Yama é o Senhor da Justiça e procura algum meio, alguma boa obra que possa justificar, livrar, reduzir ou aliviar a continuidade do estado daquela pessoa; todavia, pesadas as obras na balança daquele karma individual, dois destinos além-morte recorrentes, após o julgamento com Yama, são o Pretalôka – mundo dos fantasmas famintos - e o Narakalôka - mundos infernais...]

 

[nota (**) - dos próprios gazéis se verifica a conexão estreita de Hafiz com os derviches, às vezes dando a impressão de que ele mesmo - que ganhou a subsistência atuando como professor corânico,  boa parte da vida - foi também um deles (Hafiz teve esposa e filho, portanto, foi um pai de família)-; com efeito, se em alguns gazéis temos aquilo que, separado da sua compreensão simbólica, parece remeter somente a algum romantismo e/ou à delícia do vinho e das festas em si mesmos, outra parte dos gazéis de Hafiz traça, caracteriza  o itinerário espiritual do derviche. No que concerne aos Qalandares, a palavra “qalandar” pode significar mais de um seguimento espiritual ou comunidade da Ásia Central (Pakistão, Índia, Afeganistão, Iran, etc.) que não aquela referente à ordem de derviches mencionada de modo honroso nos gazéis. Vale informar que, em contraposição à opulência material das realezas islâmicas, os sufis escolheram o Despojamento/Pobreza (maiormente interior, mas, no caso dos derviches, tanto interior quanto exterior) como Virtude e Amiga Verdadeira, porta de acesso para interação efetiva com as essências espirituais viabilizadas através da tradição islâmica...]

 

 

Shams Ud Din Mohammed, nascido em Shiraz, Pérsia (atual Iran) cerca de 1320 EC, morto em 1389 EC, cognominado “Hafiz” (“aquele que sabe o Corão de cor” - e todo aquele que sabe o Corão de cor é um “hafiz”) - bem como “Khwaja” (mestre) - Hafiz foi discípulo de Attar de Shiraz (não confundir com o sufi, também persa, Farid Ud Din Attar, anterior de dois séculos a Hafiz) -, e sucedeu seu mestre na tariqa a que pertenciam. Como Rumi, também teve sua musa inspiradora, a saber: a bela e virtuosa Shakh-e Nabat. Contraiu matrimônio e teve um único filho. Efetuou, pelos seus 20 anos, um retiro espiritual de 40 dias, findo o qual encontrou seu mestre Attar de Shiraz. Quarenta anos depois, realizou outro retiro de 40 dias, findo o qual foi visitar Attar de Shiraz. no decorrer daquela visita ao mestre, ficou registrado que Attar lhe ofereceu uma taça de vinho,  ao provar a mesma Hafiz alcançou a realização interior/espiritual à idade de 60 anos, sendo dessa fase boa parte dos gazéis..

 

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O sorriso”.

 

Uma dessas noites um sábio me falou:

-É preciso conhecer o segredo daquele que nos vende o vinho...”

 

E ainda:

-Não leves nada a sério. O mundo carrega de enormes fardos aqueles que dobram a cerviz”.

 

Depois estendeu-me uma taça 

onde o esplendor do céu refulgia tão vivamente que Zuhra [planeta Vênus] se pôs a dançar:

-Filho segue meu conselho: não te inquietes com as coisas deste mundo.

Guarda as minhas palavras: elas são mais raras do que as pérolas.”.

 

Aceita a vida como aceitas esta taça:

de sorriso nos lábios, ainda que o coração esteja a sangrar!

Não gemas como um alaúde; esconde tuas chagas...”

 

Até o dia em que passares por trás do veú, nada compreenderás.

Não podem ouvidos humanos ouvir a palavra do Anjo.”

 

Na casa do Amor, não te envaideças das tuas perguntas nem da resposta...”.

 

 

A cortesã”.

 

O castelo da nossa esperança assenta em bases frágeis.

 

Uma lufada de vento abate, em uma hora, a casa da vida.

 

Dar-te-ei um conselho.

Guarda-o na memória e que ele te oriente as ações.

Recebi-o outrora de um velho guia no caminho da vida:

 

-Não esperes nada do que te prometeu o mundo falaz.

A terra é uma cortesã que teve milhares de amantes”...

 

Contenta-te do teu quinhão

e apaguem-se as rugas de tua fronte inquieta;

a porta do eleitos não está aberta nem para mim nem para ti.

 

O sorriso da Rosa nada promete, nem sequer fidelidade.

Chora, Rouxinol, esse lamentável destino.

 

Por que então, ó maus rimadores, tendes ciúmes de Hafiz

se Deus lhe permitiu abrir a fonte das palavras suaves

e capturar todos os corações?

 

 

Para quê?

 

Sem o sol do teu rosto

o dia para mim não tem claridade

e a vida é uma noite sem fim.

 

À hora do adeus,

quando partiste para longe de mim

meus olhos repentinamente se esvaziaram de luz

e fiquei cego de tanto chorar.

 

Tua imagem desapareceu de meu olhar

no instante em que gritei

-Ai de mim! Este mundo agora é um deserto!”

 

Só a tua presença afugentava de minha fronte o mau destino

Agora que te achas longe,

já o sinto rondar em torno de mim

 

Aproxima-se o momento em que o Velador dirá:

-Este homem arruinado,

este homem esquecido de todos

vai deixar o mundo...”

 

Que bom seria que viesses agora, ó Bem Amada,

agora que mal resta uma centelha de vida

no meu pobre corpo.

 

Se meus olhos já não têm lágrimas, dize-lhes:

-Vertei agora o sangue do vosso coração”

 

A paciência seria o meu remédio na separação

mas já não tenho mais forças para sofrer...

 

Ó Hafiz, a miséria e as lágrimas te afogaram o sorriso.

Sob o manto da tristeza não cuides mais em festas,

na embriaguez e nas canções!

 

 

O espinho e a rosa.”

 

O Zéfiro [vento da primavera] embriaga-nos com o seu hálito.

É festa da Rosa!

 

Onde está o doce rouxinol?

Pede-lhe que nos cante uma canção!

 

A tua beleza é um jardim de flores

e Hafiz, de cantos tão doces, é o teu rouxinol..”

 

Coração triste, não te queixes da separação

neste mundo existem, lado a lado, o prazer e a dor

como o espinho e a rosa!

 

Eu que outrora fui um homem atilado e sutil

hoje não passo de um pobre

cuja razão vacila...

 

Em meu desespero, rouxinol do amor,

arranco as penas e quebro as asas

para lançá-las ao vento

mas não posso libertar-me desta paixão indomável.

 

Brisas cheirosas, ide para minha Amada

brincai nas tranças de seus cabelos

trazei-me de volta o perfume dela...

 

[nota: eis aqui de volta o meu amálgama – já publicado no post Bhakti Marga - Via do Amor. Não contei, mas há trechos de três ou quatro gazéis aqui. Após terminar a leitura do livro, comecei a tomar notas e, parando para tomar um café numa lanchonete, esses trechos dos gazéis vieram assim à minha memória... preservei a anotação.]

 

 

O poeta pobre.”.

 

A inconstância reina soberana.

São raras, hoje, as provas de amizade verdadeira.

 

Os homens sérios vêem-se reduzidos

a estender aos indignos a mão leal.

 

Na imensa dor do mundo

o homem de bem não conhece

um instante de repouso ao seu sofrimento.

 

Que o poeta faça um canto claro como o vinho...

um canto de menino...

que derrame no coração uma onda de alegria!

 

O avarento e o guloso não lhe atirarão

sequer uma espiga sem grãos

a ele que pode cantar as melodias dos anjos!

 

A Sabedoria, ontem, disse-me baixinho:

-Vai! Embora fraco, tem paciência.”

 

Sim, seja a paciência a tua única arma...

doente ou triste, tem paciência!”

 

Ó Hafiz, guarda na alma este conselho.

E se, de fatigado, cambaleias,

endireita-te, ergue a fronte e caminha!

 

[nota: aos derviches mendicantes se refere Hafiz. Abriram mão de todas as coisas por amor a uma única coisa. Imolaram as próprias possibilidades temporais, se expondo ao tempo, à necessidade e à doença em prol da possibilidade com o Um... Não sem conhecimento de causa, num dos gazéis – cujo teor poderia ser interpretado como um excesso de lirismo - Hafiz, dissertando sobre a fidelidade, escreveu:

 

Jamais a lembrança de tuas faces floridas

me abandone o espírito perturbado

pelas crueldades da vida

e pelo implacável destino...              

 

A vida material dos derviches, com efeito não se tratou de um vida fácil já que boa parte deles viviam expostos... ]

 

 

 

O mendigo”.

 

Sou o amante de meu Amor...

que me importa seja ela fiel ou pérfida?

 

Tenho sede de sofrimento...

que me importa, a mim, nossa união ou desunião?

 

Se nos teus lábios não encontro a vida...

que me resta fazer desta vida sem ti?

 

Se o amor me faz morrer...

que medo poderei ter da espada do sultão?

 

Nu e pobre...

sempre na miséria...

que valem para mim os tesouros dos reis?

 

Os olhos da Bem Amada são a Meca

dos meus pensamentos e do meu desejo...

meu coração não conhece outro lugar de peregrinação!

 

Se te quero só a ti neste mundo...

de quê me serve o Paraíso e suas Hurís eternas [*]?

 

Aquele que se perdeu no caminho do amor, ó Hafiz,

desdenha a amargura...

despreza a aflição...

não procura mais remédio para as suas mágoas...

 

 

[nota: Al Corão - Surata “At Tur” (nº 52) e Surata Al Waqui´a (nº56): as Hurís são formas celestiais femininas, virgens eternas, destinadas - com outros bens espirituais - a serem recompensa a cada muçulmano fiel que alcançar a salvação; colocações como esta custaram a Hafiz indisposição e perseguições com os Ulemás/Doutores da Lei Corânica... (pessoalmente, as descrições no Corão  do Paraíso muçulmano me surpreenderam e, quanto à compreensão destas passagens do Corão com tais descrições, me alinho com a posicão - muçulmana -  que compreende tais descrições como comparativos do que corresponde a bem-aventuranças e fruições) ]

 

 

Qalândares.”.

 

Ouvi, certa manhã,

aquela voz que vinha da taverna

e docemente me dizia:

 

-Volta Hafiz; jà esperaste muito a essa porta.”.

 

Como Djemschid [antigo rei persa] bebe uma taça de vinho;

dela pode sair um raio

que te fará contemplar o reino espiritual”...

 

Nos umbrais do albergue

onde se vendem esse maravilhoso filtro

dormem qalândares bêbados

que preparam e distribuem coroas reais.

 

Descansam a cabeça num tijolo

mas os pés repousam sobre o Setestrelo [as Plêiades]

Olhai para eles:

compreenderás a vaidade do poder e da glória.

 

Reclinarei a cabeça na poeira da taverna:

são humildes as suas paredes

mas o teto alcança as estrelas.

 

Viandante!

Sê compassivo para com o mendigo agachado à porta

se desejas compreender os mistérios divinos.

 

Se receberes a coroa do sultão do Reino dos Pobres

teus domínios se estenderão, pelo menos, da Lua ao signo de Peixes.

 

Mas não te ponhas a caminho

sem ter a Prudência por companheira:

a estrada é escura

e grande o perigo de te desgarrares.

 

Ó Hafiz! Presa da cobiça, envergonha-te de teus atos.

Que representam eles para mereceres, como pedes,

a recompensa de dois mundos?

 

Tu não sabes como se bate à porta da miséria.

Não deixes, pois, escapar de tuas mãos os coxins da volúpia...

 

[nota: No Ocidente, monges cristãos mendicantes ou peregrinos existiram, porém, hodiernamente, ou extinguiram-se ou recolheram-se aos mosteiros. No Brasil não temos informação acerca do que poderia ser a vida de religiosos mendicantes e as grandes cidades sempre possuem moradores de rua; acontece que, dentre os moradores de rua, alguns estãos nas ruas por falta de moradia e emprego e, casos há, também, por falta de albergues (públicos ou de instituições de caridade) ou ainda por falta de vagas nos albergues existentes; outros passaram por situações pessoais traumáticas/grandes decepções ou quedas e desistiram da normalidade da vida; outros perderam a mente (se tornaram andarilhos); outros tombaram por alcoolismo e/ou consumo de drogas; outros ainda são filhos de moradores de ruas (nasceram nas ruas), outros por levar uma vida em desregramento, acabaram anulando vínculos e se viram perdidos. O motivo dos religiosos mendicantes nas diversas tradições espirituais é diferente: Cristo, o Amor Divino, Shiva, Krishna, Shakti, a busca de Brahman ou da Realidade Última, a busca do Buddhato (estado de Buddha). O caso do Buddha Shakyamuni é notável: era príncipe herdeiro, tinha tudo e, quando herdasse o reinado, teria poder de ordenar vida e morte, mandar soltar e prender, decretar e pelejar guerras; em sua vida como príncipe Sidharta, além do conforto/opulência material, tinha uma vida de paz, nada lhe faltando; e a tudo deixou por uma causa nobre (e se o Budismo é uma tradição espiritual metafísica, não se deve negligenciar que em tal tradição duas de suas posições fundamentais são Karuna/Compaixão e Dana/Dar-Caridade). São Paulo, que fora um judeu culto e de boa família, na sua missão e peregrinações, não apenas viveu sem conforto e em constantes apertos, mas muitas vezes passou fome, frio e tribulações (espancamentos, prisões, açoites, apedrejamentos, tentativa de linchamento). A ordem criada por São Francisco de Assis teve entre seus filhos, homens e mulheres oriundos de famílias européias respeitáveis como Santo Antonio, São Gonçalo, São Boaventura e Santa Clara. Também os derviches renunciaram a tudo, foram viver expostos, sem olhar para trás, por uma causa nobre: o Amor Divino e o Conhecimento Divino. Com relação à finalização deste gazél, o certo é que quem não tem mais amarras temporais vai mais longe... pois em relação à “porta da miséria” (i.e.  a Porta da Pobreza/Despojamento) os “coxins da volúpia” remetem à procedimentos numa hierarquia espiritual imediatamente e sutilmente recuada e inferior... ]

 

Se as rosas se vão”

 

Ó Saki, traze-nos a alegria da mocidade!

Enche-nos uma taça e mais uma taça

de vinho rubro.

 

Traze o remédio ao mal de amor;

traze vinho, bálsamo para o velho e o mancebo

 

Não te inquietes com a fuga do tempo.

Sem um gemido, deixa rodar a roda do destino.

Toca sossegado o teu alaúde para ti somente.

 

A sabedoria fatiga-nos:

atira-lhe ao pescoço o laço da embriaguez.

 

À rosa que morre,

dize-lhe um alegre adeus...

e bebo do vinho rubro...

rubro como as rosas...

 

Se o arrulho da rôla emudece, que importa!

Escuta a música suave

que sobe da ânfora de vinho

 

O Sol é quente como o vinho

e a Lua é fresca como uma taça.

Derrama o Sol na Lua...

 

Só em sonho se pode ver o semblante do amor:

verte-me o remédio que me faz dormir...

 

[nota: “Antes do amanhecer o vinho foi derramado. O vinho foi um empréstimo dos olhos de Sáki, a doadora do vinho...”“Ó Sáki, consola-nos tu que trazes o esquecimento...”. O vinho traz saúde (resveratrol) e alegria; o alcoolismo, porém, sendo um excesso e um abuso é aflitivo, pode ter consequências ruinosas (socialmente, na convivência pessoal e familiar, fisica e psiquicamente além de acidentes trágicos/fatais) e nos furta da relação prazerosa  constituída pelo uso moderado do vinho... Os textos de Hafiz poderiam confundir, irritar ou mesmo desorientar alguns que não entendem o que o “vinho” e a “embriaguez” significam no contexto sufi – e que espero já ter demonstrado aqui e no post sobre Budismo (Zen) e Sufismo (para mais do que isto recomendaria adentrar o Sufismo propriamente)... Para finalizar, a "embriaguez" tanto pode se dar em momentos de atividade espiritual e recolhimento/solidão pessoais como quanto se faz presente nos momentos de ajuntamento dos sufis (o que os hindús denominam "sat-sanga", reunião/ajuntamento de guru e discípulos); daí Hafiz e Omar Khayyam  valorizarem a "taverna" (tariqa/confraria sufi) onde os sufis se reúnem para suas práticas espirituais e onde a Baraka (literalmente "benção") - cada verdadeiro mestre sufi, na silsilah (cadeia ininterrupta de transmissão espiritual de mestre a discípulo das diversas ordens/famíllias sufís e que remontam ao Profeta Mohammed - a paz seja sobre ele) recebe a Baraka de seu predecessor; a presença da Baraka  confirma a validade de uma transmissão e a regularidade e legitimidade, na silsilah, de uma ordem  sufi; e a Baraka transborda através do mestre sufi para os discípulos, formando o varão/virago interior em cada um deles. O "vinho"  é o influxo divino e a Baraka propicia que Sáki - "a doadora do vinho" - o distribua entre os sufis. Seria Sáki também a própria Baraka? Diria que a Baraka forma a interação/relação espiritual necessária à passagem de Sáki para que o "vinho" possa ser dispensado por Ela aos sufis... Como disse, veladamente, Hafiz: "O dragão que guarda os tesouros logra escapar a todos os homens..."

 

 Observa, ó sufi, no espelho da taça

o esplendor do vinho rubro.

 

Entre os que bebem é que descobrirás, talvez,

o mistério oculto sobre o véu.

 

O dragão que guarda os tesouros

logra escapar a todos os homens.

 

Larga as tuas armadilhas:

com elas só poderias pegar o vento

nada mais que o vento...

 

(...)

Que o vinho te reconforte o coração

pois este mundo é um deserto e, ao fim de tudo,

o teu pó se misturará com a argila do oleiro...

 

Não escrevais o meu nome acompanhado de uma injúria

Não me chameis de bêbado.

Quem sabe o que o destino gravou em minha fronte?

 

Viandante, não te desvies da sepultura de Hafiz.

Embora sujo de pecados, talvez ele seja o benvindo

entre todos nos Céus...

 

(…)

 

Porque condenar aqueles que, como eu, gostam do vinho?

Beber não é delito maior do que amar.

 

Antes um bebedor cujo coração sem astúcia desconhece a mentira

do que um austero mentiroso que não bebe...

 

(…)

 

Triste daquele que não conhecesse a embriaguez

nesses lugares onde se bebe à lembrança da beleza dEla...

 

Não esperes encontrar nenhum ouro no limiar da taverna:

aqui toda fortuna se dissipa...

 

(…)

 

Bebe vinho ao som da harpa

e afugenta para longe a tristeza.

 

Se acaso te dizem: “-Não bebas!”

responde: “-Deus é misericordioso!”

 

Ó Hafiz, por que sofrer com a separação?

A união virá depois

como às trevas sucede a luz...

 

(…)

 

Que canção pode cantar o Músico

que fez o bêbado e o homem em jejum

dançarem juntos?

 

Que ópio derramaram em nosso vinho?

Já não achamos nem o turbante na cabeça!

 

A Prudência é verdadeira riqueza mas...

que vale a Prudência diante do Amor?!

 

A língua do Amor não é a língua das palavras...

 

Não reveleis ao abstêmio o segredo da embriaguez...

(...)

 

Hoje estou velho

e o amor que me inspiraste

arrastar-me-á ao túmulo

pois nao cesso de encher de vinho 

a grande taça [do coração]

 

Meu amor por Vós 

tem razão contra mim mesmo

e o tempo desfolha 

a minha bela rosa... 

(Omar Khayyam - versão brasileira de Octávio Tarquínio de Souza) ]

 

 

A Rosa dentro da noite.”

 

A tarde morria quando eu desci ao jardim

onde me atraía o perfume das rosas

a procurar - desolado rouxinol -

um bálsamo para a minha febre.

 

Brilhava uma rosa na sombra

uma rosa vermelha,

como lâmpada velada.

 

Contemplei o seu rosto.

Quanta altivez nessa beleza adolescente!

 

À sua vista, fugira a tranquilidade

ao coração do melodioso rouxinol.

 

O olhar do narciso

encheu-se de lágrimas de piedade

e a tulipa, queixosa,

mostrou o sangue das feridas

que lhe fez o Amor.

 

O próprio lírio deixou sair

suas finas agulhas de ouro

e a frágil anêmona

se abriu com boca gemente...

 

Toma da taça e bebe:

o escanção te oferece o vinho puro!

 

O prazer da mocidade, as canções entre as rosas

- eis ó Hafiz o teu quinhão na vida.

 

Outra missão não tem o mensageiro

senão transmitir a mensagem...

 

 

Vaidade.”

 

O resultado de todo o nosso labor é apenas vaidade.

Dá-me vinho:

todos os divertimentos deste mundo são apenas vaidade!

 

O desejo de ter junto a mim Bem Amada enche-me a alma.

Mas o coração – quem sabe? -

o coração e alma são apenas vaidade...

 

O que nos enche o coração sem torná-lo pesado

é alegria verdadeira

e se é preciso tanto esforço e angústia para atingí-la

então – quem sabe? -

os jardins do Paraíso são apenas vaidade...

 

Vive em paz durante os poucos dias

em que te é permitido repousar no caravançarai (*) da vida:

o próprio tempo é apenas vaidade.

 

Ó Sáki, estamos a espera, na praia

ante o oceano da morte;

segura a taça

pois de suas bordas à nossa boca

tudo é apenas vaidade...

 

Nem por um instante voltes o pensamento

para o dia em que rosa fenecerá...

sê alegre como a rosa

pois a glória deste mundo efêmero é apenas vaidade...

 

Ó devoto, não te suponhas livre dos pecados do orgulho:

a diferença entre a mesquita e o templo do infiel

é apenas vaidade...

 

(*) caravansarai: onde as caravanas estacionam para descansar

__________________________

 

 

Me detenho por aqui...[*]

 

[nota: ou quase... vão aqui  mais alguns trechos tirados dos gazéis de Hafiz ...

 

Onde quer que viva o Amor

sua glória faz tudo resplandecer.

 

Em seu caminho

nunca se está longe ou perto do fim...

 

(...)

 

A terra inteira repudiasse o Amor 

e ainda assim eu ouviria os seus decretos

pois ele é o meu Senhor...

 

O Amor é um mendigo

que em seus trapos esconde um tesouro

 

E aquele que pede esmolas

pode ganhar uma coroa...".

 

 

(…)

 

Não tentes reter o vento

ainda que ele sopre à feição do teu desejo

 

Embora a sorte pareça agraciar-te

não te desvies do teu caminho.

 

Não profiras uma única palavra

interrogando sobre o “como” e o “porquê”.

 

O escravo fiel cumpre cegamente

as ordens do seu senhor.

 

Quem te disse que Hafiz ainda pensava em ti?

Ó Bem Amada, é mentira!”

 

(...)

 

Que a visão do teu amor

brilhante como uma estrela

cintile cada vez mais no meu pensamento...

 

Ó Lua de meu Amor

mais vale contemplar-te de coração tranquilo

que trazer a coroa do rei

durante uma longa vida cheia de honrarias...

 

(...)

 

Na rua em que mora o Amor

o esplendor dos reis é apenas vaidade...            ]

 

Que o encerramento e a entrada deste ano sejam bons para todos! Ricardo Kaliputra dezembro/2014.

Mais zen...

06/11/2014 02:33

    

Mais zen...

 

 

 

U.G.: “- Existe isto que chamam 'moksha' [liberação]?”

 

Shri Ramana Maharshi: “- Sim, existe...”

 

U.G.: “- Isto está em vós?”

 

Shri Ramana Maharshi: - “Está...”

 

U.G.: “- Há níveis nisto?”

 

Shri Ramana Maharshi: “- Ou bem estais ali ou não estais em absoluto...”

 

U.G.: “- Podeis vós dar-me esta moksha?”

 

Shri Ramana Maharshi: “- ... sim... posso dar-vos... porém... podeis vós recebê-la?”

 

 

 

[nota: me parece que em todas as obras sobre U.G. será encontrado este relato...]

 

 

________________________

 

 

Aluno: “-Que é o Tao?”

 

Professor: “-Ver a natureza verdadeira é o Tao...”

 

Aluno: “-Tu vês esta natureza verdadeira?”

 

Professor: “-Eu a vejo...”

 

Aluno: “-Como é esta natureza verdadeira?”

 

Professor: “-A natureza verdadeira é ato puro...”

 

Aluno: “-De quem ou o quê é este ato puro? eu não compreendo...”

 

Professor: “-O ato é aqui-agora... tu simplesmente não o vês...”

 

Aluno: “-Eu o tenho em mim?”

 

Professor: “-Tu és o ator agora...”

 

 

[nota: extraído da Revista Planeta - Edição Especial "Zen". Não rastreei o documento original deste diálogo.]

 

 

________________________

 

 

 

 

Existe moksha [liberação]? ou, no contexto budista, existe a iluminação? é possível ultrapassar o dualismo? 

 

Seguindo através da via Zen este é o assunto deste post.

 

Deve ser salientado que a escola Ch´an chinesa (Zen no Japão) a partir do 6º Patriarca - o Buddha Hui Neng (638-713 EC) -, adentra o caminho que culminará no foco da instrução sobre o “despertar abrupto”, consubstanciado na forma de ensinar do mestre Ma-Tsu (japonês: Bashô - 709-788 EC) - e para o Zen japonês o “despertar abrupto” foi equiparado ao surgimento do satori. 

 

Isto não quer significar - em hipótese alguma - que nos mosteiros ch'an houvesse ocorrido algum tipo de redução ou mesmo de regressão na observação da Disciplina Moral/Ética, na tomada de refúgio e no cumprimento dos votos ou ainda alguma redução/regressão nos estudos objetivando as acumulações de sabedoria/conhecimento -  ainda que as acumulações fossem focadas no ensino próprio do Zen como os sutras Prajnaparamita, Vajracchedika, Lankavatara, Avatamsaka e Vimalakirti Nirdesha -  e consequente compreensão doutrinal de qualidade do Buddhadharma tampouco dos demais métodos tradicionalmente utilizados nas práticas budistas (por exemplo: as técnicas samatha/vipassana objetivando a mestria na meditação/dhyana). 

Alguns que se deparam com textos zen - e particularmente documentos com relatos sobre o despertar abrupto -, podem incorrer em não perceber o contexto/plano de fundo no qual os budistas estavam inseridos (disciplina, estudos doutrinais e, no caso dos monges, regras monásticas - observado ainda que na China antiga havia também budistas mendicantes) e, destarte, levar em conta apenas o desembocar, o estágio final do  processo de uma construção interior/espiritual, eventualmente sem a devida apreciação/consideração pela sua nascente.

 

O foco sobre o “despertar abrupto”, enquanto disciplina espiritual habilita/tem como resultado, justamente, anular qualquer pretensão dualista - espiritual ou egóica - e qualquer auto-ilusão e/ou auto-engano por parte dos aspirantes bem como dissolver o dualismo (e integrar o aspirante ao Tao) - veja-se os muitos buddhas da Escola Ch'an (“Que é o Tao?”  pergunta o monge noviço... “A tua vida cotidiana”  responde o mestre...)

 

A meu ver, é em relação a isto (anulação de auto-ilusões/auto-engano e dissolução do dualismo – com a consequente integração no Tao) que os mestres ch'an/zen se posicionaram pelo foco no despertar abrupto... A instrução focada/orientada sobre e para o despertar abrupto tornou-se, no âmbito do Budismo Ch'an chinês, uma culminação e uma mestria... 

 

Resta em relação ao Ch'an/Zen duas questões não levantadas: a da presença da mestria - já aventada acima - e a da transmissão.

 

O que quero dizer é que, se no nosso dia a dia convivemos com pessoas frias e/ou malignas, esse tipo de energia não passa despercebido pelos atentos ou por aqueles que acabam tendo desencontros ou conflito de interesses com pessoas nesta situação (e embora pessoas nesta situação, geralmente, procurem evitar ser espalhafatosas ou indiscretas, além de agirem sorrateiramente e sigilosamente).

 

E se convivemos com pessoas santas - eu, por exemplo, tenho amigos cristãos que são cristãos de fato, sem hipocrisia nem miséria - é difícil não sentir, na convivência como tais pessoas, a energia de santidade (no caso dos cristãos, a energia crística - justo chamá-la assim pois é a Cristo que tal energia nos remete). Aqui me refiro aos católicos.

 

Em relação aos protestantes em situação de idoneidade na sua posição, o problema não é ausência de contrapartida, nem de resultado nem de consistência; diria que os protestantes tomam o que é, com efeito, parcial pelo que é total; tomam um pouco de posição com Cristo que eles têm por uma posição privilegiada nEle (uma posição privilegiada em Cristo não diz que os outros “são todos do Diabo” nem que a experiência verdadeira e sadia dos outros “não conta... é demoníaca”) e muitos podem ser induzidos nesta direção entusiástica, empolgada, equivocada, fundamentalista e extremista. No Brasil dizemos que  “o pouco com Deus é muito” e “o muito sem Ele é nada”. Se os brasileiros chegam a esse nível do profundo de seus corações, o adágio é, então, verdadeiro [*].

 

O resultado total, porém, não vem de um posicionamento/desenvolvimento parcial que o limita, não o penetra tampouco procura verificá-lo... essa é a dificuldade que o Protestantismo, na sua pretensão de se achar a única posição espiritual válida, cria... 

 

[notas:

 

1) Pessoalmente - e como um “filho distante no tempo e no espaço” de Chuang Tzú -, prefiro o pouco ou o nada com o Tao... do que muitos resultados sem o Tao - afinal “Mahamudra descansa sobre nada” (Budismo vajrayana). Dentro de mim eu já estou no nível que se preocupa efetivamente com a elevação/iluminação e isto se desdobra através de uma combinação de estudo e prática (saliento que só consigo ler um livro por vez - normalmente em 15 dias -, sendo que instâncias pessoais e materiais me estorvam uma carga de estudos mais intensa). Resultados? A lucidez e a maturidade espirituais fazem a sua parte, não cuidam de resultados mas, antes, de procurar fazer o melhor que podem... O que vem amanhã? O que estou plantando hoje... o que tem sido plantado ontem... e o que tiver de vir...

 

2) O nosso protestantismo brasileiro é mui pouco luterano pois predominantente derivado do protestantismo anglo-americano (presbiterianos, metodistas, batistas, etc.) ou de desenvolvimentos locais que procuram, num ou noutro aspecto, imitar tal modelo; há aqui, também, algumas seitas de índole protestante surgidas em solo americano.

 

Embora baseado na religiosidade bíblica, o Cristianismo “dos pastores” não possui, todavia, ITINERÁRIO, sendo um desenvolvimento - nas suas origens/fundações - meramente humano, como já observei no post anterior a este - “Bhakti marga: a via do Amor”.

 

O Protestantismo que vê a si mesmo como proprietário exclusivo da Pureza e da Veracidade cristãs foi criado pelos nobres, os quais eram iniciados, em decorrência de divergências entre eles e o Clero católico, sendo o Protestantismo parte integrante de um conjunto de medidas/ações objetivando a demissão da Igreja.

 

No hoje, integrando inclusive a cúpula/liderança de diversos ministérios protestantes - mesmo daquelas denominações consideradas respeitáveis -, há iniciados (no que eu, realmente, não me escandalizo ou surpreendo - tampouco vejo nada de errado -, já que tais denominações foram criadas e impulsionadas por eles). 

 

Eu, aliás, de minha parte, nunca me perturbei com os iniciados em nenhum campo; também nunca avalizei os erros, desvios e falhas da Igreja – tampouco deixei de defender o ponto de vista da Igreja quando encontrei no mesmo o que considero verdadeiro e/ou correto... Concordo com Pierre Feuga sobre o exagero/equívoco da Igreja em rotular, por serem pagãos, iniciados que buscavam seriamente a elevação/iluminação nos seus andamentos - como a  Alquimia - como "feiticeiros".  Também não vejo nenhuma possibilidade de o Santo Ofício (Inquisição) poder corresponder à solução correta para os problemas com os hereges e os pagãos; pois, embora a Igreja tivesse se deparado com algumas situações vis (como o uso de práticas de magia negra em andamentos prejudiciais/malignos às pessoas), entretanto em relação a diferenças de crença, desvios e crenças errôneas (ou consideradas errôneas) a condenação pessoal caberia/cabe à Justiça Divina (lembrando que as nossas justiças humanas são falhas). A meu ver a Igreja deveria ter procurado se reforçar doutrinalmente e espiritualmente, desde dentro e jamais permitir que o Santo Ofício tomasse a direção que tomou, extrapolando e desviando do que a Lei de Cristo formula (e a Igreja tinha meios, recurso espiritual e intelectual, para que isto não ocorresse). O Santo Ofício tomou uma direção que corresponde, num determinado momento histórico da instituição, a um desvio delirante de propósito da tradição cristã, no âmbito da Igreja Latina. São Patrício (Saint Patrick) trouxe a Irlanda céltica para Cristo pelo exemplo, oração e conversão. Meu interesse pela Igreja sempre esteve - e ainda permanece  - vinculado à espiritualidade, fundamentado nela; posições como o nexo de continuidade com o Cristianismo da Igreja Primitiva e a Sucessão Apostólica são informações verdadeiras prestadas pela Igreja (apesar do cisma entre Roma e Bizâncio); do ponto de vista ético, porém, não posso me posicionar contra os iniciados - nem considerá-los como inimigos pelo fato de serem pagãos - quando o objetivo que eles buscam trata-se da elevação/iluminação (até porque, as tradições espirituais quando se encontram verdadeiramente, tal encontro é justamente "por cima"); em termos simples/singelos, Cristo ensinou a não sermos temerários bem como que "aquilo que é dEle vem para Ele"; o Ocidente além de cristão sempre foi esoterista... 

 

“Criar”, porém, o Protestantismo sem itinerário foi, a meu ver, um êrro/falha dos seus idealizadores uma vez que isto teve como resultado uma limitação nos protestantes  - pobreza/ausência de relatórios sobre a posição cristã superior - cuja consequência foi, além da carência de resultado superior, a abertura ao desvio fundamentalista (a religiosidade bíblica, embora propicie obras importantes para a construção protestante, tem os seus limites - não substitui eficientemente tampouco pode ser sobreposta à Sabedoria e insistir nisto tem consequências comprometedoras para a posição protestante). 

 

Hipoteticamente, poderia ter sido explicado que não há nada de errado nem de “demoníaco” em estudar obras como  “O Livro do Conselho Perfeito” ou  “A Nuvem do Não saber” ou ainda São Boaventura, por exemplo, o qual foi um cristão não apenas exemplar mas iluminado...

 

Em última instância teríamos Jakob Boehme (ou Jacob Boehme - 1575-1624 EC) e Johann Gichtel (1638-1710 EC), mas ambos foram rejeitados e expelidos pelo Protestantismo da Europa continental de seu tempo, tendo Boehme deixado por escrito sua decepção/desencanto com a confusão do Livre Exame e as falhas humanas oriundas dos púlpitos (Gichtel, à sua vez, abandonando o Luteranismo não encontrou seu espaço/posição no Catolicismo, deixando-o também e passando a seguir via própria); seja como for, em relação a Boehme e Gichtel – e não que eles não pudessem ter “filhos” em meio ao protestantismo do Povo Simples (veja-se que se Gichtel foi advogado da suprema-corte - o que não quer dizer nada  metafisicamente - Boehme, a sua vez, foi sapateiro) já que o que conta mesmo é a vocação - o que temos é realmente uma posição espiritual/doutrinal “para os poucos, não para os muitos”, tendo inclusive o próprio Gichtel informado a “desnecessidade de culto exterior” para aqueles procurando Cristo e a Sophia na sua posição - ascese metafísica - o que, talvez, possa parecer demais para a maioria daqueles oriundos do Povo Simples.  

 

Se espirituais acima de qualquer suspeita, cristãos exemplares como São Boaventura e Santa Teresa de Ávila - ou ainda Santa Teresa de Lisieux - acerca dos quais  teríamos muito o que aprender, são desnecessários ou mesmo "demoníacos"... que não se dizer dos metafísicos Boehme e  Gichtel?

 

Não deixa de ser deprimente o subaproveitamento espiritual dos protestantes, os quais, literalmente, estacionam a meio caminho e se auto-restringem, obviamente por falta de relatórios aprofundados, de meios e de itinerário (os quais necessitam ser fidedignos, autênticos); procurando avançar em Cristo apenas no âmbito do louvor/adoração (prática legítima) e da profecia e das pregações carismáticas (práticas que podem apresentar falhas humanas e espirituais, as vezes gravíssimas, mesmo traumáticas), o fato é que os protestantes acabam não avançando na esfera da veracidade, desviando da mesma por falta de meios para recebê-la, adentrá-la e penetrá-la. 

 

Quem for visitar os protestantes perceberá que, não obstante a maioria ter alguma forma de experiência/vivência e de motivo e fidelidade na Via Mística com Jesus, entretanto, na posição que é a da Sabedoria ao invés dela o que existe, em verdade, trata-se de religiosidade bíblica, teologia protestante (fundamentada na mesma religiosidade bíblica) bem como algumas crenças sem fundamentação espiritual nem doutrinal, mesmo fantasiosas (os protestantes almejam milagres e obras grandiosoas, mas não têm como avaliar o quanto interiormente isto custa). Não pretendo neste relatório, contudo, afirmar que os protestantes não têm nenhuma experiência sadia em Cristo - longe de mim caluniar quem está na posição protestante em situação de idoneidade. Não dá para ir mais longe, porém, sem a Sabedoria ou rejeitando-a e não vejo que seja salutar para os protestantes o resultado desse divórcio. E no Brasil os dados do IBGE do último censo nos informam acerca de existência de algo em torno de 40 milhões de protestantes. 

 

Ao final, meu interesse por espiritualidade se trata mesmo daquele que objetiva elevação e/ou iluminação...

 

Nestes termos, o surreal é, a meu ver - e em verdade - a pretensão absurda de “Pureza”, “Veracidade” e de ser “a única posição espiritual válida” que é repassada pela informação protestante - sendo que sua origem não corrobora tais posições, as quais consistem não em verdades objetivas mas em simples desejos...

 

Livros:    "A nuvem do não saber". Anônimo século XIV -  Edtora Paulus.

           São Boaventura: "Itinerarium mentis in Deum" ("Itinerário da Mente até Deus") em "Obras escolhidas de São Boaventura" (latim-português). Editora Sulina. 

              Santa Teresa de Ávila : "Moradas ou Castelo Interior"; "o Livro da Vida" (em "Santa Teresa de Jesús: Obras completas." , em castelhano. Em português pela Editora Paulus.

              Jacob Boehme: A aurora nascente, trad. Américo Sommerman - Editora Polar.

          Johann  G. Gichtel. A senda do homem celeste (título original "Theosophia practica" - trad. Américo Sommerman. Ed. Polar]

 

Tive também a oportunidade de ter contato com um roshi zen japonês: percebi/senti o domínio dele, a sua mestria na meditação sentada, percebi/senti - sem exageros - que “ali há nirvana”; também com um lama tibetano visitando São Paulo, percebi/senti a sua disciplina e mestria em relação à Vacuidade e ao Mahamudra...

 

Existe também a energia daquilo que se apresenta ou se propõe como espiritualidade autêntica sem sê-lo todavia (se isto não existisse não haveria enganação, nem desvios, nem êrros tampouco o “supermercado espiritual”).

 

Quando alguém tem a felicidade de conviver com pessoas santas e/ou iluminadas, é impossível não ser afetado pela energia que há nessas pessoas (uma vez que a mesma, literalmente, “irradia” delas)... e quanto mais a transmissão?

 

O que quero dizer é que onde há um buddha ou um jivanmukta ou um santo ou um autêntico sheikh sufi a possibilidade dos “filhos” (filhos espirituais) é melhor.

 

E, em relação à escola Ch'an chinesa o que quero dizer é que ela não se tratou apenas de treinamento/instrução esmerada mas também houve:

 

1) o complemento da transmissão através dos patriarcas e mestres ch'an

 

2) e o amparo/sustentação espiritual da sangha (comunidade de praticantes budistas) pela energia búdica corporificada e irradiada a partir dos “pais”, a qual era aberta e benigna à idoneidade dos “filhos”. 

 

O preço de uma tal construção, obviamente, é caríssimo:

 

1) implica que as pessoas envolvidas com espiritualidade devem, num primeiro desenvolvimento, fazer a sua parte (observação doutrinal, responsabilidade/ética, honestidade, etc.) - sejam eles monásticos, sacerdotes ou  laicos; pais/mães de família ou não; dotados da vasta erudição ou não;

 

2) num segundo desenvolvimento - o qual implica o cumprimento do primeiro - ir além, gerar o resultado a nível de elevação/iluminação, informado pelas respectivas escrituras e tratados; irradiar as energias do Amor e da Sabedoria bem como a Luz...

 

Daí a necessidade de, no âmbito da espiritualidade, aqueles com interesse genuíno, sincero se direcionarem a verdadeiros/autênticos gurus, lamas, roshis, sufis, místicos e santos...

 

 

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Shih-tou (700-790 EC - japonês: Sekito) afirmou certo dia no mosteiro:

-Seja qual for a conversa que vós tiverdes sobre aquilo e seja qual for o procedimento que vós tiverdes... nada tem a ver com aquilo...”

 

Wei Yen (745-828 EC - japonês: Yakusan), de Yao-Shan, comentou:

- Mesmo quando vós não falais sobre aquilo e mesmo quando vós não procedeis de qualquer modo... nada tem a ver com aquilo...”

 

Shih-tou: “-Ali não há lugar nem mesmo para a ponta de uma agulha...”

 

Wei-yen: “-Ali é como plantar flores em pedras...”

 

 

 

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Um monge, chamado Seng-k´o [ou Sheng-kwang – conforme a transliteração], sabendo da presença de Bodhidharma nos arredores de Shao-lin, determinou-se a visitá-lo, com vistas a obter ensinamentos. Encontrando-se com Bodhidharma, suplicou fervorosamente ao buddha que o instruísse e iluminasse sobre a verdade do Budismo. Bodhidharma, porém, não atentou para os rogos de Seng-k'o.

 

Seng-k'o não se deixou desanimar nem contrariar, uma vez que era homem de estudos com grau considerável de instrução e com conhecimento sobre grandes espirituais do passado que haviam passado por provações duras e desencorajadoras no decorrer de suas jornadas pessoais, ainda que tendo por finalidade um objetivo superior.

 

Uma tarde esteve em meio à neve, esperando que Bodhidharma notasse sua presença e o convidasse para achegar-se. Caindo rapidamente a neve, a mesma chegava quase à cintura de Seng-k'o.

 

Bodhidharma, verificando a situação, penalizado dirigiu-se a Seng-k'o e disse:

-Que desejas que faças por ti?”

 

Seng-k'o lhe disse:

-"Venho receber tuas inestimáveis instruções; rogo-te que abras a porta da misericórdia e estendas tua mão de salvação a este pobre mortal sofredor...”

 

Todavia, Bodhidharma respondeu a Seng-k'o:

"A incomparável doutrina do Budismo somente pode comprender-se depois de dura disciplina, suportando o que é muito difícil de suportar e praticando o que é muito difícil de praticar. A homens superficiais, envolvidos com uma virtude e uma sabedoria inferiores não lhes é possível compreender a verdade do Budismo. Todo o trabalho resulta em nada"...

 

Ante a exposição de Bodhidharma, Seng-k'o, que portava uma espada, cortou com a mesma o próprio braço esquerdo [*] e apresentou-o diante de Bodhidharma, o qual, entretanto, lhe disse:

 

-O Estado de Buddha não pode ser encontrado através de outra pessoa...”.

 

"-Minha alma não está em paz senhor. Rogo-te que a pacifiques...", tornou Seng-k'o.

 

"Traz-me a tua alma, e a pacificarei...", disse Bodhidharma.

 

 

Seng-k'o deteve-se por um momento e, então, replicou:

"Eu a tenho procurado por muitos anos, sem nenhum efeito!"

 

-Pois, então”, voltou Bodhidharma, “-Tua alma já está pacificada para sempre!”

 

 

Então Bodhidharma disse a Seng-k'o que mudasse seu nome para Hui-k'o [ou Hui K'e - japonês: Eka], o qual, posteriormente, dentre os discípulos chineses de Bodhidharma, veio a ser seu sucessor e, assim, o 2º Patriarca da Escola Ch'an de Budismo chinês.

 

[nota: pelo relato, depreende-se que o braço de Seng K'o já deveria estar congelado. Hui K'o esteve com Bodhidharma por seis anos...].

 

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O sábio Shih-shuang (japonês: Sekiso – 986-1039 EC) disse:

 

Cessa todos os teus anseios;

deixa o mofo crescer em teus lábios;

faça de ti mesmo como um perfeito

pedaço de seda imaculada;

 

Deixa teu pensamento ser a eternidade;

Deixe-te ser como as cinzas mortas, frias e sem vida;

mais uma vez, deixa-te ser como um velho incensório

num santuário abandonado de uma aldeia!

 

Pondo tua fé somente nisto,

disciplina-te a ti mesmo, de acordo com ela;

Deixe teu corpo e mente serem transformados

num objeto inanimado da natureza

como uma pedra ou um pedaço de madeira;

 

Quando um estado de perfeita imobilidade

e inconsciência é obtido

todos os sinais de vida partirão

e também todos os vestígios da limitação desaparecerão.

 

Nem uma única ideia perturbará tua consciência,

quando... eis! todo de súbito

tu perceberá uma luz abundante

em meio a um imensa alegria.

 

É como a vinda, do outro lado,

de uma luz na escuridão espessa.

 

É como receber um tesouro na pobreza.

 

Os quatro elementos e os cinco agregados

não são mais sentidos como fardo pesados;

tão leve, tão fácil, tão livre tu estás.

 

Tua existência foi liberada de todas as limitações;

 

Tu te tornaste aberto, claro e transparente.

Tu ganhaste uma visão interior iluminada

sobre a natureza das coisas,

que agora aparecem para ti

como flores fantásticas

sem nenhuma realidade concreta.

 

Aqui é manifestado o ser sem sofisticações,

o qual é a face original do teu ser;

aqui é mostrada em toda a sua nudez

a bela paisagem da tua terra natal.

 

Agora há apenas uma passagem aberta

e interiormente desobstruída.

 

Isto é assim

quando tu te entregares inteiramente:

teu corpo, tua vida e tudo o que pertence

para o teu 'eu' mais íntimo.

 

Isto é onde tu ganhas paz, tranquilidade, repouso

e um deleite inexprimível.

 

Todos os sutras e shastras

não são mais que a comunicação deste fato;

todos os sábios, tanto antigos como modernos,

têm esgotado sua criatividade e imaginação

com nenhum outro propósito

senão o de apontar o caminho para este fim.

 

É como abrir a porta para um tesouro;

 

Quando a entrada desta porta é obtida,

cada objeto à tua vista é teu,

cada oportunidade que se apresenta 

está disponível para teu uso;

 

Pois não são todos elas, embora inumeráveis,

bens que podem ser obtidos

dentro do teu próprio ser original?

 

Todos os tesouros que há

apenas esperam que tu os descubras e utilizes.

 

Isto é o que se entende por

'Uma vez ganho, eternamente ganho, até o fim dos tempos.'

 

Todavia, realmente, nada tem sido ganho;

o que obtiveste não é nenhum ganho,

e, no entanto, há algo verdadeiramente ganho no presente."

 

[nota: o relato de Shih Shuang dá breve descrição do processo interior de uma pessoa iluminada; o método é o tradicional, através da meditação/dhyana, de certa forma já aparentado com a técnica zazen...] 

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Foi no sétimo ano de Hsien T'ung (867 EC)

que iniciei o estudo do Tao.

 

Por toda a parte, aonde ia

eu encontrava palavras

e não as entendia

 

Um fragmento de dúvida dentro do espírito

me era como um cesto de vime.

 

Durante três anos, morando nos bosques, junto do regato

eu era inteiramente infeliz

quando, inesperadamente,

por sorte, eu encontrei o Dharmaraja [“rei do dharma” - o mestre ch'an]

sentado no tapete.

 

Aproximei-me dele, ansiosamente,

pedindo-lhe para dissolver minhas dúvidas.

 

 

O mestre, que estava sentado

absorto em profunda meditação

levantou-se do tapete

 

Depois, descobrindo o braço,

deu-me um murro no peito.

 

Isto fez, de repente, explodir em pedaços

meu fragmento de dúvida.

 

Erguendo o cabeça

percebi, pela primeira vez,

que o sol era redondo.

 

Desde então tenho sido

o homem mais feliz do mundo

sem temores nem preocupações

 

Dia após dia, passo o meu tempo

do modo mais jovial

 

Somente eu percebo meu íntimo

repleto de um sentido de plenitude e satisfação.

 

Já não saio mais de um lado para o outro

com minha tigela mendigando comida...

 

Lohan Hoshung [japonês: Rakan Osho] é um budista errante do séc. IX EC, mencionado em “A Transmissão da Lâmpada” de Tao Yuan (1002 EC)

 

[nota: Lohan Hoshung chegou ao nível em que as palavras não eram mais suficientes nem poderiam mais iludir ou desviar... um murro no peito e satori? aí é que entra a mestria dos buddhas... para ele, para mim sim... não, talvez, para outra pessoa - ainda que na mesma situação...]

 

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Bhakti Marga - Via do Amor

03/10/2014 13:35

Bhakti marga.

 

Considero todas as grandes religiões do mundo – budismo, cristianismo, islamismo e comunismo – não só falsas, como prejudiciais...”, Bertrand Russell -”Por que não sou cristão”...

 

A questão da verdade de uma religião é uma coisa, mas a questão de sua utilidade é outra, diferente. Estou tão firmemente persuadido de que as religiões são nocivas, como o estou de que são falsas.”... Bertrand Russell -”Por que não sou cristão”...

 

[nota: Bertrand Russell e outros vêem o Comunismo como uma “religião” e não como uma via de índole ideológica. A meu ver isto se trata de um exagero – pois há uma redução da religião propriamente. Se as tradições espirituais possuem alguma veracidade e se o termo “religião” quer se referir a seu significado tradicional e original de “religio” - a não à multidão de seitas e desvios de diversas índoles, tão comuns no Ocidente -, então o Comunismo trata-se de um sucedâneo - e de um substitutivo cultural - da religião, para aqueles que a abandonaram, que preferiranm lhe dar as costas (o que não quer dizer que, apesar da oficialidade do Ateísmo no âmbito Comunista/Socialista, não possa haver comunistas/socialistas oriundos da religião - desistentes - que ainda possuam alguma referência, algum fundo de crença ou fé - vide a propagação exitosa (cerca de 100 milhões de adeptos), até sua proscrição pelo governo, da seita Fa Lun Gong na China comunista, cujo corpo doutrinal abriga elementos do Confucionismo, do Taoísmo e do Budismo... afinal somos seres humanos)... ]

 

Religião como “religio” é algo que abarca a possibilidade de reintegração não apenas para uma elite metafísica, mas que também fornece possibilidade autêntica às camadas médias da população bem como, ainda, ao Povo Simples/Povão – o que não pode ser esperado de seitas e desvios, os quais acabam se constituindo, via de regra, em terapia ocupacional e, nos casos de desvios graves com identificação exagerada, em auto-engano... 

 

Não há como captar nem restringir a religião cujo significado é  “religio” - e cujo objetivo é o “religare” - num sistema puramente lógico; nem há como aplicar a medida lógica a muitos dos ensinamentos de Cristo em particular - e das tradições espirituais num sentido geral -, onde alguns desses ensinamentos se tratam, na verdade, de parábolas e imagens...  

 

 

Se as religiões são falsas, igualmente o é a experiência religiosa. 

 

A confirmação, porém, da validade e do valor da “religio” é justamente uma experiência religiosa pessoal sadia  (mesmo que se trate, nalguns casos que não são a regra ou maioria, da "loucura saudável" - em contraposição à "loucura mórbida/doentia" - como por exemplo um Drukpa Kunley: se devidamente compreendido e não desviado de seu contexto verdadeiro do Tantra budista, Kunley trata-se de uma "loucura saudável" no âmbito do Vajrayana - interpretações espúrias, sem validade no Vajrayana, porém, comprometem a apreciação da "loucura divina" que em há em Kunley) –. A excperiência religiosa sadia sempre tem se dado no âmbito das grandes tradições espirituais, numa regularidade ortodoxa. 

 

Como já observei neste blog, religião é êxito e fracasso - e as vezes o fracasso não é apenas pessoal mas tem desenvolvimentos de continuidade como no norte da Índia do Buddha Shakyamuni – ver Digha Nikaya capítulo 2 ("Os seis mestres do erro" - todos respeitados, com muitos discípulos, hábeis argumentadores e reverenciados)...  

 

A Luz, entretanto, nunca veio da miséria nem do desvio. 

 

E a religião como “religio”, objetivando o “religare”, nunca nos vendeu a utopia de um "mundo perfeito" - basta olhar no Judaísmo, por exemplo, o episódio do adultério do rei Davi com a mulher Bate-Seba (Bat-Sheva - esposa de um de seus oficiais), o qual culminou, ainda, num homicídio (Livro II de Samuel, cap.11-12) -, mas o valor e a necessidade da responsabilidade pessoal, da observação doutrinal e da regularidade... 

 

A finalidade da religião enquanto “religio” é o descobrimento interior/espiritual - na medida da possibilidade, compreensão e engajamento de cada pessoa.  

 

Recuar da  "religio" - a qual não consiste em mera "terapia ocupacional" - não significa tê-la ultrapassado ou transcendido, mas tão somente ter lhe dado as costas. Ultrapassar ou transcender propriamente a  "religio"  é por dentro e por cima - alcançando uma elevação ou iluminação - , o que é muitíssimo mais nobre, honrado e honesto - porém mais trabalhoso - do que meramente dar-lhe as costas. Quem transcendeu a "religio" alcançou o objetivo...

 

 

A nível de posições pessoais, a necessidade interior das pessoas é diferente e assim também a vocação humana. não repasso metafísica tradicional  - o Buddhadharma, por exemplo - para quem precisa ou está em paz com o dualismo ou não tem recurso interior para alcançar a metafísica tradicional, "funcionar" adequadamente  com a sua formulação; e o que não é mais necessário  - ou não tão necessário - para mim pode ser, entretanto, não apenas necessário mas importante, mesmo valioso para outrem; por outro lado, nem sempre estamos em direções que nunca se encontram: a mesma poesia inglesa que Bertrand Russell aprecia muitos cristãos e teístas diversos também apreciam – Tennyson, Wordsworth,William Blake, etc...

 

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A conversation with a God (Uma conversação com um Deus)

 

There's so much to be afraid of

and who could ever take away this fear?

and every step I make

no progress seems to ease the pain,

I shall no longer watch the audience pray.

 

 Há tanta coisa a temer

 e quem jamais poderia afastar este medo?

 

 E a cada passo que eu dou

 nenhum progresso parece aliviar a dor,

 Já não vou assistir a audiência rezar.

 

Is it not strange that pain is easier to understand

compared to what we dream?

Is it not strange that suffering

feels just like a lonely friend

and silence is our shield?

 

 

Não é estranho que a dor é mais fácil de entender

comparado com o que nós sonhamos?

Não é estranho que o sofrimento

é como um amigo solitário

e o silêncio é nosso escudo?

 

 

There's no such angel looking down on you no

it's gonna be okay-

there's no rainbow without rain.

There is no pixie taking care of you

it's all just fairy tales,

there's no rainbow without rain.

 

Não há o tal anjo olhando-te lá de cima, não

isto é certo...

Não há arco-íris sem chuva.

Não há duende cuidando de ti

tudo isto é apenas conto de fadas,

Não há arco-íris sem chuva...

 

A conversation with God - banda Petrograd (Luxemburgo).

 

[nota: eu era um adolescente – anos 90 – quando me chegou às mãos a tradução deste texto – vindo de europeus socialistas. Recebi a dúvida deles. Na época, melhorou a minha pesquisa... no hoje, não afirmo que aquele anjo não exista: diria que ele necessita de um certo posicionamento, de uma certa postura de nossa parte; diria que ele não tem como agir, não tem como "descer" de onde ele está sem a observação de alguns requisitos por parte da própria pessoa, sem uma "plataforma" adequada de nossa parte que viabilize sua interação com uma existência individual - isto implica, por exemplo, a melhoria dos nossos relatórios pessoais... Como observado pelos luxemburguenses da Petrograd: "Não há arco-íris sem chuva"...]

 

 

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Os textos que se seguirão são todos, independentemente da filiação tradicional de seus autores, oriundos ou correlacionados com a Bhakti marga (Via do Amor). É preciso salientar que no âmbito das tradições espirituais ortodoxas, o que podemos designar como Bhakti marga, não consiste ou se restringe ao sentimento devocional per si ou ainda à experiência mística sem penetração interior/espiritual, mas a um desenvolvimento que se realiza através de um itinerário. A Bhakti Marga se complementa, aperfeiçoa e aquilata com a Jnana Marga (Via do Conhecimento). Se tomarmos para verificação o Protestantismo - na sua idoneidade e excluindo-se resultados questionáveis ou ainda condenáveis do Protestantismo - , nele é totalmente possível falar de uma Bhakti marga em relação a Cristo -“um relacionamento pessoal com Cristo” ou ainda a "Via Mística com Jesus". Todavia, os protestantes, em decorrência mesmo da sua origem, não têm itinerário, sendo a sua Bhakti marga parcial (*), carente - na sua idoneidade - não de resultado nem de consistência, mas de aprofundamento e penetração espiritual.

 

[nota: Não tenho a pretensão de perturbar quem está "em paz com Jesus". Os protestantes não têm meios doutrinais para ir mais longe, não têm upaya... precisariam romper não com Jesus, mas com premissas de sua origem que não tem nada de espiritual, pois que são meramente humanas ou ainda mundanas (o que é improvável que ocorra, até porque isto significaria admitir que tais premissas são falsas, o que estragaria a "festa" de algumas pessoas, embora fosse um benefício efetivo para os fiéis protestantes; diante da impossibilidade, continuam os fantasmas a assombrar o imaginário daqueles que circulam nos meios protestantes: "todos os não-protestantes são do Diabo" ou "estão na mão dele"... e "vão para o inferno"... "todas as pessoas que preferem as tradições espirituais orientais são New Age..." , e por aí vai...)... Um amigo protestante, ao ouvir os termos bhakti, jnana e prajna – embora entendendo minha explanação - me explica que “não é indiano”... porém, mesmo o termo itinerário lhes soa estranho sem a sua explicação. 

Na Índia é explicado que a necessidade do guru decorre não apenas da transmissão autêntica ininterrupta das linhagens/famílias espirituais mas, também, quanto ao papel de "pai" - ou "mãe" - espiritual no qual a presença do guru se dá em decorrência justamente de que o mesmo (a) já chegou lá e conhece as características, os percalços, as sinuosidades e as dificuldades do caminho ... 

O que não é diferente no Ocidente... 

No âmbito católico a transmissão se foca nos sacramentos, todavia a questão da admissão em uma ordem, do itinerário e da direção espiritual permanecem, sendo que, em relação à Via Unitiva, São Boaventura, Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz, etc, já chegaram lá e nos deixaram registrados, em suas obras, seus respectivos itinerários. Infelizmente, cumpre salientar que o Concílio Vaticano II, alterando a liturgia, comprometeu a tradição cristã católica desde dentro; fez o serviço que os opositores da Igreja não conseguiam atingir e trouxe a Igreja para o nível do Protestantismo - a Via Mística - , sem ter todavia o Catolicismo a mesma consistência dos protestantes em relação à religiosidade bíblica (a inteligência e visão espiritual da Igreja ultrapassa de longe a simples religiosidade bíbiica, porém, sem a liturgia tradicional rompeu-se o nexo de continuidade com a Igreja primitiva - e, portanto, o nexo espiritual - destarte, embora seja duro expressar-se nestes termos com alguns, o que é colocado ao redor da Eucaristia é mera invenção humana). 

Há alguns que alegam que a "fábrica de santos" (a Igreja)... "reduziu a produção"... "entrou em concordata" ou mesmo "colapsou"... "faliu"...; entretanto, o depósito espiritual vinculado ao Catolicismo permanece... apenas (e miseravelmente) não é acessado. 

 

O problema com a tradição cristã católica não é, em absoluto, externo a ela - não é a divergência entre Clero e Maçonaria/Esoterismo Ocidental (nem seu impacto) nem o Protestantismo nem a chegada no Ocidente das religiões orientais -, é um problema interno e espiritual e que afeta/abala todos os setores da Igreja. 

 

O Catolicismo está sobrevivendo hoje de quanto é vinculado à Bem Aventurada Virgem na Via do Amor/Devoção- aqueles que rezam o terço individualmente, as paróquias que têm grupos de oração e onde o terço é rezado antes do início das missas, bem como,  também em reuniões de oração, as paróquias com grupos de visita - especialmente aos enfermos... 

 

Eu cheguei na Igreja apenas no fim, em 1994. Falecido o padre Joaquim da paróquia que eu frequentava e participava da missa tradicional, aqueles que o sucederam cumpriram a determinação do Concílio Vaticano II de migrar as missas tradicionais para a Nova Missa, na medida em que os padres mais velhos falecessem. Nunca mais senti ou percebi o que eu sentia e percebia na missa tradicional com o velho Joaquim; percebi um esvaziamento espiritual perturbador com a migração. Me perguntava se outras pessoas não sentiam/percebiam estar "faltando alguma coisa"... Para meu azar, frei Clemente Muller, o.f.m., um dos cristãos mais verdadeiros que já vi pessoalmente, - realmente um "filho" de Santo Antonio, homem santo e místico -  faleceu prematuramente  aos 52 anos, aumentando minha dor na Igreja. Não sou sacerdote nem especialista em liturgia como o padre Joaquim, mas, na minha busca pelo resultado que eu percebo podemos atingir com a Igreja, eis que o resultado do aggiornamento imposto à Igreja pelo Concílio Vaticano II, desprezando e enquadrando como exageradas as observações do Concílio de Trento sobre a  missa, foi o empobrecimento/esvaziamento espiritual da Igreja, afetando todos os seus setores  e o destino da tradição cristã... A quase totalidade dos opositores externos da Igreja não conseguiria este resultado - só uma infiltração interna, com aval e permissão do Clero... não consigo achar grotesco os muitos desvios que podemos verificar entre os cristãos - para o Protestantismo, para o Espiritismo, para  o Espiritualismo, etc...] 

 

 

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O Zéfiro [vento da primavera] embriaga-nos

com o seu hálito...

 

É a festa das rosas!

 

Onde está o doce rouxinol?

 

Pede-lhe que nos cante uma canção...

 

 

-A tua beleza é um jardim de flores

e o poeta, de cantos tão doces,

é o teu rouxinol...”

 

 

Coração triste

não te queixes da separação...

 

Neste mundo existem, lado a lado,

o prazer e a dor

como o espinho e a rosa...

 

Eu que outrora fui um homem atilado e sutil

hoje não passo de um pobre

cuja razão vacila...

 

Em meu desespero, rouxinol do amor,

arranco as penas e quebro as asas

para lançá-las ao vento...

 

Mas não posso libertar-me

desta paixão indomável!

 

Brisas cheirosas,

ide para minha Amada...

brincai nas tranças de seus cabelos...

trazei-me de volta o perfume dela....

 

Hafiz (Shamz Ud Din Mohammed - 1310-1390 Shiraz - Pérsia/Iran)

 

[nota: este não é propriamente um gazel composto por Hafiz. Há quatro gazéis de Hafiz aqui.  Ao terminar a leitura dos “Gazéis de Hafiz”, estes versos amalgamados dos Gazéis vieram espontaneamente à minha lembrança... então anotei estes trechos desta forma, conservando esta redação. São João da Cruz, em seus cânticos, nos fala e direciona ao Bem-Amado. Em Hafiz, a “Bem-Amada” é a nossa Amiga...]

 

 

 

"Delicado é o caminho do amor...

nele não há perguntas nem respostas...

 

Somente umas poucas almas puras

sabem de seu verdadeiro deleite...

 

 

Onde há sabedoria pode haver avareza?

Onde há sabedoria a avareza não pode perdurar...

 

Onde há luxúria pode haver amor?

Onde há amor a luxúria não tem lugar...

 

Em minha vida cativa

encontrei a liberdade...

 

Rompi os grilhões de toda a mesquinhez...

 

E mais do que qualquer coisa

guardo comigo amor

que me permite viver neste mundo

uma vida sem limitações..."

 

(Kabir - 1440-1518 -Índia)

 

[nota: era 1996, quando terminei de ler os “100 Poemas de Kabir” selecionados por Rabindranth Tagore - edição brasileira -. Fui organizar as minhas anotações do livro. O cântico acima não é um texto fake, corresponde, na verdade, a trechos de três dos cânticos de Kabir. Mas eles vieram desta forma para a minha memória (mais um amálgama do Kaliputra). Como com Hafiz, preservei esta redação tal como está...]

 

 

 

"Onde te escondeste, ó Bem Amado?

E por que no sofrimento me deixaste?

 

 

Havendo-me ferido

fugiste como cervo...

 

Chamando-te,

atrás de Ti corri

 

Mas longe Tu já estavas..."

 

São João da Cruz (1542-1591 Espanha).

 

[nota: Cântico espiritual de São João da Cruz. Vale a pena mencionar que, neste cântico, São João Cruz, - investigado, autuado e preso pela Inquisição Espanhola -, encontrava-se encarcerado numa masmorra, a pão, água e uma sardinha por dia...]

 

Deus,

dissolveu minha mente

minha separação.

 

Não posso descrever

minha intimidade com Ele.

 

Quão dependente é a vida do corpo

de água, comida e ar...

 

 

Eu disse a Deus:

-Eu sempre serei … a menos que Tu deixes de ser!”'

 

 

E o meu Amado me respondeu:

-E eu cessaria de ser se tu morresses...”

 

 

Eu cessaria de ser”.  Santa Tereza de Ávila (1515-1582 Espanha)

 

[nota: nestes versos temos o resultado da iluminação de Santa Tereza... Não há mais morte... nem tempo... tampouco separação...]

 

 

Cristo não tem nenhum corpo agora

além do teu...
 

Não tem mãos, mas as tuas...
 

Nem pés exceto os teus...


Teus são os olhos através dos quais

se pode olhar

para a compaixão de Cristo pelo mundo...


Tuas são as mãos com as quais

Ele abençoa os homens...

 

 

Cristo não tem corpo”. Santa Tereza de Ávila (1515-1582 Espanha).

 

 

 

 

Quando minha mente estava limpa de impurezas,

 

Como um espelho de sua poeira e sujeira,

 

Eu reconheci Bhairava [Shiva] em mim:
 
 
Quando eu O vi habitando em mim,
 
Eu percebi que Ele era tudo
 
e eu não era nada...
 
 
 
“Eu era nada”. Lalleshvari – yogini/profetisa do Kashmir/Índia (1320-1392)
 

 

 

 

 

Eu poderia dispersar as nuvens do Sul,

 

Eu poderia drenar todo a água do mar,

 

Eu poderia curar os doentes incuráveis,

 

Mas eu não posso convencer um tolo...

 

 

Não posso convencer um tolo” - Lalleshvari – yogini/profetisa do Kashmir (1320-1392).

 

 

 

Mãe,

 

Dinanath [Krishna] o esposo dos humildes

me tem feito sua noiva...

 

56 milhões de devas [seres celestiais] vieram no séquito de Krishna,

o noivo.

 

Sonhei com uma grinalda de folhas de manga...

 

Sonhei que Harí [Krishna] sustinha minha mão

e juntos dançávamos ao redor da fogueira...

 

Sonhei uma felicidade imortal...

 

Mira ganhou Girdhar [Krishna]

seu amor eterno...

 

Princesa Mira Bai (1498-1547 - Índia).

 

[nota: a Princesa Mira Bai é a grande santa e mística hindú do século XVI, devota de Krishna, a qual, iniciando sua jornada mística mediante profunda devoção, chegou - sem dispensar a instrução de um guru - a um alto grau de realização espiritual, tendo sido absorvida por Krishna. Este bhajan ou canção de amor místico retrata uma das experiências místicas da santa com Krishna. ]

 

1. Religiões comparadas: Budismo e Sufismo.

30/08/2014 14:37

 

1. RELIGIÕES COMPARADAS: (I) Budismo e Sufismo.

 

Religiões comparadas aqui neste blog se restringirá a aproximações mediante leituras notáveis e/ou significativas, - e sempre respeitando as diferenças - entre as grandes tradições espirituais, abordando preferencialmente o que pode ser constatado através das demonstrações apontadas e, se possível, evitando longas digressões bem como o uso desnecessário de erudição. A vasta erudição, porém, – a qual eu, de minha parte, não apenas não desprezo mas procuro não negligenciar  - não nos será muito útil sem uma apreensão das essências dos ensinamentos, isto é: sem a espiritualidade objetiva e efetiva.

 

Pelo momento, ao menos neste post, farei apenas uma breve, curta apresentação sobre o Sufismo, tratando-se realmente apenas de uma lacônica introdução.

 

O Sufismo – se por Sufismo queremos nos referir à tradição espiritual a que pertenceram/pertencem Ibn Arabi, Rumi, Al Junnaid, Al Hallaj, Dul Nun, Bayazid, Rabbya, Attar, Kabir e tantos outros iluminados - é uma posição metafísica tradicional vinculada ao Islam, não havendo falar em “Sufismo sem Islam”, até porque o Sufismo está organizado em linhagens/famílias espirituais, transmissão espiritual regular de mestre a discípulo – de “pai” a “filho” - além da Baraka (o depósito espiritual, em relação ao qual a transmissão tem legitimidade e efetividade). 

 

O “Sufismo sem Islam” terá alguns ensinamentos e técnicas que os sufis tradicionais também usam mas, irremediavelmente, tal apropriação de ensinamentos e técnicas terá a sua aplicação sem a Baraka (depósito espiritual cuja conexão pelas tariqas/confrarias sufis faculta a transmissão autêntica) pois desconectado de qualquer linhagem (ou ainda conectado ao que consiste em desvio das linhagens autênticas) - imaginem, os budistas vajrayana, a prática das sadhanas sem iniciação, sem lama/guru e sem conexão com nenhuma linhagem espiritual do Buddhadharma (vamos todos agora ler os Tantras - eu, por exemplo, que sou apenas um upasaka/budista leigo estou com o Mahakala Tantra aqui na mesa - e sair praticando-os, despreocupada e negligentemente, sem transmissão, sem orientação de um professor qualificado, sem o suporte de um linhagem espiritual autêntica e sem empoderamento; então, quando eu terminar o meu estudo do Mahakala Tantra já posso sair oferecendo iniciações! E abram espaço para o “lama" Kaliputra...) - obviamente que, acerca do “Sufismo sem Islam”, na sua tentativa de percorrer a mesma rota dos sufis tradicionais, os resultados não podem ser (e, na verdade, não são) os mesmos, mas reduzidos (quando não ineficazes), desviados e mesmo desastrosos. [*]

 

[nota: pertinente aqui a observação de Rene Guénon, o qual tem aderido integralmente ao Islam e ao Sufismo- "No esoterismo islâmico [i.e. no Sufismo], diz-se que aquele que se apresenta a uma certa 'porta', sem ter chegado a ela por uma via normal e legítima, vê essa porta fechar-se diante dele e é obrigado a voltar para trás, não, entretanto, como um simples profano, o que é doravante impossível, mas como “sâher” (feiticeiro ou mágico que opera no domínio das possibilidades sutis de ordem inferior). O último grau de hierarquia 'contra-iniciática' é ocupado pelos chamados 'santos de Satã' (awl Tyaesh-Shaytán), que são de certo modo o inverso dos verdadeiros santos (awl Tyaer-Rahmin), e que manifestam também a expressão mais completa possível da 'espiritualidade às avessas'...]

 

O Islam moderno tem sofrido não apenas com a infiltração (e demência) do terrorismo/extremismo, mas também, nalguns setores e em relação a alguns expositores islâmicos, com uma visão literária e fundamentalista do Al Corão (neste aspecto, bastante similar tal maneira de interpretar o Al Corão àquela efetuada com a Bíblia pelo fundamentalismo cristão protestante) da qual o terrorismo/extremismo procura se servir; tal posição não corresponde à totalidade do Islam, onde a maior parte dos muçulmanos ainda são vinculados a alguma tariqa (confraria sufi) e o Sufismo é – continua sendo - o caminho do Amor/Conhecimento...

 

                                                       ________________

 

BUDISMO CH'AN

The mind-moon is solitary and perfect:

The light swallows the ten-thousand things.

It is not that the light illuminates objects,

Nor are objects in existence.

Both light and objects are gone,

And what is it that remains?

 

A Lua do espírito (Lua da Mente) é solitária e perfeita.

A luz absorve as dez mil coisas

Não é que a luz ilumine objetos

nem há objetos em existência.

Tanto a luz como os objetos se foram...

E o que resta?

 

Pan Shan Baoji, 720-814 EC, citado por Suzuki em “Mística: cristã e budista”, Capítulo 1 – Página 41 da versão brasileira)

 

 


SUFISMO

 

Ah, Moon of my Delight who know'st no wane,
The Moon of Heav'n is rising once again:
How oft hereafter rising shall she look
Through this same Garden after me? - in vain!

 

Ó Lua de meu Deleite que não conhece minguante

A lua no céu se eleva mais uma vez...

Doravante, quantas vezes ao elevar-se

ela não me procurará neste mesmo jardim? – em vão!

 

Rubayát de Omar Kháyyám (LXXXIX) - tradução para a língua inglesa de Edward Fitzgerald.

 

 

 

 

A “Lua de meu Deleite”  trata-se de uma realização interior/espiritual, metafísica – como a “Lua da Mente” (“Mind-Moon” do original inglês)/”Lua do Espírito” budista [*] -, acerca da qual a mesma “não conhece minguante”, ou seja não está sujeita ao domínio de nascimento-e-morte, tratando-se a mesma dA Luz.

 

Atentemos que “a lua no céu”,  a qual “se eleva mais uma vez”  não é outra que não a Lua que nós vemos no céu material/firmamento, em seu curso de 28 dias [**].

 

Do ponto de vista dos sufis e do Buddhadharma, depreende-se do rubaiá de Omar Kháyyám que uma ascese interior/espiritual foi percorrida e devidamente cumprida.

 

Para nosso amigo aquela “Lua de meu Deleite” - a Luz - é uma realidade formada, acabada, um tesouro interior devidamente atualizado, atingido.

 

A Lua do firmamento/céu material – em termos budistas, indicando aquilo que é temporal e está sujeito a nascimento e morte (os seis reinos do samsara) – serve, no rubaiá, de contraste, reforçando o percebimento da experiência de Omar Kháyyám:

 

Doravante, quantas vezes, ao elevar-se,

ela não me procurará neste mesmo jardim?

Em vão!”...

 

Eis que nosso amigo não volta mais...

 

Segundo os sufis “alcançou o Amigo”...

 

Para nós budistas, em conformidade com o rubaiá, realizou o objetivo, a “Lua da Mente”/”Lua do Espírito”... a qual "é solitária e perfeita", como indicado por  Pan-Shan - o que é possível sentir/entrever também em Omar Kháyyám, . 

 

Cumpre informar que "as dez mil coisas" são todos os resultados da manifestação cósmica, da Realidade Empírica.

 

"Não é que a luz ilumine objetos... nem há objetos em existência."... Não há separação sujeito-objeto tampouco dualidade ou fragmentação. 

 

"Tanto a luz como os objetos se foram... E o que resta?"... Enquanto elaboração verbal, a identidade samsara/nirvana... Por certo que Pan-Shan não nos está remetendo a uma elaboração verbal...

  

   

[Nota: (*) Budismo e Shaivismo se reportam em suas doutrinas a duas formas máximas, principais de experiência iluminativa: o Nirvana e a Clara Luz (ou ainda “Luz natural” )... A experiência da “Lua da Mente” é uma exposição Mahayana equivalente àquela da “Clara Luz” do Vajrayana...]

 

[Nota (**): Embora Fitzgerald tenha optado pela palavra “Heaven” a qual em inglês corresponde a “Céu espiritual”/Empíreo (usada também para  significar “Deus”) ao invés de “Sky”, que propriamente e melhor traduz “céu material”/firmamento, isto é algo que não chega a comprometer esta exposição porque, é necessário lembrar, nem Fitzgerald (Irlanda) nem Franz Toussaint (França) – tampouco o brasileiro Octávio Tarquínio de Souza (um dos brasileiros a reescrever os Rubáyát de Kháyyám) que fez, segundo ele mesmo, uma versão livre a partir daquela de Franz Toussaint (prestigiada - e com razão, haja vista as belas imagens poéticas - entre os europeus) - tinham compreensão do fundo sufi no qual estão inseridos os temas do Rubáiyát. Isto vale também para o admirável, notável católico irlandês G. K. Chesterton. Vale também para ateus e libertinos que apreciam os Rubáiyát de Omar Kháyyám apenas do ponto de vista literário e visualizando somente o que pode ser considerado agnosticismo, hedonismo e ateísmo (portanto Omar Kháyyám seria um herético). 

 

Termos como o “vinho” (a influência derramada do depósito espiritual), a “taverna” (confraria sufi) e “Sáki” (a escanção/sommelier, “a que serve a bebida na taverna”, a qual é, por isto, também “a Amiga”) têm caráter simbólico.

 

Nesse caso, como uma amiga muçulmana tem observado, os Rubáiyát  de Omar Kháyyám - muito lidos no Ocidente - “têm sido compreendidos na sua tradução literal porém não no seu espírito”.  Sem a compreensão dos elementos sufís realmente fica difícil, através de algumas traduções ocidentais, chegar ao verdadeiro Omar Kháyyám (o sufi engajado na via); e, com efeito, o Kháyyám “hedonista”, “agnóstico” e “alcoólotra”, como observado pelo erudito Carl Henry Andrew Bjerregaard, pode ser, deveras, creditado à traduções como a de Fitzgerald e análogas. De minha parte, a minha leitura ainda consegue, não apenas com Fitzgerald mas mesmo em versões um pouco mais ácidas/corrosivas e, as vezes, nalguns rubaiá bastante desviadas como a de Octávio Tarquínio de Souza, detectar, entre um rubaiá e outro, o itinerário sufi ali implícito.

 

Omar Kháyyám (Omar Iben Ibrahim El Khayami) nasceu na cidade de Nishapour, Pérsia – atualmente Iran – cerca de 1040 (outro estudo situa seu nascimento em cerca 1062) e foi matemático (estudioso de álgebra, geometria, mecânica, mineralogia, etc.), astrônomo (foi responsável pelo observatório astronômico de Merv), reformulador do calendário persa, divulgador da filosofia de Ibn Sina (Avicenna) e favorável ao estudo da sabedoria grega bem como poeta; Kháyyám sofreu alguma perseguição, em seus dias, pelos Ullemás (Doutores da Lei Corânica), tendo que se reportar aos mesmos - e se defender - de acusações de ateísmo e de insistir na manutenção da sabedoria da cultura grega nas ciências – ainda que conjuntamente com os valores islâmicos. Omar Kháyyám tem escrito um tratado chamado “al Khubat al gharrá” (O sermão esplêndido), em conformidade com o ponto de vista islâmico ortodoxo, sobre o louvor a Deus, concordando com Avicenna sobre a Unidade Divina (não li este livro, menciono-o aqui apenas em caráter informativo)...

 

Ainda à guisa de informação, os Rubáiyát são um termo que se refere ao plural de “rubaiá”, o qual, por sua vez, trata-se de um poema em quatro linhas (quadra ou quarteto) sendo os versos com métrica e rimados na primera, segunda e quarta linha. Os “Rubáiyát de Omar Kháyyám”  foram descobertos em manuscrito no ano de 1460 por Bodler – manuscrito de Bodler/universidade de Oxford, traduzido por Fitzgerald com ajuda de um amigo - e há um manuscrito original na Universidade de Cambridge...]

 

 

 

[Nota (**): Embora Fitzgerald tenha optado pela palavra “Heaven” a qual em inglês corresponde a “Céu espiritual”/Empíreo (usada também para  significar “Deus”) ao invés de “Sky”, que propriamente e melhor traduz “céu material”/firmamento, isto é algo que não chega a comprometer esta exposição porque, é necessário lembrar, nem Fitzgerald (Irlanda) nem Franz Toussaint (França) – tampouco o brasileiro Octávio Tarquínio de Souza (um dos brasileiros a reescrever os Rubáyát de Kháyyám) que fez, segundo ele mesmo, uma versão livre a partir daquela de Franz Toussaint (prestigiada - e com razão, haja vista as belas imagens poéticas - entre os europeus) - tinham compreensão do fundo sufi no qual estão inseridos os temas do Rubáiyát. Isto vale também para o admirável, notável católico irlandês G. K. Chesterton. Vale também para ateus e libertinos que apreciam os Rubáiyát de Omar Kháyyám apenas do ponto de vista literário e visualizando somente o que pode ser considerado agnosticismo, hedonismo e ateísmo (portanto Omar Kháyyám seria um herético). 
 
Termos como o “vinho” (a influência derramada do depósito espiritual), a “taverna” (confraria sufi) e “Sáki” (a escanção/sommelier, “a que serve a bebida na taverna”, a qual é, por isto, também “a Amiga”) têm caráter simbólico.
 
Nesse caso, como uma amiga muçulmana tem observado, os Rubáiyát  de Omar Kháyyám - muito lidos no Ocidente - “têm sido compreendidos na sua tradução literal porém não no seu espírito”.  Sem a compreensão dos elementos sufís realmente fica difícil, através de algumas traduções ocidentais, chegar ao verdadeiro Omar Kháyyám (o sufi engajado na via); e, com efeito, o Kháyyám “hedonista”, “agnóstico” e “alcoólotra”, como observado pelo erudito Carl Henry Andrew Bjerregaard, pode ser, deveras, creditado à traduções como a de Fitzgerald e análogas. De minha parte, a minha leitura ainda consegue, não apenas com Fitzgerald mas mesmo em versões um pouco mais ácidas/corrosivas e, as vezes, nalguns rubaiá bastante desviadas como a de Octávio Tarquínio de Souza, detectar, entre um rubaiá e outro, o itinerário sufi ali implícito.
 
Omar Kháyyám (Omar Iben Ibrahim El Khayami) nasceu na cidade de Nishapour, Pérsia – atualmente Iran – cerca de 1040 (outro estudo situa seu nascimento em cerca 1062) e foi matemático (estudioso de álgebra, geometria, mecânica, mineralogia, etc.), astrônomo (foi responsável pelo observatório astronômico de Merv), reformulador do calendário persa, divulgador da filosofia de Ibn Sina (Avicenna) e favorável ao estudo da sabedoria grega bem como poeta; Kháyyám sofreu alguma perseguição, em seus dias, pelos Ullemás (Doutores da Lei Corânica), tendo que se reportar aos mesmos - e se defender - de acusações de ateísmo e de insistir na manutenção da sabedoria da cultura grega nas ciências – ainda que conjuntamente com os valores islâmicos. Omar Kháyyám tem escrito um tratado chamado “al Khubat al gharrá” (O sermão esplêndido), em conformidade com o ponto de vista islâmico ortodoxo, sobre o louvor a Deus, concordando com Avicenna sobre a Unidade Divina (não li este livro, menciono-o aqui apenas em caráter informativo)...
 
Ainda à guisa de informação, os Rubáiyát são um termo que se refere ao plural de “rubaiá”, o qual, por sua vez, trata-se de um poema em quatro linhas (quadra ou quarteto) sendo os versos com métrica e rimados na primera, segunda e quarta linha. Os “Rubáiyát de Omar Kháyyám”  foram descobertos em manuscrito no ano de 1460 por Bodler – manuscrito de Bodler/universidade de Oxford, traduzido por Fitzgerald com ajuda de um amigo - e há um manuscrito original na Universidade de Cambridge...]
 

Um dia, numa taverna,

pedi a um velho

notícias dos que partiram.

 

Eis que o mesmo me respondeu:

 

“-Não voltarão! É tudo o que sei...

Bebe vinho!”...

 

- versão brasileira de Octávio Tarquínio de Souza,  rubaiá 103 (a partir da tradução francesa de Franz Toussaint) da editora José Olympio.

 

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