Histórias budistas: 1. Sasapandita jataka (o jataka da Lebre-sábia) - Conversão ao Budismo. 2. Mahaduta - Entendendo a doutrina do karna, renascimento e causalidade (hetuvada). (Revisado: 02/10/2015)

19/09/2015 23:05

 

 

HISTÓRIAS BUDISTAS (revisado em 02/10/2015):

1. Sasapandita Jataka (Jataka-Atthakatha Livro III 48-52) – O jataka da lebre sábia.

Dana (Dar-Caridade) e Campo de mérito. Shradda (Fé). Uposatha (páli)/Posadha (sânscrito) - Jejum.


 

Este post vem com duas histórias budistas singelas as quais, todavia, estão imbuídas de significados importantes.

 

A história de Sasapandita (a Lebre sábia) é integrante do Jataka – livro que narra histórias atinentes a nascimentos anteriores como bodhisattva do Buddha Shakyamuni - e já chegou a ser divulgada em nosso idioma; ela aborda a conversão dos budistas leigos. A história de Mahaduta é coligada à época do Budismo Inicial e foi publicada em diversos países - como Rússia, Alemanha, França e Inglaterra - sob o título “Karma”; em relação a Mahaduta eu, pessoalmente, só cheguei a este relato garimpando textos budistas pela web. A história de Mahaduta aborda a doutrina do karma. 

 

                                                         _______________________

 

 

 

O Mestre narrou esta passagem quando residia no mosteiro de Jetavana, devido a uma doação realizada por um devoto leigo à Sangha, abrangendo toda a necessidade dos monges.



Dizem que em Savatthì um certo pai de família realizou uma Sabbaparikkhara Dana (doação de todos os requisitos necessários para um monge*) à comunidade de monges presidida pelo Buddha Shakyamuni. Construiu um pavilhão na porta de sua casa e convidou a sangha presidida pelo Buddha. Fez com que se sentassem no pavilhão em assentos preparados e lhes ofereceu comida deliciosa de diversos gostos. Tendo convidado-os por sete dias seguidos, no sétimo dia doou todos os requisitos necessários para quinhentos monges à Sangha presidida pelo Buddha.

 
 

[nota: 'Sabbaparikkhara Dana’ - doação (dana) com todos os requisitos necessários para um monge: 1) tigela (patta); 2), 3) e 4) três hábitos ou mudas de roupa (ticivara); 5) faixa para poder carregar os requisitos junto ao corpo (kayabandhana) ; 6) lâmina para barbear e raspar a cabeça (vasi); 7) agulha para costurar as roupas (suci) ; 8) moringa ou cantil de água (parissavana)...]


 

O Mestre, ao finalizar a refeição, expressou sua gratidão dizendo:

“Devoto, é apropiado que tu experimentes regozijo e felicidade. Porque esta generosidade pertence à linhagem dos sábios de antigamente. Os sábios de antigamente, quando chegavam mendicantes, renunciavam à sua vida e davam ainda a sua própria carne”.

A pedido desse devoto, o Buddha Shakyamuni relatou a seguinte história do passado. 


 

"...No passado, quando Brahmadatta reinou em Varanasi, o Bodhisattva nasceu como uma lebre e viveu no bosque daqueles arredores. Ao lado desse bosque estava o pé de uma montanha, do outro lado havia um rio e do outro uma vila de fronteira. Também viveram seus três amigos: um macaco, um chacal e uma lontra. Esses quatro sábios viviam juntos, obtinham comida em seus respectivos lugares e pela tarde se reuniam (*).


A lebre sábia exortou seus três companheiros com uma prática do Dharma: "Devemos praticar a generosidade, observar os preceitos e realizar atos de Uposatha [sânscrito: posadha]".


Então, após aceitar sua exortação, os três animais se retiravam para suas moradias.



Assim passou-se o tempo.


Um dia o Bodhisattva olhou para o céu, viu a lua e compreendeu: -"Amanhã é o dia de Uposatha"; reunindo-se com os animais, disse o Bodhisattva aos outros três: -"Amanhã é Uposatha, vós três deveis observar os preceitos e o dia do Uposatha."... "Tendo alguém se estabelecido nos preceitos, a doação produz grandes frutos. Portanto, se vós virdes a algum mendicante, deveis dar da vossa própria comida. Eles aceitaram dizendo: -"Muito bem", e retiraram-se para seus locais de residência.



No dia seguinte, cedo, a lontra pensando: -"Vou procurar comida" -; saiu e foi às margens do rio. Então, um certo pescador tinha pescado sete peixes vermelhos. Depois de amarrá-los em um junco, trouxe-os consigo e fez um buraco na areia na margem do rio, enterrou os peixes e continuou a pescaria rio abaixo. A Lontra percebeu o cheiro de peixe, cavou na areia, os viu e tomou-os. Por três vezes anunciou: -"Quem é o dono destes peixes?". Não vendo o proprietário, mordeu a ponta do junco com os peixes, levou-os e manteve-os em sua toca, refletindo sobre os preceitos: -"Comerei no momento oportuno".




O Chacal também deixou seu local de residência e, à procura de alimento, encontrou na cabana de um certo guardador de campo duas estacas com carne, uma iguana e um jarro de leite coalhado. Três vezes anunciou: -"Quem é o dono?". Não vendo o proprietário, colocou sobre seu pescoço a corda para levantar o jarro de leite coalhado, mordeu as duas estacas com carne e a iguana, levou tudo isso e guardou em sua morada, refletindo sobre os preceitos: -"Comerei no momento oportuno".



O Macaco também saiu de sua morada e, procurando alimento, entrou no monte, tomou uma ramada de mangas, levou-a e guardou-a em sua habitação, refletindo em seus preceitos: -"Comerei no momento oportuno".



O Bodhisattva deitado em sua própria toca, pensou: "Sairei e comerei grama, no momento oportuno. Se alguém vier me pedir algo, não é possível doar grama. Eu não tenho sementes de sésamo nem arroz nem nada para dar. Se alguém me vier pedir algo, darei, então, a carne do meu próprio corpo".




Naquele momento, pelo poder da virtude do Bodhisattva, o trono de pedra Sakka [sânscrito: Sakra, o deus Indra] mostrou sinais de calor [*]. Sakka, investigando, viu a razão e pensou: -"Devo investigar o rei lebre".



Mas antes foi ao local de moradia da lontra, sob o disfarce de um brahmane. A sábia lontra disse: -"Por que vieste brahmane?". O brahmane respondeu: -"Se eu conseguir alguma comida, guardarei Uposatha". A Lontra disse: -"Muito bem, dar-te-ei minha comida"; e, conversando com o brahmane, pronunciou primeiro o verso:




-“Meus sete peixes vermelhos, pescados da água e tomados por mim em solo firme, isto, brahmane, eu tenho. Depois de comê-los, vivei neste bosque.”.

O brahmane disse, "depois verei isto" e saiu para ver o chacal.


 

[nota: "o trono de pedra de Sakra mostrou sinais de calor ", querendo significar que alguma obra nobre na terra, vinculada  ao Dharma, estava sucedendo...] 

 

Quando o Chacal perguntou: -"Por que vieste?", o brahmane, novamente, respondeu: -"Se eu conseguir alguma comida, guardarei Uposatha". O Chacal disse: -"muito bem, dar-te-ei" – e, conversando com o brahmane, deu o segundo verso:



“O jantar de um certo guardador de campo eu trouxe; duas estacas com carne, uma iguana e um jarro de leite coalhado. Isto, brahmane, eu tenho. Depois de comê-los, vivei no bosque.”

O brahmane disse, "depois verei isto" e foi-se para ver o macaco.


Quando o macaco perguntou: -"Por que vieste?", o brahmane respondeu: -"Se eu conseguir alguma comida, guardarei Uposatha". O macaco disse: -"Muito bem, dar-te-ei"; e, conversando com o brahmane, pronunciou o terceiro verso:



“Mangas maduras, água fresca e uma sombra agradável, isto, brahmane, é o que tenho. Tomai e, depois de comer, vivei no bosque.”.

O brahmane disse, "depois verei isto" e foi-se para ver o rei lebre.



Quando a lebre perguntou: -"Por que vieste, brahmane?", o brahmane respondeu: -"Se eu conseguir alguma comida, guardarei Uposatha". Ao ouví-lo, o Bodhisattva ficou cheio de alegria e disse: "Brahmane, fizeste bem em vir à minha presença para pedir comida. Hoje, vou dar algo que eu nunca dei antes. Porque tu és virtuoso e não-violento. Vá brahmane, ajunte madeira, prepare uma fogueira e avise-me. Eu renuncio a mim mesmo e logo estarei no meio do fogo... Quando meu corpo estiver cozido, poderás comer a minha carne e então observar o Dharma dos sramanas (ascetas)". E conversando com o brahmane pronunciou o quarto verso:


-“A lebre não tem sementes de gergelim nem ervilhas nem mesmo arroz. Depois que eu cozinhar com este fogo, vivei no bosque.”.




Após ouvir o Bodhisatta, Sakka preparou uma pilha de carvão, usando seus siddhis [faculdades supranormais] e informou o Bodhisattva. O Bodhisattva levantou-se da sua cama de ervas e foi até Indra. Antes, porém, meditou: -"Se há insetos em minha pele, que eles não morram", e sacudindo seu corpo por três vezes, ofereceu todo o seu corpo, se lançando sobre a pilha de brasas, regozijando-se como um cisne real em um lago de lótus. Mas o fogo não pode queimar mesmo as mechas mais simples dos pêlos da pele do Bodhisattva. Foi como entrar em um bloco de gelo. Então, ele se aproximou de Sakka: "Brahmane, o fogo que está preparado é muito frio. Ele não poderia nem queimar as pontas dos pêlos em minha pele. O que é isto?". Sakka respondeu: -" Lebre-sábia, eu não sou um brahmane, sou Sakka. Eu vim para provar-te”. O Bodhisattva soltou um rugido de leão: -"Ó Sakka, tu és o primeiro a fazê-lo. Mas se todos os habitantes do mundo viessem por à prova minha generosidade, eles não iriam encontrar nunca em mim falta de disposição para dar."...



Então, Sakka disse: -“Lebre-sábia, que tuas virtudes se conheçam por um eon”. E após isto, Indra, com seu raio, moeu uma pedra na montanha, tomou o seu monturo  e desenhou a forma da lebre no relevo da lua. Tomando o Bodhisattva, acostou-o em um leito de ervas tenras, no mesmo lugar nesse monte, nesse bosque, e regressou para o céu. E esses quatro sábios, em harmonia e em paz, observando os preceitos, praticando generosidade e realizando os atos de Uposatha, partiram, de acordo com suas ações.



O Mestre, depois de narrar este discurso do Dharma, revelou as verdades e mostrou a conexão da história. Ao final das verdades, o pai de família, doador de todos os requisitos necessários a um monge, se estabeleceu na fruição da entrada na corrente.



Naquela ocasião a lontra era Ananda, o chacal era Moggallana (sânscrito: Maudgalyayana), o macaco era Sariputta (sânscr.: Shariputra) e a Lebre-sábia era eu mesmo...



                       
                                                          _______________________________________


 

O fundamento das narrativas do Jataka é nos aproximar da sabedoria e exemplos de vida imbuídos nas histórias concernentes a nascimentos anteriores do Buddha Shakyamuni. Conforme a doutrina budista, até que atingisse a iluminação ou Buddhato (Estado de buddha), o Buddha Shakyamuni, gerando karmas meritórios, foi renascendo continuamente como Bodhisattva. Assim me parece, o leitor moderno do Jataka deve se prender a este vetor ou linha de compreensão. Entre os documentos hindo-budistas relatando sobre a espiritualidade numa existência no reino animal, destacam-se, entre muitos, o Vishnu Purana, o Jataka e o Ramayana de Valmiki.

Pelo encontro entre o bodhisattva - nascido como uma lebre - e Indra, dá-se a entender que a história da Sasapandita se passa num quantitativo temporal que pode abarcar milhares de anos - mesmo eons -, antes do nascimento de Siddharta Gautama, o Buddha Shakyamuni. Do ponto de vista do Buddhadharma e do Vedanta não existe começo (tampouco fim)... mas, entre um ciclo cósmico e outro, na Samvritti Satya (Verdade Relativa ou Condicionada) ou Maya vedântica, aí sim se pode falar em começo, meio e fim. 

Se não captarmos, porém, o sentido interior dessas narrativas, talvez não nos seja de muita valia discutir acerca de sua historicidade efetiva, uma vez que eventos históricos precisam de comprovação...



O Jataka da Lebre-sábia reitera e exemplifica o ensinamento de Uposatha (sânscrito: Posadha - literalmente: ‘Jejum’, ‘Dia de Jejum' e também de consagração); a saber: primeiro dia das fases cheia e nova da Lua, e os dois dias do primeiro e último quarto das fases minguante e crescente. Nos dias de Lua Cheia e Lua Nova, o Código de Disciplina, o Patimokkha (sânscrito: pratimoksha – conjunto de regras diciplinares contidas no Vinaya para monges e monjas), é lido diante da comunidade de monges, enquanto que nos quatro dias lunares mencionados muitos dos upasakas/budistas leigos devotos vão visitar os viharas (mosteiros) e lá, durante um dia inteiro, eles tomam para si a observância das 8 regras (attha-sila). Ver Anguttara Nikaya VIII, 41. 

Assim, os upasakas/budistas leigos se dirigem para junto dos monges e além dos cinco preceitos básicos (panca-sila: não matar, não roubar, não mentir, abster-se de relações sexuais ilícitas e não ingerir substâncias inebriantes) observam também preceitos que são próprios dos monges e monjas: 6º) não alimentar-se após o meio dia, 7º) abster-se de envolvimento com danças, canto, músicas e espetáculos e abster-se de envolvimento com o uso de guirlandas, perfumes, cosméticos e adornos, e 8º) abster-se de camas e assentos luxuosos e de aceitar ouro e prata. O sétimo e o oitavo preceito são uma condensação de quatro preceitos monásticos. Por certo que, o tempo de Uposatha/Posadha, no sat-sanga (encontro/reunião com finalidade espiritual) entre monásticos e leigos, é um tempo não apenas para retiros em comum, mas também para novas conversões. Daí a preocupação e orientação da Lebre-sábia para seus amigos...

[nota: O capítulo 2 da 2ª parte da Surllekkha/”Carta a um amigo” de Nagarjuna inicia abordando o assunto da observação de Uposatha/Posadha, cuja fundamentação foi explanada pelo Lama Rendawa...]




Aqui o Buddha Shakyamuni narra para nós a importância dos valores propriamente espirituais e também religiosos. Cristo predicou que: “Só uma coisa é necessária...”- (São João, cap. XI - "A morte de Lázaro"). A valoração por hindús e budistas acerca de Kaivalya-Moksha e Nirvana, União Suprema e Iluminação é notável, foi colocada efetivamente em prática por hindús e budistas de maneira exemplar e permanece sendo observada por membros de ambas as tradições até os dias de hoje.


Os preceitos éticos, observados efetivamente, complementam e viabilizam mas:

- não substituem a Atenção Plena/Presença Mental adquiridos por treinamento contínuo em samatha (não apenas “tranquilização” mas estabilização) e vipasyana (meditação, a qual necessita de um bom treinamento em samatha para que seus resultados apareçam)

- nem tampouco os ensinamentos metafísicos 


Antes integram, como parte não-prescindível, o processo da iluminação e nos permitem uma maior respiração com as acumulações de mérito.





Por outro lado, Śraddhā (Fé - alguns têm traduzido "shraddhā" como "confiança") não está, em nenhuma hipótese, excluída, tampouco é prescindível. E é, também nas vias hindo-budistas, caminho para salvação - traduzido como nascimento nos Reinos Celestiais (que viabilizam ou não a Liberação) e nas Terras Puras. Śraddhā integra também  os desenvolvimentos objetivando a Liberação, já que sem Fé o êxito no engajamento para uma construção objetivando a Iluminação ou Realidade Última pode ser comprometido [*]



[nota:

- do ponto de vista da exposição budista, a esfera celestial (dos Devas) correspondente ao 6º plano da existência, sendo a mesma um dos seis reinos ou esferas sujeitas ao renascimento, - juntamente com os reinos asura, humano, animal, dos pretas (fantasmas famintos) e os reinos infernais - é uma realização espiritual que não busca ainda a Liberação/Kaivalya ou Moksha. O que hoje é um deva (ou ainda, no reino humano, um rei ou potestade), amanhã pode ser um mendigo ou demônio... o que hoje é um mendigo, amanhã pode ser um deva (ou rei)... Ainda, no ensino repassado pelo Buddha  Shakyamuni, existem outros vinte e cinco reinos da existência (totalizando trinta e um planos existenciais - após o 31º plano ou reino, vem o estado de Buddha) e, a partir justamente do sétimo reino, já se está na corrente da Kaivalya/Liberação, fora da medida de nascimento-e-morte, sujeito apenas a "nascimentos especiais" ou ainda a um nascimento derradeiro (a partir da elevação correspondente ao sétimo plano a realização interior/espiritual que é estabelecida não é mais perdida; não está mais sujeita  à medida de nascimento-e-morte)... 

- do ponto de vista do Brahmanismo, embora a sua doutrina exterior trate da vida espiritual, essa porção périférica da doutrina corresponde a um patamar ou degrau que não é ainda o nível interior ou nuclear; esse patamar geral agrega culturalmente a comunidade e difunde ensinamentos e ritos, mas não necessariamente orienta num sentido de Liberação ou Kaivalya, podendo, na verdade, ser encarado como uma introdução e preparação preliminar. A Kaivalya propriamente é tratada na doutrina interior como exposta nas Upanishads e nos Brahma Sutra (Vedanta Sutra), por exemplo.

- do ponto de vista teológico, há teologias como a de São Dionísio, pseudo Aeropagita, de São João Escoto Erígena, de São Boaventura, a Teologia Alemã ou Germânica, a grande teologia mística de São João da Cruz, etc., as quais, pela sua forma de exposição, orientam e conduzem ao conhecimento da realidade de Cristo, portanto à Liberação – uma vez que orientam a buscar penetração na esfera crística, o que implica buscar não apenas a salvação pessoal mas o Conhecimento e a Participação na Bem Aventurança Indescritível. E há construções teológicas que não se desenvolvem desta forma, podendo-se falar, nesse caso, em teologias enfatizando a Salvação na perspectiva dual-dualista.


- Salvação ou Conhecimento Direto/Liberação? em ambos os casos Śraddhā (fé) tem o seu papel importante. “Só uma coisa é necessária...”.

 

"Deus dissolveu minha mente 

minha separação.


Não posso descrever

minha intimidade com Ele.


Quão dependente é a vida do corpo

de água, comida e ar...


Eu disse a Deus:

“-Eu sempre serei … a menos que Tu deixes de ser!”'



E o meu Amado me respondeu:

“-E eu cessaria de ser se tu morresses...”


“Eu cessaria de ser”. Santa Tereza de Ávila (1515-1582 Espanha)

 

Aqui mesmo, no Sasapandita jataka, nós temos o exemplo de fé inabalável da lebre-sábia tanto em relação à posição dos sramanas (ascetas) quanto em relação à posição dos bodhisattvas, objetivando, por meio de ambas, a Nobre Finalidade - consubstanciada tal fé, neste Jataka, em obras abrangendo o campo superior de méritos.

 

Em termos orientais poderíamos falar em teologias conformadas à medida de nascimento-e-morte - mas, nesse caso, o que pode ser ganho, pode ser, um dia, também perdido (como pode ser verificado no Ushnisha Vijaya Dharani e no Ramayana, posição que procurarei explanar mais adiante)  - e teologias visando conhecer diretamente e, com isto, ultrapassar a medida de nascimento-e-morte... Entre uma posição e outra, porém, o que está em jogo é, também, a aptidão/vocação das pessoas...

E, obviamente, as evidências, realizações e fruições dependem não apenas de adesão a uma família espiritual e participação nos ritos mas de uma metanóia, aqui oriunda da uma ascese interior/espiritual, a qual é individual e decorrente do adequado treinamento interior-ético, senão... lá vamos nós outra vez - pela enésima vez - para a armadilha das palavras sobre iluminação e vida espiritual sem uma contrapartida efetiva nem nos níveis mínimos...


São Francisco de Assis, com o aumento de número de seguidores e formação da Ordem Franciscana, passou a Teologia para o frei Antonio (Santo Antonio de Pádua) repassando, também, para frei Antonio, sua preocupação justamente com a dificuldade que exponho aqui: muitos estudos, pouca realização espiritual, muitas palavras (com e sem terminologia específica), poucas conversões verdadeiras e pouca vida em Cristo. Num assunto que pode ser fugidio, movediço como o de uma vida espiritual, as palavras estão fadadas a serem meios limitados e subordinados à realização interior/espiritual, nunca o contrário... Sem as realizações interiores as acumulações de conhecimento podem se "petrificar" e mesmo conduzir à auto-ilusão, converter-se em erudição somente - ao invés de jnana - nos informando sobre uma digna e bela possibilidade, porém, sempre distante, nunca atualizada... ]




Por fim, para entender o que o Buddhadharma denomina “campo de méritos” ele está vinculado a tudo aquilo que, feito com dignidade, tem como objetivo finalidades nobres com o Dharma e o bem efetivo dos seres – isto é: o bem material e, com maior propriedade, o bem interior/espiritual. Neste jataka, o campo de mérito se forma pela observação dos preceitos e pela disposição em colaborar efetivamente, através da doação de meios materiais, para aqueles que irão se engajar em Uposatha.




Acerca de Dana (Dar/Caridade) e observação de preceitos ético-morais, o Guru Nagarjuna escreveu:





“Reconhecendo que a riqueza é efêmera e insubstancial

exercei-vos adequadamente em atos de liberalidade

em prol de monges, brahmanes, pobres e amigos.

No futuro, não haverá amigo melhor que a liberalidade.”.

Suhrllekka v. 6




“A pessoa que quebra o esteio da moralidade

mesmo que venha a adquirir riqueza

em razão de algum ato de generosidade,

decairá para os estados inferiores.




E exaurida a raiz geradora de tal riqueza

daí em diante deixará de adquirir coisa alguma...


Quando as virtudes são cultivadas no campo da moralidade

a fruição de seus resultados não é interrompida...”.


Madhyamakavatara, cap. 2, v. 6.



A moralidade não-conspurcada, imaculada e incorrupta

foi declarada a base de todas as virtudes

da mesma forma que a terra está para todas as coisas móveis e imóveis..
.”

Suhrllekka v. 7




Dar/Dana é exercida com coração, caráter e compreensão.




O campo de méritos é maior quando temos adesão a alguma família espiritual que, histórica e comprovadamente, apresente em suas fileiras homens e mulheres santos e/ou iluminados e damos nossa colaboração pessoal à nossa família espiritual objetivando o necessário em prol de um tal resultado. Este é o campo de méritos de virtudes.

 

O campo de méritos é maior quando socorremos os desvalidos e indigentes, os massacrados, os inválidos, aqueles que tendo perdido praticamente tudo são possuidores em seu momento atual de poucas possibilidades ou, em muitos casos, já não são possuidores de nenhuma possibilidade efetiva, exceto a de carregar o alento de vida no corpo... Este é campo de méritos referente à miséria.


O campo de méritos das amizades se dá nas relações de amizade verdadeira, as quais se desdobram através daqueles amigos que se apresentam quando as necessidades, inclusive com grau complexo de dificuldade ou resolução, surgem. Para o Campo de Mérito, verdadeiros amigos não são apenas leais; são amigos nas necessidades que se apresentam e também na relação espiritual...

 

____________________

 

 

 

A HISTÓRIA DE MAHADUTA. 

Karma e Causalidade. Salvação pela Fé (Shraddhā).

 
Me baseei em dois textos para esta tradução:  O livro “Karma” do alemão Paul Carus, edição inglesa de 1917 e a versão condensada da mesma história para ensino de jovens e crianças: “The legend of Mahaduta”, edição da Dharma Realm Buddhist Association (www.drba.org), disponível na web.
 
                                             ___________________
 
 
 
'[do ponto de vista do nihilismo] Não existe nada que é dado, nada que é oferecido, 
nada que é sacrificado; 
não existe fruto ou resultado das ações boas ou más; 
não existe este mundo, nem outro mundo; 
não existe mãe, nem pai; 
nenhum ser que renasça espontaneamente; 
não existem no mundo brahmanes nem contemplativos bons e virtuosos 
que, após terem conhecido e compreendido diretamente por eles mesmos, 
proclamem este mundo e o próximo.'
 
Portanto, oh brahmanes, chefes de família, é devido à conduta em desacordo com o Dhamma, devido à conduta corrompida que alguns seres, com a dissolução do corpo, após a morte, renascem num estado de privação, num destino infeliz, nos reinos inferiores, até mesmo no inferno. Majjhima Nikaya 41:10 [sobre o nihilismo]
 
 
 
O carroção de arroz de Devala.  
 
 
Faz muito tempo, na Índia do Budismo inicial, viveu um joalheiro muito rico, de nome Pandu. 
 
Certo dia em que se dirigia com sua carruagem até Varanasi (Benarés), Pandu estava contente pela bonança do tempo, recém-refrescado por uma forte chuva, e, sobretudo, pela perspectiva dos lucros que iria  auferir no dia seguinte, vendendo joias no mercado.
 
Pelo caminho, Pandu viu um monge caminhando lentamente por um canto da estrada. O monge caminhava com passos firmes e coluna ereta; havia naquele monge algo que irradiava paz e força interior. Pandu pensou: “Se esse monge estiver indo a Varanasi, perguntarei se quer viajar comigo. Parece um homem santo e ouvi dizer que a companhia de pessoas santas sempre traz boa sorte”. Assim, ordenou a seu forte escravo, chamado Mahaduta, para parar os cavalos.
 
 
-  “Venerável Mestre do Dharma” - disse Pandu, abrindo a porta de sua carruagem - “Posso oferecer-te transporte até Varanasi?”
- “Agradeço tua bondade. Eis que estou exausto da longa caminhada. Viajarei contigo” - respondeu o monge -, “se compreendes que não tenho com que pagar-te, posto que não tenho bens materiais. A única coisa que posso oferecer-te é o Dharma.” 
- “Aceito tuas condições” – disse Pandu, que sempre pensava como se estivesse negociando. E assim convidou o monge a adentrar sua carruagem.
 
 
Durante a viagem, o monge, de nome Narada, falou a Pandu sobre o karma, que é a lei de causa e efeito.
 
- “As pessoas criam seus próprios destinos mediante suas ações” - disse Narada.  -“Boas ações geram, de um modo natural,  boa fortuna, enquanto que aqueles que cometem maldades acabam pagando por elas tarde ou cedo.”. 
 
 
Pandu estava satisfeito com a companhia. Aprazia-lhe ouvir coisas com sentido, pois era um homem prático, e também tinha raízes boas e profundas no Dharma, ainda que não se apercebesse disto. 
 
 
Pelo caminho, Pandu, o joalheiro, interrompeu asperamente a Narada quando a carruagem se deteve na metade da estrada. 
- “O quê ocorre?” - gritou irritado a seu escravo Mahaduta - “não há tempo a perder!”. Varanasi distava ainda dez milhas de distância e o sol já se punha no Oeste.
- “É o carroção de um agricultor no meio da estrada” - vociferou Mahaduta.
 
 
O monge e o  joalheiro abriram as portas da carruagem e se achegaram para ver o que ocorria. Um pouco adiante e bloqueando a estrada, havia um carroção carregado de sacos de arroz. A roda direita estava avariada num buraco. O agricultor estava sentado no chão tentando reparar uma peça rompida, pois pretendia chegar, também ele, a Varanasi para vender seu arroz.
 
- “Não posso esperar, Mahaduta!” - gritou Pandu - “afasta este carroção!”.
 
 
O camponês se levantou rapidamente para protestar e Narada voltou-se até Pandu para pedir-lhe que pensasse outro modo de resolver a situação. 
Mas antes que algo pudesse ser dito, Mahaduta já havía saltado de seu assento e, arremetendo contra o carroção do agricultor, empurrou-o mais ainda para o buraco na estrada. Vários sacos de arroz caíram no barro. 
O agricultor avançou até Mahaduta, mas deteu-se ao dar-se conta de que o escravo era o dobro dele em tamanho e força. 
Olhando com desdém para o agricultor, Mahaduta ergueu seu punho ameaçadoramente; estava claro que ele teria apreciado dar uma surra  no camponês Devala se Pandu não estivesse com pressa. 
Voltando Mahaduta a seu assento e retomando as rédeas da carruagem eis que Narada, a seu turno, desceu da mesma e disse a Pandu: 
 
- “Estou descansado e em dívida contigo por haver-me levado durante uma hora; e que melhor modo de saldar esta dívida se não por ajudar a este desafortunado agricultor que tu tens maltratado através de teu escravo? Ao fazer-lhe dano, tenha por certo que um dano similar ocorrerá a ti também. Assim que, talvez, ajudando este camponês, possa fazer com que tua dívida com ele não seja tão grave. Ademais, este agricultor foi um familiar teu em uma existência anterior; teu karma e o dele estão atados de uma maneira muito mais forte que o normal.”. 
 
 
O joalheiro estava surpreso. Não estava acostumado a ser corrigido, nem sequer mediante a amabilidade com que Narada o havia feito. Mas o que mais lhe molestou foi a ideia de que ele, Pandu, um joalheiro com grandes riquezas, pudesse estar de algum modo relacionado a um mero agricultor de arroz que, segundo Narada, teria sido um seu ancestral.  
- “Mas isto é impossível” - replicou Pandu a Narada.
 
 
Narada, com um leve sorriso, disse: 
- “As vezes  as pessoas de maior inteligência não alcançam reconhecer as verdades mais básicas da vida. Mas eu tentarei proteger-te contra o dano que fizeste a ti mesmo.” 
 
 
Perturbado por estas palavras, Pandu fez um sinal veemente com sua mão para que o escravo repusesse a carruagem em marcha. 
 
 
Devala ouve o ensinamento da lei do karma. 
 
 
Devala, o agricultor, já estava novamente sentado no solo, a um lado da estrada, tentando reparar outra vez a roda. 
Narada saudou-o, inclinando sua cabeça e começou a empurrar o carroção para fora do buraco. 
Devala  levantou-se rápido para ajudá-lo, mas se deu conta de que aquele monge tinha muito mais força do que se poderia esperar de uma pessoa de compleição mediana. 
O carroção estava novamente na estrada. 
- “Este monge deve ser um santo”, pensou Devala em silêncio.  - “Devas e yakshas, invisíveis protetores do Dharma, devem ajudá-lo. Talvez ele possa explicar-me por que hoje minha sorte tem declinado”. 
 
 
Os dois homens carregaram os sacos de arroz que Mahaduta havia jogado no buraco na estrada e, então, sentando-se Devala novamente para consertar a roda, perguntou:
- “Venerável Mestre do Dharma, podes explicar-me porquê tive que sofrer semelhante injustiça por parte desse rico tão arrogante,  a quem nunca havia visto antes? Qual a razão disto?”
 
 
Narada respondeu: 
-“O que sofreste hoje não é realmente uma injustiça. Recebeste o pagamento exato pelo dano que causaste ao joalheiro em uma vida anterior.”
 
 
Devala, concordando, disse: 
-“Ouvi pessoas dizerem este tipo de coisas antes, mas nunca me ocorreu de acreditar ou não...” 
-“Não é algo muito difícil de acreditar” - disse Narada. “Nos convertemos naquilo que fazemos. Se fazes boas coisas, serás uma boa pessoa,  de um modo natural, e coisas boas te ocorrerão naturalmente. O mesmo sucede com as maldades. Atos maus criam más personalidades e vidas desafortunadas. Tudo em que tens pensado, dito e feito criam a classe de pessoa que tu és agora, e também contêm as sementes daquilo que serás no futuro. Esta é a lei de causa e efeito, a lei do karma. 
 
[nota: aqui o ensinamento sobre a causalidade está sendo exposto de maneira gradual. Anterior à sua correlação de causa e efeito, karma é ação...]    
 
- “Talvez seja assim” - disse Devala -, “mas eu não sou uma má pessoa, e vê o que me ocorreu hoje!”
 
 
Narada lhe perguntou: 
- “Não terias feito o mesmo ao joalheiro se houvesse sido ele a bloquear a estrada e tu o que comandasse um cocheiro tão embravecido?” 
 
 
As palavras do monge fizeram com que Devala emudecesse. Se deu conta de que até o momento em que Narada apareceu para ajudá-lo, sua mente estava enevoada por pensamentos de vingança. Exatamente o que Narada havia dito é o que ele havia pensado: “Quem dera houvesse sido eu a afundar a carruagem do joalheiro para depois poder retomar a viagem com orgulho, enquanto  o ricaço estivesse revolvido no lodo”. 
 
- “Sim, Mestre do Dharma” - admitiu - “é verdade.”.
 
 
Os dois homens permaneceram em silêncio até que a peça avariada estivesse pronta e a roda fosse montada novamente no carroção. O camponês seguia meditando nas palavras de Narada. Ainda que Devala não houvesse nunca ido à escola, ele era um homem pensativo e sempre tentava descobrir o porquê das coisas e as razões por trás dos sucessos.
 
 
De repente disse: 
- “Isto é terrível! Agora que o joalheiro me fez dano, eu terei que fazer algo mal a ele. Então ele me devolverá, e eu tornarei a feri-lo. Isto nunca terminará!”.

 

[nota: as palavras atribuídas aqui a Devala são simples, entretanto prenhes de significado. Os desencontros, conflitos de interesse, erros de julgamento/avaliação/compreensão, egoísmos, estupidez/má-fé/má-vontade, fanatismos, crueldades e extremismos conduzindo a danos e destes danos emergindo novos danos decorrentes de retaliações, esses últimos conduzindo a um ciclo de novas retaliações, vinganças e ações ruinosas. É a temática investigada de maneira admirável pelo sociológo e sábio francês René Girard – sem adentrar, todavia, na doutrina da causalidade - em sua obra a “A violência e o Sagrado” (Editora Paz e Terra; disponível na Web em espanhol), onde nos capítulos iniciais ele verifica a questão da mediação e interferência do Judiciário para atenuar e gerenciar o ciclo infindável de vinganças em meio à comunidade, além das observações geniais de Girard sobre a violência intestina, a qual é intrínseca ao ser humano - relacionada à Queda na terminologia judaico-cristã e à Avidya/Ignorância na terminologia hindo-budista, sendo em que em uma situação e outra só uma reintegração interior/espiritual resgata e livra a condição humana - bem como, na mesma obra, suas considerações também geniais sobre o tema da característica mimética da interação com o desejo e sobre o tema de  “Abel e Caim” (o melhor relatório que já li sobre esta passagem bíblica, após aquele repassado por René Guénon em seu também admirável “O Reino da Quantidade e os sinais dos tempos” - de certa forma, ambas as exposições sobre o tema de  Abel e Caim complementam e aprofundam nossa compreensão.) … 

 
Saída deste pesadelo? 
O perdão cristão. A ahimsa (não-violência) hindo-budista. Jnana. Mas... como orientar a jnana? 
 
A compreensão cristã-budista de que os inimigos devem ter a devida consideração e ser incluídos em nossas práticas espirituais benignas ou de mérito (São Mateus, cap. 5, v. 43-48 - "Amai os vossos inimigos e fazei bem aos que vos aborrecem, orai pelos que vos perseguem e maldizem") e o ensinamento desenvolvido por Shantideva  (Bodhicaryavatara, cap.6, v. 68, 87-88, 102, 107 - "A Paciência" - Shantideva explica que “um inimigo é como um tesouro” – não apenas pela relação Desenvolvimento-de-Paciência-e-Compaixão mas também pela relação-espelho, a qual, quando efetiva, é o de que precisamos para aprimorar nosso desenvolvimento interior …
 
Pelejar em causas que não lhe são correlacionadas, que não passam, em nenhuma hipótese éticamente legítima pelo próprio rumo, incorre alguém deixar de fazer o que deve ser feito para lidar com o que não é de sua responsabilidade interior/espiritual, criando uma originação dependente desnecessária e, em certos casos, ruim e estorvadora de boas obras e realizações, já que os elementos constituintes da relação-espelho  e da correlação interior/espiritual - kármica – estão ausentes ou num patamar insuficiente. 
 
Se cada um de nós lutar a própria verdadeira guerra interior, isto é uma grande coisa, porque da nossa verdadeira guerra interior advêm batalhas das quais podemos sair fortalecidos (nós e, também, nossos opositores/contrários). 
 
Se um bem está ao nosso alcance, fazê-lo é, em princípio, de rigor. 
Mas há algumas situações como, por exemplo, lidar com malignos que não são do próprio rumo, do próprio resultado interior/espiritual, sem encontro ou conexão nenhuma com o próprio nível de compreensão e formulação, onde incorremos, mesmo tendo êxitos, em acordar e verificar a redução de nossas próprias acumulações benignas, as quais, para serem repostas, isto implicará uma nova carga de anos de prática bem como não perder mais tempo com o que não é do nosso rumo ou formulação, do nossso karma pessoal ou da nossa responsabilidade pessoal e/ou espiritual… 
 
No Karanda Vyuha Sutra, o nobre bodhisattva Avalokiteshvara visita o Inferno Avici e, após, o Pretalôka (“O reino  dos Pretas - Fantasmas famintos”), liberando os seres sencientes que estão ali, purgando karmas malignos/doentios. Se não houvesse purgação de karmas doentios, malignos no Pretaloka e no Inferno Avici e outros, não haveria, do ponto de vista da Verdade Condicionada ou Relativa/Samvritt Satya, seres sencientes naquelas esferas de restrição e purgação para serem libertos pelo bodhisattva, tampouco a lei do karma corresponderia a Ação, Causa e Efeito... Por outro lado, os budistas fazem votos para, na hipótese de renascimento, que isto se suceda em nações onde há posição e cultura favoráveis – ou, ao menos,  posições e culturas não-hostis - para a prática do Buddhadharma, o que é um dado significativo...]
 
 
- “Não precisa ser assim” - disse Narada. “As pessoas têm a decisão de fazer coisas boas e coisas ruins. Encontra um modo de pagar a este joalheiro tão orgulhoso com ajuda em lugar de pagar-lhe com retaliação ou dano. Então o ciclo se romperá.”.
 
Devala concordou com Narada. Acreditava no que o monge havia dito, só não via como poderia surgir oportunidade para seguir seus conselhos. Afinal, como um pobre camponês poderia ajudar a um homem tão rico? Devala convidou a Narada a subir em seu carroção e retomou a marcha para Varanasi.
 
 
 
Devala encontra-se com Pandu em Varanasi.
 
 
Mal seu cavalo começou o caminho, deteu-se repentinamente. 
- “Uma serpente na estrada!” - gritou Devala.  Mas Narada, olhando atentamente, viu que não era uma serpente, senão uma bolsa. Desceu do carroção e a recolheu. A bolsa estava muito pesada pois cheia de ouro.
 
-”Reconheço-a. Pertence a Pandu, o joalheiro” - disse Narada.  -“Ele a levava entre suas pernas na carruagem. Deve ter caído no mmnto que abriu a  porta para ver o que ocorria na estrada. Não te disse que seu destino estava unido ao teu?”. 
 
Dando a bolsa a Devala, Narada prossegiu: 
-“Tens aquí a oportunidade de cortar as ataduras de violência e da vingança que te atam ao  joalheiro. Quando chegarmos a Varanasi, vai-te à pousada onde Pandu se hospeda e devolve-lhe seu dinheiro. Te pedirá perdão pelo que te fez, mas tu deves dizer-lhe que não guardas nenhum rancor e que deseja-lhe o melhor. E, escuta-me atentamente Devala, tu e Pandu sois muito parecidos e ambos prosperareis ou fracassareis em vossas jornadas  dependendo de vossas ações. “.
 
Devala fez conforme as instruções de Narada. Não tinha desejo algum de permanecer com seu ouro. Naquele momento, desejava somente encerrar algum vínculo kármico tortuoso com o joalheiro. Ao anoitecer, quando chegaram a Varanasi, foi à pousada onde os hommens ricos costumavam hospedar-se e pediu para ver Pandu. 
- “E a quem devo anunciar que quer vê-lo?" - disse o pousadeiro olhando com desdém para as vestes do agricultor.
- “Diga-lhe que um amigo veio visitá-lo.”. – disse Devala. 
 
Em poucos minutos, Pandu veio à recepção da hospedaria onde Devala o aguardava. Quando Pandu viu o camponês oferecer-lhe sua própria bolsa, ficou sem fala, tomado de surpresa, vergonha e também alívio. Mas, ao momento que começou a retomar os sentidos, saiu correndo da hospedaria, gritando:
-”Parai... parai de golpeá-lo.”. 
 
Devala havia ouvido gritos de dor provenientes de um espaço contiguo. Parecia alguém agonizando em febre. Logo, um homem alto e corpulento entrou, com suas costas nuas cobertas de sangue e com marcas de açoites em consequência dos golpes recebidos. Era Mahaduta, o escravo de Pandu, o joalheiro. Um oficial de policía o seguia com um chicote em uma mão e uma vara em outra.
 
Ao ver Devala, Mahaduta se surpreendeu e ainda disse: 
-“Meu amo pensou que roubei sua bolsa. Fez com que me golpeassem para que confessasse. Este é meu castigo por fazer-te dano ao seguir suas ordens.”.
Cambaleando e sem pronunciar palavra a Pandu,  saiu para fora, desaparecendo em meio à  noite. Pandu acompanhou a cena e sentiu de dizer algo a Mahaduta, mas era demasiado orgulhoso para pedir perdão a um escravo, especialmente diante de outras pessoas. 
 
Nesse ínterim, o joalheiro não teve oportunidade de saudar Devala, nem de pegar sua bolsa. No momento em que ia falar um homem corpulento vestido com ricas sedas entrou na hospedaria gritando: 
- “Pandu, me contaramn o que ocorreu contigo. A roda da fortuna gira e gira, não? Há dez minutos parecia que ambos estávamos arruinados e agora todo voltou a estar bem. Vem, toma tua bolsa, a agradece a este bom homem.”.
 
Pandu pegou sua bolsa e inclinou sua cabeça ligeiramente para o agricultor:
- “Eu me portei mal contigo e como pagameno tu me ajudaste. Não sei como poderei pagar-te por isto.” 
-”Como? Dá-lhe uma recompensa, Pandu!” - interferiu seu gordo amigo. - “Recompensai-o”. 
 
Inclinando-se até Pandu, Devala disse: 
- “Perdoei-te e não necessito de nenhuma recompensa. Se não houvesses ordenado a teu escravo repelir meu carroção, possivelmente nunca teria a oportunidade de conhecer ao Venerável Narada, nem de ouvir seus ensinamentos, os quais me beneficiaram mais que qualquer quantia em dinheiro. Tomei a resolução de nunca voltar a prejudicar outro ser vivo, já que não quero que me tornem a suceder calamidades em consequência disto. Esta resolução faz com que me sinta seguro e no controle de minha vida de uma maneira que nunca antes havia sentido.”.
 
-”Narada!” - disse Pandu. - “Assim como ele te ensinou, ele instruiu a mim também, mas temo que não escutei bem... Toma isto, bom homem...”.  E deu a Devala várias peças de ouro de sua bolsa. 
- “Diga-me... sabes onde está hospedado o Venerável Mestre do Dharma em Varanasi?” 
-”Sim, não faz muito tempo deixei-o no mosteiro que há junto da entrada Oeste da cidade.” . - respondeu Devala.  -“De fato, ele me disse que era possível que tu quisesses vê-lo. Me pediu que te dissesse que podes visitá-lo, se quiseres,  amanhã, à tarde.”. 
 
Pandu inclinou-se novamente, desta vez com maior dignidade e reverência.
 
- “Agora, sim, tenho uma verdadeira dívida contigo - disse Pandu. -“E também acredito em algo que Narada me disse. Ele disse que tu e eu fomos parentes em nascimentos anteriores e que nossos destinos correm paralelos. Parece que até temos encontrado o mesmo mestre.”. 
 
 
 
Devala é recompensado.
 
 
 
O homem gordo ouvia com impaciência.
- “Sim, sim, estas patranhas filosóficas são boas" - disse levantando a voz -, "mas agora vamos falar de negócios!”.
 
E voltando para Devala continuou:
-”Deixe me apresentar, sou Malik, o banqueiro, amigo de Pandu. Tenho um contrato com o ministro do rei para fornecer o melhor arroz para sua cozinha, mas, há três dias, o meu concorrente, desejando meu fracasso com o rei, comprou todo o arroz em Varanasi. Se não fizer a entrega amanhã, estarei arruinado. Mas agora, meu amigo, tu estás aqui, e é isso o que importa! Teu arroz é de primeira qualidade? Ou ele foi danificado pelo idiota Mahaduta? Quanto arroz tens? Tu tens algum acordo ou acerto aqui em Varanasi para vendê-lo? Fale!”
 
Sorrindo ante a ânsia do banqueiro, Devala respondeu:
- “Eu trouxe mil e quinhentos quilos de arroz de qualidade superior. Um único dos sacos molhou um pouco na lama. Nada tenho prometido ou planejado, mas apenas pretendo levá-lo para o mercado amanhã de manhã, com a finalidade de negociá-lo.”.
 
-"Esplêndido! Esplêndido! Então tu irias para o mercado?" - disse Malik esfregando suas mãos... “Presumo que tu aceitarás o triplo do preço que poderias obter no mercado, não?"
- "Aceito.". - respondeu Devala.
- "Claro que sim..." - disse o banqueiro.
 
Malik chamou seus servos para descarregar o arroz do carroção de Devala, pagando-o generosamente. Ao mesmo tempo que contava e colocava as moedas de ouro nas mãos de Devala, disse a Pandu:
-"Um homem nunca sabe de onde virá a ajuda quando a mesma for necessária. Nunca percas a esperança, porque a vida é um mistério maravilhoso... E isso conclui o pagamento.".
-"Não malgaste este dinheiro com jogo!" - disse Malik a Devala. E retirou-se contente para continuar com seu jantar.
 
Devala não tinha intenção de gastar o dinheiro em jogos ou apostas. Ele já tinha tomado a resolução de ir ao mosteiro onde vivia o Venerável Narada e oferecer metade desse benefício para a Tri-ratna (Três Jóias: Buddha, Dharma e Sangha). O resto levou para sua casa e gastou cuidadosamente, conforme as necessidades se apresentavam. A partir daquele dia, Devala viveu prosperamente. Por causa de sua honestidade e sabedoria as pessoas de sua cidade vieram a considerá-lo como um líder.
 
 
 
Pandu reencontra-se com o Venerável Narada.
 
 
No dia seguinte à tarde, Pandu foi para o Mosteiro perto da entrada oeste da cidade. Narada recebeu-o no quarto de hóspedes. Após ter ouvido o joalheiro narrar o que aconteceu na pousada, o monge disse:
- “Tu ainda tens muitas dúvidas e prefiro não dar a explicação completa do que me pedes, porque tu não a aceitas. Tua fé não é tão completa quanto a de Devala, o agricultor, então tu ainda terás que passar por mais provas antes de seres capaz de tornar-te um verdadeiro discípulo do Buddha.”
- “Venerável Mestre do Dharma” - Pandu humildemente disse -  “rogo-te que me expliques, porque então poderei seguir melhor teus sábios conselhos.”.
- “Bem... Guarde o que vou te dizer e reflita bem nisso. No futuro tu serás capaz de compreender. Já expliquei como todos e cada um de nós cria seu próprio destino de acordo com suas ações. Seu amigo rico, Malik, por exemplo, tem muitas bênçãos, embora mui pouca sabedoria. Acredita que a roda da fortuna, como ele a chama, dá giros e voltas misteriosamente. Mas não há nenhum mistério. Sua prosperidade e felicidade não têm nada que ver com qualquer força fora de suas ações, palavras e pensamentos. Nascimento após nascimento ele é rico e feliz simplesmente porque, a cada nascimento ele foi gentil e generoso. Não acho que ele trataria de qualquer maneira um seu escravo à maneira como tu fizeste a Mahaduta.”.
- “É verdade” - disse Pandu -  “ele tentou me impedir; mas eu estava furioso... e eu não ouvi.”.
- “Sim” - disse Narada acenando. “E não penses que estás livre da dívida contraída com Mahaduta por ter feito com que ele fosse torturado de forma cruel e sem razão. Não penses que tu estás sozinho neste mundo, ou que tuas ações não têm consequências. Lembre-te que mais cedo ou mais tarde cada um de teus atos, bons ou ruins, grandes ou pequenos, te serão restituídos da mesma maneira e na quantidade exata. Daí o ditado: "Plante legumes e tu colherás legumes; plante melões e colherás melões". A bondade produz coisas boas, enquanto a maldade traz coisas malignas. Trata todos os seres vivos da mesma forma como tu gostarias de ser tratado[*]. É verdade que tu não és diferente dos demais. Tu és feito da mesma substância básica como o resto dos seres vivos. Isso é porque, em cada um dos teus pensamentos e ações, está relacionados com o resto dos seres vivos de uma forma ainda mais íntima do que o relacionamento entre os órgãos de seu corpo.
 
[nota:  "Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam a vós, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é toda a Lei e os Profetas.". São Mateus 7:12.]
 
 
- “Se tu podes realmente entender isto em teu coração - continuou a Narada -, "tu já não terás mais vontade de causar dano a outros seres vivos, porque tu entenderás que eles são iguais a ti [uma estrutura de originação dependente]. Tu sentirás seu sofrimento como o teu próprio e sempre tentarás ajudá-los. Deixe este versículo te servir como guia:
 
Aquele que causa danos ao outros prejudica a si mesmo;
Quem ajuda os outros se ajuda ainda mais.
Para encontrar o Caminho puro, o Caminho da Luz,
Abandone a falsidade de que tens um ego substancial.
 
Pandu levantou-se e caiu sobre seu rosto três vezes ante o mestre do Dharma, algo que nunca fizera antes com ninguém. Então ele disse:
- “Não esquecerei tuas palavras, Mestre do Dharma. Farei o necessário para que se construa um mosteiro em minha cidade natal Kaushambi, para que as pessoas de lá tenham a oportunidade de ouvir este maravilhoso Dharma. Eu só espero que o Mestre do Dharma, com sua compaixão, me ajuda a completar este voto que faço agora.”.
 
Os anos passaram e Pandu, o joalheiro, prosperou. Ele se refugiou no Dharma, sob instruções de Narada, tornando-se seu discípulo e foi um dos que deu mais doações e ofereceu proteção material ao Mosteiro de Kaushambi, o qual ele próprio havia ajudado Narada a fundar. Sempre que podia pôr de lado seus negócios, Pandu vinha ao mosteiro para  ouvir as leituras e explanações sobre os Sutras, predicados por Panthaka, abade do mosteiro e discípulo mais velho de Narada. Pandu sempre estava disposto a receber instruções de Narada, quando o velho mestre visitava a cidade, mas nunca colocava em prática os ensinamentos que ouvia. Ele pensou que o cultivo dos ensinamentos fosse coisa para monges e seus negócios materiais ainda o mantinham demasiado ocupado.
 
 
 
Pandu se reencontra com Mahaduta.
 
 
Um dia, seis ou sete anos desde seu primeiro encontro com o venerável Narada no caminho para Varanasi, a oficina de joias de Pandu recebeu uma encomenda muito especial. O rei de um país vizinho, do outro lado das montanhas, queria uma nova coroa real. Ele tinha ouvido falar sobre os produtos de alta qualidade da joalheria de Pandu. A coroa tinha que ser de ouro com as melhores pedras preciosas de toda a Índia. Os reis da Índia sempre tiveram um fraco por pedras preciosas e Pandu tinha muitas vezes sonhado em se tornar um joalheiro oficial, agregado a uma família real, porque assim ele iria assegurar não só a prosperidade, mas também grandes riquezas. Agora chegava sua oportunidade.
 
 
Pandu ordenou a seus artífices comprar as melhores safiras, rubis e diamantes que pudessem  encontrar. Ele investiu a maioria de seu patrimônio na confecção da peça real. Desenhou e trabalhou a coroa ele mesmo. Em seguida, usando uma grande escolta de homens armados para proteger-se de ladrões nas montanhas, foi viajar para o país vizinho, a fim de finalizar o negócio.
 
 
Tudo estava bem até que eles chegaram a um caminho estreito perto do topo da montanha. Um grupo de ladrões viciosos desceu como uma manada sobre a caravana. Embora a escolta de Pandu fosse maior em número, o susto dos cavalos e o caminho estreito dificultaram a defesa.
 
 
Em questão de minutos, os homens de Pandu tinham sido desarmados. Dois homens sujos e barbudos abriram a porta da carruagem do joalheiro, levaram-no para fora e, após atirarem-no ao solo, começaram a golpeá-lo. Pandu aguentou os golpes, pensando somente no saco escondido sob suas roupas, pressionando-o contra o peito. No saco estava uma coleção de pedras preciosas, com o qual ele havia planejado ganhar a afeição da filha do rei e da rainha, além da coroa.
 
 
- “Parai um momento!” - se ouviu gritar. Era uma voz que Pandu tinha ouvido antes, embora no início ele não se lembrasse de quem poderia ser. - “Parai de goleá-lo, eu disse!”.
 
 
Pandu abriu os olhos. Diante dele, vestido em peles de animais e com um pano vermelho na cabeça estava ninguém menos que Mahaduta, o escravo fugitivo, o qual ele tinha mandado  maltratar e torturar, anos antes. Pandu tinha ouvido falar que entre os ladrões das montanhas o chefe mais importante era um escravo de Kaushambi. O que nunca tinha lhe ocorrido é que o líder se tratava de seu próprio escravo Mahaduta.
 
 
- “Verificai o que é o que ele tem em sua mão direita” - Mahaduta ordenou firmemente. 
Um dos homens que tinha espancado o joalheiro pôs seu joelho sobre o estômago de Pandu e o outro sobre o braço separado do corpo e, assim, tomou o saco que o mesmo tentatva ocultar e manter consigo sem grandes problemas.
 
 
- “Guardarei isto. Eu já paguei por ele” - disse Mahaduta. Pegando da bolsa, guardou-a sob sua túnica de peles.
 
 
- “Não é mesmo, amo?”  - perguntou Mahaduta a Pandu, em tom cínico e cheia de amargura.
 
- “Devemos matá-lo, então?” - perguntou um dos ladrões.
 
 
Mahaduta olhou para Pandu, mas em vez de raiva ou medo, algo que poderia ter aumentado o seu ódio, ele só viu a tristeza e resignação nos olhos de sua vítima. Ele não sabia que Pandu estava se recordando das palavras do Venerável Narada, tão claras como se ele as tivesse ouvido ontem:“E não penses que estás livre da dívida contraída com Mahaduta por ter feito com que ele fosse torturado de forma cruel e sem razão. Não penses que tu estás sozinho neste mundo, ou que tuas ações não têm consequências”... “Se tu podes realmente entender isto em teu coração, tu já não terás mais vontade de causar dano a outros seres vivos, porque tu entenderás que eles são iguais a ti. Tu sentirás seu sofrimento como o teu próprio e sempre tentarás ajudá-los.”... Pandu suspirou. De repente se deu conta de que nunca aceitou as instruções de seu preceptor. Nunca realmente acreditou que elas fossem dirigidas a ele, mas sim para ser aplicados por outros. Ia morrer agora, de uma maneira violenta e antes do tempo, sem a chance de dizer adeus a sua família. Ele tinha sido a causa de tudo, a culpa era dele mesmo.
 
Nem sequer uma única vez tinha ocorrido em sua mente pensar sobre o destino de seu escravo, Mahaduta. Os sofrimentos que Mahaduta deveria ter passado nas montanhas durante os dias gelados de inverno; o caminho do mal que Mahaduta havia adentrado, cheio de desespero e perigos, empurrado pelas ações de Pandu. Todas estas considerações nunca haviam passado por sua cabeça. Mas agora era a hora de acertar as contas. Limpou a garganta e humildemente disse a Mahaduta:
- “É verdade, tu já pagaste.”.
 
Pandu virou a cabeça e ficou esperando o próximo golpe. Para sua surpresa, Mahaduta disse aos seus homens:
- “Deixai-o aí no chão. Sua carruagem tem um compartimento secreto debaixo do assento do motorista. Aberto vós encontrareis um baú cheio de moedas de ouro. Vamos dividi-lo em partes iguais. Hoje é um grande dia para todos nós.”.
 
Os assaltantes saltaram para dentro do carruagem com grande excitação. Mas Mahaduta não sentiu nenhuma alegria por realizar sua vingança. Tinha passado muitas manhãs frias, desejando que chegasse um momento como este. E agora que finalmente isto tinha chegado, sentia pesar e remorso, como se estivesse maltratando um membro de sua própria família. Dirigiu-se a seus homens, dizendo-lhes para parar de bater nos homens de Pandu.
- “Não matem nenhum; preocupai-vos em levar tudo o que puderdes.”.
 
 
O baú cheio de ouro serviu para eles como uma distração. Estava escondido no lugar onde Mahaduta o tinha colocado tantas vezes nos últimos anos. O chefe dos ladrões deixou que Pandu e seus homens deixassem as montanhas e voltassem para Kaushambi. Essa noite, quando seus cúmplices estavam a contar ouro e rindo, Mahaduta escondeu a bolsa que tinha tomado de Pandu numa fenda em sua caverna. Ele não tornou a tocar nela por um longo tempo.
 
 
 
Pandu reconhece os próprios erros, resigna-se e converte-se.
 
 
Após o roubo, Pandu já não era um homem rico. O joalheiro havia perdido a maior parte de seu capital e sem capital pouco se pode fazer. Mas ele não culpou ninguém por sua perda, senão a si mesmo.
- “Quando era jovem me comportei mal com os outros” - disse para sua família... “O que aconteceu comigo agora é simplesmente o pagamento por minha arrogância e dureza.”.
 
O arrependimento e o desejo de cultivar adequadamente os ensinamentos do Buddha vieram para ele agora de uma forma natural e Pandu aderiu à prática de recitar o nome de Buddha, sempre que sua mente não estivesse envolvida em negócios materiais ou conversações com as pessoas.
 
Gradualmente percebeu, no fundo do seu coração, que agora estava mais feliz do que quando ele era rico. A única coisa que se ressentia era que já não podia fazer oferendas ao mosteiro para apoiar o Dharma ou ajudar as pessoas pobres da cidade, algo que, antes de sua conversão, nunca tinha pensado muito em fazer.
 
 
 
Mahaduta e o Venerável Panthaka. A história do ladrão Kandata.
 
 
Vários anos se passaram. Um dia, Panthaka, abade do Mosteiro de Kaushambi, foi atacado pelo bando de Mahaduta, enquanto caminhava em uma peregrinação através das montanhas. Panthaka não levava dinheiro e Mahaduta deu-lhe alguns socos e deixou-o seguir. Panthaka, porém, com os golpes,  não caminhou mais naquele dia, preferindo se refazer.
 
Na manhã seguinte, logo após retomar caminho, Panthaka ouviu gritos de luta ao lado da estrada. Um homem urrava de dor. Panthaka apressou-se, na esperança de dissuadir os bandidos de modo qu deixassem de golpear o viajante. Mas em vez de um viajante inocente, era o próprio Mahaduta que estava sendo atacado, cercado por uma dúzia de seus próprios homens, como um leão acuado por cães de caça. Com sua vara Mahaduta derrubou vários dos ladrões, mas, finalmente, sucumbiu. Ele foi espancado com sua própria vara, até que ficasse estirado no chão.
 
Panthaka permaneceu oculto até que os bandidos se fossem. Então se aproximou de Mahaduta e viu que lhe restava pouca vida. Panthaka desceu a um riacho que corria entre as rochas, não muito longe dali. Encheu seu cantil com água fresca e levou-o para o homem moribundo.
Mahaduta bebeu e abriu os olhos lentamente. Ele gritou de dor:
 
- “Onde estão esses bandidos que tantas vezes eu conduzi para a vitória? Teriam sido enforcados há muito tempo se não fosse por mim”..
 
- “Acalma-te!” - disse Panthaka. “Não penses em teus camaradas nem nos crimes que fizeram juntos, pense sobre teu destino. Agora bebe água e deixa-me atar os ferimentos. Talvez tua vida possa ser salva.”.
 
Mahaduta olhou atentamente para Panthaka, pela primeira vez.
- “Tu és o monge a quem golpeei ontem mesmo! E agora tu vens salvar-me. Tu me envergonhas.”.
Ele bebeu um pouco mais de água e olhou ao redor dele.
 
- “E os outros escaparam. Cães ingratos! Fui eu quem os ensinou a lutar e agora se voltam contra mim..."
 
- “Tu os ensinaste a lutar” - disse Panthaka, - “e te pagam lutando. Se tu lhes tivesse ensinado a bondade, serias pago com amabilidade. Recebeste a colheita que semeaste.”
 
- “O que dizes é verdade. Muitas vezes temi que ainda se voltariam contra mim... ”,  - se queixou Mahaduta quando Panthaka tentou levantar-lhe pelo ombro.
 
- “Não acho que possas salvar a minha vida, mas diga-me, se está ao teu alcance, como posso salvar-me dos sofrimentos do inferno, os quais mereço como pagamento por uma vida de iniqüidade? Ultimamente, sinto como se meu fim estivesse próximo, e a angústia do que virá a seguir me pesa como se carregasse uma grande pedra pressionando meu peito; às vezes, asfixiado por esta possibilidade,  mal consigo respirar.”.
 
- “Arrepende-te sinceramente de tuas faltas e ofensas e reforma-te.” - Panthaka disse. “Arranca pela raiz a ganância e o ódio de teu coração e, em vez disso, preenche-o com pensamentos de amor para com todos os seres vivos.”.
 
- “Mas eu desconheço esses bons sentimentos” - disse Mahaduta. “Minha vida tem sido uma história cheia de maldade, sem nada de bom. Eu vou direto para o inferno sem ter a oportunidade de ir pelo Caminho nobre pelo qual tu tens caminhado, mestre do Dharma!
 
- “Não te desesperes...” - respondeu Panthaka. “E não subvalorize o poder do arrependimento e da reforma. Lembra-te de que um único pensamento de arrependimento sincero pode riscar dez mil eons repletos de maldade.
 
Já ouviste falar do grande ladrão Kandata, que morreu sem se arrepender e, por sua cruedades na terra, caiu no Inferno Avici? Depois de ter sofrido lá durante vários eons, aparecendo o Buddha Sakyamuni no mundo, alcançou a iluminação sob a árvore Bodhi. Naquele momento da iluminação do Buddha Shakyamuni, raios de luz emitiram-se espontaneamente por entre suas sobrancelhas [*], alcançando os céus e também a região do Inferno Avici e inspiraram os seres que lá estavam sofrendo em decorrência de seu karma a ter esperança e a procurar uma nova chance. Olhando para cima, Kandata viu que os raios de luz vinham do Buddha Shakyamuni meditando debaixo da árvore Bodhi e suplicou:
 
-“Salvai-me, salvai-me, ó Honrado pelo mundo! Estou sofrendo aqui por todo o mal que fiz, e não posso sair! Me ajude a trilhar o caminho que tu percorreste, ó honrado pelo mundo!”
 
[nota: a respeito da luz emitida de entre as sobrancelhas do Buddha Shalyamuni, ela se trata de um dos sinais característicos de sua iluminação. Conforme podemos ler, por exemplo, no capítulo inicial do Sutra do Lótus (Saddharma Pundarika Sutra):  “Buddha Shakyamuni emitiu um raio de luz do tufo de pêlo branco entre as suas sobrancelhas, um dos seus sinais distintivos, iluminando dezoito mil mundos na direção Oeste. Não houve lugar algum onde a luz não penetrasse, alcançando desde baixo o inferno Avicci até ao alto, o céu de Akanishtha.”...]
  
Buddha, na força do desabrochar de sua iluminação, olhou  para o Inferno Avici  e viu Kandata.
- “Guiar-te-ei em tua liberação” - disse para o ladrão -, “mas isto deve ser através de teu próprio karma. Que coisas boas fizeste, Kandata, quando estavas no mundo dos homens?”.
 
Kandata permaneceu em silêncio, uma vez que tinha sido um homem muito cruel. Mas o Honrado pelo mundo, na percepção de seu olho búdico, olhou a acumulação kármica de Kandata e viu que uma vez, quando ele estava andando por um caminho na floresta, evitou pisar numa aranha e pensou: "a aranha não feriu a ninguém, porque iria eu esmagá-la?". Vendo isso, o Buddha enviou uma aranha, a qual, à sua vez, soltou um fio muito fino de teia que desceu até o Inferno Avici.
- “Segura firme o fio de teia” -  disse a aranha. “E sobe depressa!”.
 
Kandata apressou-se em agarrar-se ao fio e assim começou a subir. O fio estava aguentando bem. Subia rápido, e cada vez mais alto. De repente ele notou que o fio tremia, como se um novo peso houvesse se lhe adicionado. Kandata olhou para baixo e viu que outros seres condenados ao inferno haviam começado a subir pelo fio de teia, tal qual ele. O fio estirava-se cada vez mais, porém sem romper-se. Mais e mais seres do inferno agarravam e passavam a subir pelo fio de teia. Kandata já não olhava para o Buddha, ao invés disto, cheio de medo, olhava para os outros seres do inferno subindo atrás dele. Kandata interrompeu sua escalada: - “Como pode este único fio de teia suportar o peso de todos?” - refletiu.
- “Este fio de teia é meu! Este fio de teia é meu!” - Gritou aos que vinham atrás. “-Deixai-o! Deixai-o! É meu!”
Imediatamente o fio se rompeu e Kandata e os demais caíram novamente nos infernos.
 
 
 
Mahaduta considera o exemplo da história de Kandata e morre.
 
 
- "O arrependimento de Kandata não foi sincero” - disse Panthaka a Mahaduta. “Não se emendou. O fio de teia teria resistido até o fim, porque um pensamento generoso tem força suficiente para salvar a vida de milhares [*]. Mas Kandata rompeu o fio de teia. Aferrou-se à ilusão do ego e maus hábitos eram arraigados e fortes nele. Não estava disposto a ajudar os outros. Mesmo o honrado pelo  mundo não pode salvá-lo.”.
 
 
[nota: o Buddha Shakyamuni cumpriu o Sanatana Dharma (Lei Eterna) e a Justiça. Kandata, em decorrência de acumulações  molestas não corrigidas enquanto em vida,  haveria de subir por seu próprio karma, pois não padecia injustamente nas esferas de restrição... O que há de ser feito, há de ser feito enquanto nesta efêmera existência humana...]       
 
 
- “Entendo. Deixa-me pensar e verificar se encontro em mim mesmo um 'fio'   que possa ajudar-me” - disse Mahaduta chorando. “Se houver alguma coisa boa que possa ser feita, não a guardarei para mim”.
 
Os dois homens permaneceram em silêncio por um tempo. Enquanto isso, Panthaka lavou as feridas do Mahaduta. O chefe dos ladrões respirava agora com tranquilidade. No final, ele disse:
- “Há uma coisa boa que fiz uma vez, se se pode chamar 'bom' o parar de fazer algo mau.”.
 
- “Sim, pode” - falou Panthaka.
- “Sim, há uma coisa boa que eu ainda posso fazer. Tu sabes, por acaso, de Pandu, o rico  joalheiro de Kaushambi?”
- “Eu sou de Kaushambi e conheço-o bem” - disse Panthaka. “Embora ele não seja mais rico.”.
 
- “Não mais? Lamento ouvir isso. Algo raro alguém dedicado aos negócios como ele perder os bens. Eu deveria estar contente, porque foi Pandu quem me ensinou a ser rude e a maltratar as pessoas. Quando eu era um jovem escravo, mandou-me  aprender a lutar com um lutador, com o objetivo de fazer-me seu guarda-costas. No intuito de fazer-me habilidoso e determinado como seu segurança pessoal, sempre que eu abusava de alguém, ele me recompensava. O coração dele era duro como uma rocha. Uma vez ele fez com que eu fosse açoitado... e foi então quando fugí para as montanhas. Ouvi dizer que mudou, e agora é conhecido em todos os lugares por sua bondade e benevolência. É difícil imaginar. Isso é verdadeiro,  Mestre do Dharma?.".
- “Sim; assim é” - disse Panthaka. “O poder do arrependimento sincero é verdadeiramente inconcebível e nunca deixa de nos surpreender.”.
 
- “Muitas vezes planejei me vingar desse homem” - Mahaduta continuou. “Desejava torturá-lo da mesma forma como ele me torturou. Quando finalmente caiu em minhas mãos, olhei seu rosto, enquanto ele estava caído indefeso na estrada, espremendo um saco de jóias contra seu peito, resignado a morrer, mas não pude, entretanto, fazê-lo, mestre do Dharma. Senti como se fosse torturar meu próprio irmão.”.
 
- “Todos os homens são irmãos” - disse Panthaka. “Cada homem tem sido seu pai em uma vida passada e cada mulher sua mãe. E com este homem, especialmente, tu tens fortes laços de afinidade, para bem e para mal.”.
Mahaduta concordou:
 
- “Deve ser assim. Naquele dia eu despojei Pandu de suas jóias e ouro, mas deixei que ele e seus homens fossem embora. Dei o ouro a meus capangas para que eles não protestassem e aceitassem deixá-los escapar vivos. Mas ainda tenho uma bolsa de joias escondidas em uma fenda numa caverna. Por algum motivo não consegui me livrar delas. Não era só pela questão de tratar-se a coroa, em vista de seu valor, de difícil venda. Eu senti que tinha que mantê-la comigo para algo. Não sabia porque. Agora me alegro em ter decidido desta forma.
 
Mahaduta parou momentaneamente e voltou-se para Panthaka:
- “Concede-me um último favor, Mestre do Dharma. Minha caverna está atrás de um cedro muito alto que fica junto do riacho, a meia milha acima de nós. Tu podes ver o topo do cedro pelo caminho na estrada. A coroa de Pandu e suas jóias estão em uma fenda vertical à esquerda da entrada da caverna. No fenda, siga em frente e então acima e à direita. Conseguirá lembrar?”.
- “Sim” - respondeu Panthaka.
 
Mahaduta continuou:
- “E ele não deverá ir só. Diga a Pandu que recrute trinta homens armados. Meus homens são poucos e sem mim falta-lhes coragem. Pandu poderá derrotá-los facilmente. Diga a Pandu que lamento o ocorrido, e que desejo que reconquiste toda sua riqueza novamente. Desejo a todos os homens riqueza e felicidade, toda a riqueza e felicidade que lhes roubei. Se sobreviver ou em  minha próxima vida, me comprometo a ser como tu, Venerável Mestre do Dharma e ajudar os homens capturados na teia do sofrimento que eles próprios criaram com suas ações irrefletidas e estúpidas.”.
 
Mahaduta esgotado, se reclinou. Já não sentia nenhuma dor por suas feridas, mas sua vida estava acabando. 
 
De repente, um grande sorriso apareceu em seu rosto. Ele levantou a mão apontando para cima e exclamou:
- “Olha! O Buddha está ali em seu assento, prestes a entrar no Nirvana. Seus discípulos, os grande Arhants, estão a seu redor! Ele está sorrindo para mim!”.
 
O rosto de Mahaduta começou a resplandecer.
- “Que maravilhosa benção veio ao mundo!”...
 
- “Sim, foi uma benção” - disse Panthaka. “Ele apareceu no mundo por causa de sua compaixão por todos os seres vivos, para nos instruir sobre o que mais importa: o problema da vida e da morte. Ensinou-nos a despertar do sofrimento deste mundo e ensinou-nos que o desejo egoísta é a fonte de todas as dores. Ele nos ensinou o caminho correto para pôr fim ao sofrimento. Ele nos ensinou a moralidade, concentração e sabedoria para remover nossa ganância, enfado, raiva e ignorância. Ele mesmo, através de muitas vidas de cultivo e renúncia, pôs fim aos seus próprios desejos egóicos e com bondade, compaixão, alegria e generosidade, ofereceu-se-nos como um exemplo. Se todos os homens e mulheres pudessem refugiar-se com Ele, este mundo não seria o local pobre e perigoso que é agora.”.
 
Mahaduta assentiu. Bebeu das palavras do monge como um homem sedento a quem  se oferece água fresca. Ele tentou falar, mas não pôde continuar. Panthaka entendeu o que ele queria e lhe  administrou os Três Refúgios, para que também pudesse ser um discípulo da Triratna (Buddha, Dharma, Sangha). Panthaka  pronunciou para ele os Quatro Grandes Votos do Bodhisattva:
 
"Os seres vivos são inumeráveis; faço o voto de salvá-los.
As aflições são intermináveis; faço o voto de extinguí-las.
As portas para o Dharma são incontáveis; faço o voto de penetrá-las.
O caminho de Buddha é insuperável;  faço o voto de cumprí-lo...
 
 
Ele também repetiu três vezes o versículo de arrependimento do bodhisattva:
 
"De todo o mal que eu fiz no passado,
Causado por cobiça, ódio e estupidez sem limites,
E produzido através da boca, demais membros do corpo e mente,
Agora me arrependo e emendo.".
 
 
E o seguinte verso:
 
"As ofensas decorrentes da mente serão arrependidas na mente.
Quando a mente é extinta, as ofensas desaparecem.
Com a mente em repouso e apagadas as transgressões, 
ambas pairam vazias.
Isto é chamado o verdadeiro arrependimento e reforma.".
 
 
Enquanto Panthaka estava recitando, Mahaduta exalou pela última vez. 
Morreu com um sorriso no rosto...
 
 
O Fim.
 
Panthaka foi com eles, e após haver cremado o corpo de Mahaduta e recolhido suas cinzas em uma urna [*], conduziu o povo presente na recitação de Sutras e mantras. Ele falou brevemente sobre o poder do karma e o poder ainda maior de arrependimento e da reforma. Ele também recitou os seguintes versos:
 
Ninguém pode nos salvar exceto nós mesmos.
A força gerada em nós é mais efetiva que a força derivada de outros.
Nós mesmos devemos trilhar o caminho da iluminação correta,
Com Buddha como nosso grande mestre e guia.[**]
 
[nota: (*) os budistas não lançam as cinzas em rios, como os hindús.].
 
 
-“Nosso velho mestre Narada” - Panthaka continuou -, “sempre nos lembrou que somos os únicos responsáveis por nossas próprias ações, e que somos responsáveis pelo que nos acontece como resultado dessas ações. Nem Indra nem Brahma nem outro ser irá nos premiar ou punir [**]. Nós  recompensamos e punimos a nós mesmos. Tudo vem da mente, e, portanto, o mundo é exatamente como nós o criamos. Este homem, Mahaduta, quem hoje podemos ter cremado e separado suas cinzas, levou uma vida de maldades, guiado por maus pensamentos, nunca felizes. Mas no final ele mudou. Seu arrependimento e votos de reforma comoveram o próprio Buddha, que apareceu diante dele e o abençoou. Sua vida terminou com uma ação de perdão e morreu feliz. Todos nós podemos aprender com seu exemplo, porque nenhum de nós é livre de faltas e falhas. A força do Karma nos conecta a todos como uma teia de aranha, criada porém por nós mesmos. E ao mesmo tempo, todos somosa capazes de nos libertar através do arrependimento sincero.". 
 
 
[nota:  (**) a finalidade das tradições espirituais é facultar às comunidades nas quais elas estão inseridas conexão e interação com a Dimensão Sagrada, mediante transmissões (ritos) e ensinamentos.  A responsabilidade é pessoal; a salvação e/ou a liberação são individuais. Nenhuma tradição espiritual nunca predicou que os objetivos de reintegração possam ser obtidos sem a tomada das medidas necessárias por nós mesmos, ainda que para alguns poucos essas medidas possam ser até mesmo minimais. Nenhuma tradição espiritual, mesmo aquelas não posicionadas com uma Doutrina da Causalidade como a que está estabelecida no contexto hindo-budista, jamais especulou que homem algum colherá aquilo que não semear. O desenvolvimento interior/espiritual - e o interesse nessa construção -  compete a cada qual. Budismo e Hinduísmo explanam, em comum, os mesmos Devas e Maras. Em continuação, a formulação  budista acima apresentada parece renegar alguma formulação cara ao Hinduísmo. Na Índia do Budismo inicial, o Hinduísmo resistiu ao Buddhadharma - e o Buddhadharma, para ter a sua própria posição e se consolidar - precisou resistir também a alguns aspectos do Hinduísmo. Só o correr do tempo trouxe apaziguamento, decidindo os mosteiros budistas por ter, entre os monges, aqueles responsáveis por receber visitantes de outras posições, como eruditos e discorrer sobre assuntos doutrinais (por exemplo: Shri Vagisvarakirti, antes de se tornar abade e Shri Naropa, antes de se tornar yogue). 
No mais, entre os devas, há Yama - que é, também, um bodhisattva Dharmapala – protetor do Dharma - no contexto budista, juntamente com Mahakala/Shiva e Kali. A função kár,ica de Yama é conduzir adequadamente os mortos que não lograram alcançar resultado com a Dimensão Sagrada nem com o nível ético, além de reger as hostes que integram os Infernos (responsáveis pelo cumprimento das condenações decorrentes de posicionamentos e condutas mesquinhos-miseráveis, cruéis, pérfidos  e malignos); e acarear com as próprias obras – bem como tentar livrar - quem fracassou na sua jornada num ciclo temporal de vida. Só vai até Yama quem fracassou, no todo ou em parte significativa, perdendo a conexão com sua família espiritual, se a teve. A conexão com uma familia espiritual é realmente importante; os homens e mulheres sagrados fazem a “ponte” entre nós  a Dimensão Sagrada, bem como podem propiciar direção espiritual idônea: no Buddhadharma há a tomada de refúgio na Triratna (Três Joias): Buddha, Dharma e Sangha. Sei de muitos budistas que não têm dúvidas de que Buddhas, Bodhisattvas e Dharmapalas, Arhants e Mães do Dharma nos ajudam benignamente no processo espiritual, uma vez que sentem a ligação com essas posições budistas em si mesmos, através das sadhanas e demais práticas regulares. Aderir à Triratna implica, a um só tempo, interagir com a Dimensão Sagrada (Buddhas, Bodhisattvas, Arhants, Mães do Dharma - e também os Devas e Maras) e tomar, na Triratna, refúgio. 
 
No Cristianismo, o equivalente é a tríade Cristo, Evangelhos, Igreja - além da comunhão com os santos... Em ambos os casos (na verdade, em todos os casos), a metanoia trata-se de uma profunda e consistente purgção interior e a ascese interior-espiritual é parte integrante e necessária para as elevações e iluminação... Uma ascese interior-espiritual, se adequadamente realizada, confere, entre outras realizações: 1) 'altura', a qual implica, também, 2)  o surgimento de insights e fruições, 3)  a ampliação da estabilidade interior; através disto dissolve-se o sofrimento das dúvidas (“há mesmo céus e infernos?”, “há mesmo anjos e demônios?”, “existe mesmo alguma finalidade última?”, “há mesmo retribuição ou acúmulo de negatividade em decorrência da conduta ética-moral?”, “mas os santos não estão mortos?”, “sucede realmente alguma alteração quando alguém toma refúgio na Triratna ou recebe o batismo ou isto se trata de meras formalidades?”; “Cristo surge para uma pessoa, realmente, nalgum ponto localizado na altura do coração ou isto é apenas o nosso sentimento humano?”, etc...) e é possível oferecer uma ajuda melhor aos outros... São Boaventura, perguntado sobre “o que é Teologia?”, respondeu a um monge que estudava muito: “Só se pode falar daquilo que se experimenta...”. 
 
Por fim, em relação à exposição da doutrina da Causalidade (Hetuvada) aqui, vale lembrar que o que denominamos “Hinayana” ou “Pequeno Veículo”, se trata, com efeito, do Caminho dos samanas  (páli)/sramanas (sânscrito), isto é: ascetas, renunciantes retirados da vida social secular, compromissados com as regras patimokkha (páli)/pratimoksha (sânscrito) acerca da vida monástica, constantes do Vinaya, além do cultivo e desenvolvimento das paramis (páli)/paramitas (sânscrito) ou perfeições (dez paramis no Budismo Hinayana; seis no Mahayana/Vasto Veículo), com um nível alto, mesmo incomum, de estudos e dedicação aprofundada às práticas objetivando ascese interior/espiritual (como as técnicas anapana-sati/atenção no fluxo respiratório, samatha/estabilização e vipassana/insights, samadhis ou contemplações), além de shraddha (shraddha = fé; não, porém, a fé cega, a qual, fundamentada apenas em palavras - ao invés de realizações interiores  - é também inconsequente,  beirando nalguns casos/adentrando em outros, a zona do fanatismo). 
 
A doutrina da parinamana/transferência de mérito é evidenciada com o Buddha Amitabha. Os pranidhana budistas - votos altruístas dos bodhisattvas - são basicamente em um total de dez; mas o Buddha Amitabha tem quarenta e oito pranidhanas, todos objetivando a perspectiva de iluminação direcionada para o bem dos seres sencientes. A recitação contínua do nome do Buddha Amitabha (“Namo Amitabhaya Buddhaya” em sânscrito ou “Namo Amida Butsu” em japonês) implica o cumprimento de outros desenvolvimentos como o cultivo/desenvolvimento das seis paramitas do Mahayana e a decisão pessoal dos votos pranidhana. 
 
No Cristianismo, os fariseus não se surpreenderam por Cristo efetuar curas e milagres, mas se escandalizaram que ele afirmasse ter “poder para, também, perdoar pecados”  (São Marcos 2:1-11 - “O paralítico de Cafarnaum”). Do ponto de vista budista, essa posição de Cristo corresponde a uma posição Parinamana/transferência de mérito. 
 
No Majjhima Nikaya, cap. 130, o Buddha Shayamuni narra – a partir de sua visão interior - o encontro, com Yamaraja, de um homem que preferiu a adesão à mesquinhez e ao mal em sua jornada. 
 
“Bhikkhus, eu lhes digo isso não como algo que ouvi de algum outro contemplativo ou brahmane. Eu digo isso como algo que na verdade eu compreendi, vi e descobri por mim mesmo.”
 
“...os guardiões do inferno agarram esse ser pelos braços e o apresentam ao Rei Yama, dizendo: ‘Senhor, este homem maltratou a mãe dele, maltratou o pai dele, maltratou contemplativos, maltratou brahmanes; ele não demonstrou respeito pelos anciões do seu clã. Que o rei ordene o seu castigo.”. (pela doutrina da Causalidade, cada homem e mulher já tem sido, em algum momento, nosso pai ou mãe)
 
Yama lhe pergunta, polidamente,  se ele nunca fez caso do nascimento, da doença, da velhice, das trangressões e atos vis (crimes e faltas contra as pessoas) e da morte e, refletindo sobre essas circunstâncias, não procurou se dedicar a atos de bondade com a palavra, o corpo e a mente.
 
“Bom homem, nunca te ocorreu, um homem inteligente e maduro, que: “Aqueles que praticam ações ruins estão sujeitos a vários tipos de tortura aqui e agora; então o que acontecerá depois da morte? Sem dúvida, será melhor que eu faça o bem através do corpo, linguagem e mente”?’ O entrevistado respondeu: ‘Eu fui incapaz, venerável senhor, eu fui negligente.’ Então o Rei Yama diz: ‘Bom homem, devido à negligência tu não fizeste o bem através do corpo, linguagem e mente. Com certeza, eles [as hostes dos Infernos] irão tratá-lo de acordo com a tua negligência. Mas essa tua ação prejudicial não foi cometida por tua mãe ou por teu pai, ou teu irmão, ou tua irmã, ou por teus amigos e companheiros, ou por teus pares e parentes, ou por contemplativos e brahmanes ou pelos devas: essa ação prejudicial foi cometida por ti mesmo, e tu somente experimentará o resultado dela...”
 
O entrevistado informa que foi negligente e não se dedicou a atos de bondade com a palavra, o corpo e a mente;  Yama permanece, então, em silêncio...
 
“Agora” - continua o Buddha Shakyamuni - “os guardiões do inferno [tomando aquele homem] torturam-no com os cinco espetos. Eles atravessam a mão dele com um espeto incandescente, atravessam a outra mão com um espeto incandescente, atravessam um pé com um espeto incandescente, atravessam o outro pé com um espeto incandescente, atravessam a barriga com um espeto incandescente. Assim, ele sente sensações dolorosas, torturantes e penetrantes. No entanto, ele não morre enquanto aquela ação prejudicial não tiver esgotado o seu resultado..”. 
 
Essa questão da regressão e queda no Inferno Avici – para aqueles que têm confiança no Buddha, uma vez que ele expõe uma narrativa que acompanhou através de sua visão interior -, do ponto de vista do estudo comparado das religiões, faz lembrar que Cristo recebeu, também, perfurações nas duas mãos e nos dois pés. A quinta perfuração foi feita pelo soldado Longinos, justamente na região lateral da área abdominal... estando as cinco perfurações correlacionadas à condenação do Inferno Avici, desde esta apreciação, Cristo, que já antes - sendo a Encarnação do Verbo - e muito mais ainda após seu calvário (o calvário se dá sobre a humanidade de Cristo, sobre o homem Jesus)  tem poder para perdoar pecados, conceder refúgio e guiar tanto para a salvação quanto para a liberação (liberação para  aqueles, obviamente, com vocação para a perspectiva do Conhecimento Direto, Unitivo)... Desse texto emerge não apenas uma compreensão fundamentada em documento tradicional oriental sobre a  validade do sacrifício de Cristo, mas, também, pela compreensão da profundidade desse sacrifício, é possível intuir a validade da elevação interior atingida por São Francisco de Assis (o qual recebeu a dádiva das cinco chagas de Cristo). No Japão do século XIV, embora os budistas se contrapusessem ao Catolicismo por não conhecer a integralidade da doutrina, ainda assim viam Cristo como um Buddha - da mesma forma como o Buddha Amitabha...
 
A observação da doutrina da Lei do Karma e a resolução de observar valores éticos sem a tomada de Refúgio e demais desenvolvimentos (estudos e práticas de ascese interior/espiritual) nos conduzirá somente à realização do nível ético. Não há iluminação nem elevações significativas sem a realização do nível ético, uma vez que o mesmo as integra como patamar necessário e não-prescindível;  mas o nível ético, sozinho, de per si, não faz nem as elevações nem  a iluminação, as quais dependem também do cumprimento dos demais desenvolvimentos como o estudo e as etapas da ascese interior/espiritual...]   
 
 
Panthaka fez com que na tumba onde a urna com as cinzas de Mahaduta foi depositada fosse anotado o seguinte epitáfio sobre uma lápide:
 
“Aqui jaz Mahaduta, 
que foi ladrão de estradas.
Viveu cercado de violência; 
e a violência trouxe sua queda.
 
No final, arrependeu-se 
e devolveu os frutos de seu roubo.
E prometeu trilhar o Caminho Correto.
 
O Buddha sorriu-lhe 
e confirmou sua transformação.
Maha Prajna Paramita!”...
 
 
A lápide ao lado da passagem da montanha acabou sendo conhecida como “a tumba do ladrão arrependido”, e anos mais tarde um altar foi construído ao seu lado. Ali viajantes e peregrinos paravam, se prostravam ante o Buddha e rezavam para ter uma boa viagem e para a conversão dos homens maus. 
 
 
Pandu tornou-se novamente um homem rico; e ainda mais rico do que já tinha sido. No entanto, ele era agora mais interessado em fazer doações do que em ganhar dinheiro e deixou que seus filhos se encarregassem dos negócios. Ele fez o melhor que pode para ensinar a seus filhos que a prosperidade alcançada de forma fraudulenta não é duradoura e que se eles fossem generosos e amáveis com os outros garantiriam, assim, um futuro feliz. Sua morte veio pacificamente, a uma idade avançada. Quando sentiu que sua morte era já próxima, chamou seus filhos, filhas e netos para junto de sua cama e disse-lhes :
 
- “Queridos filhos  e crianças, se no futuro algo ruim acontecer em vossas vidas, não culpeis aos outros, mesmo que pareça que eles são a causa da vossa desgraça. Olhai para dentro de vós mesmos. Vede onde sois orgulhosos, gananciosos, ávaros ou rudes. Emendai as falhas dentro de vós mesmos, pois é algo que vós sempre podeis fazer. Se a mudança parece estar além de vossas possibilidades, procurai a ajuda de um professor do Dharma e rezeis para os Buddhas e Bodhisattvas para ajudá-los. Uma vez que mudeis vossos defeitos, felicidade e boa fortuna virão de uma forma natural. E quando bastem  não as guardeis para vós próprios, mas compartilhai. Então elas nunca secarão de vosso rumo. Lembrem-se de mim, através do versículo que entoarei, e que o venerável Narada me ensinou quando o conheci pela primeira vez: 
 
Aquele que causa danos aos outros prejudica também a si mesmo;
Quem ajuda os outros  ajuda a si mesmo ainda mais.
Para encontrar o Caminho Puro, o Caminho da luz,
Abandonai a falsidade de que tendes um ego substancial...”.
 
 
                                   _______________________
 
 
 
CRISTIANISMO. JUDAÍSMO.
 
Entre as questões sensíveis, importantes para a Teologia ocidental – e que, justamente por assim serem, conduziram a muitos para uma melhor compreensão do que realmente é a Divindade [*] – estão a questão do Mal, das guerras e misérias,  e de por quê coisas ruins sucedem a pessoas que procuram seguir, em suas vidas pessoais, o bem. Uma das respostas da Teologia cristã é que o mal é uma insuficiência – o que é verdadeiro [**] . Outra, que Cristo padeceu por nós com dignidade e sem negar o Pai (valor ético-espiritual para os cristãos). Finalmente que, pela verificação dos informações contidas nos documentos do Novo Testamento, a ocorrência de situações aflitivas, como misérias e guerras - apesar da possibilidade de uma vida espiritual verdadeira -, num sentido geral orienta os cristãos a estarem atentos,  vigilantes para um declínio das condições do homem – ao invés de algum “paraíso terrestre”.
 
 
As orientações judaico-cristã e islâmica, não lidam com a Causalidade na perspectiva hindo-budista de relação karma-renascimento. Mas a interioridade humana tem questionamentos: os protestantes, por exemplo, desenvolveram uma espécie de “doutrina da hereditariedade”. Se há elementos desestruturados na linha genealógica de meus familiares – uma consideração envolvendo várias gerações, como na Bíblia - a ocorrência de tendências desviadas (vícios, crime, má-índole, psicastenias) nos descendentes deve ser pesquisada também em sua árvore genealógica. Essa doutrina é questionável em muitos aspectos, mas demonstra a indagação e preocupação das pessoas com respostas, ao menos, aceitáveis. Nas narrativas bíblicas, voltando ao exemplo do 2º livro do Profeta Samuel, capt. 11,  o próprio rei David, tendo sido o escolhido para receber a unção determinada pelo Senhor dos Exércitos (YHWH) ao profeta Samuel, acabou, mesmo encontrando-se ungdo e favorecido pelos Céus,  por cometer um adultério e um homicidio a traição (de seu oficial militar de confiança, Urias) o que teve consequências desastrosas para o rei David individualmente e também para o reino, o qual, no final, com a falha ulterior do rei Salomão, se divide em dois: as dez tribos de Israel e as duas de Judah/Benjamin, além da sequência de infidelidades no domínio religioso para com o Senhor dos Exércitos (YHWH), cometidas por reis, nobres e mesmo os próprios sacerdotes de Israel e Judah.
 
[notas: (*) as declarações do próprio Cristo nos Evangelhos evidenciam que a questão do Pai trata-se de um mistério acima da comprensão humana ordinária...
(**) há também a questão da “Queda” do homem – tanto a “Queda”, no contexto judaico-cristão, quanto a Avidya/Ignorância no contexto hindo-budista, implicam, para sua correção,  uma reintegração...]
 

Avancei sozinho pelo Antigo Testamento (ou a Tanach judaica). 

 

A primeira coisa que percebo é o contexto: arcaico e difícil - guerras tribais e entre as pequenas nações que por ali se formaram, com matanças e despojos; presença de religiões decaídas que executavam sacrifícios humanos e declínio moral de alguns povoados ou populações.

 

Segunda coisa: a religião se faz por mediação de algum homem sagrado, sacerdote ou profeta (por exemplo: Melquisedeq, Abrahão, Balaão); os ritos e ensinamentos são transmitidos às comunidades e individuais por essas pessoas sagradas, as quais atuam como “pontes” entre a comunidade e a Dimensão Sagrada. 

 

Sem essas “pontes” não há interação apropriada com a Dimensão Sagrada e a vida espiritual, se verdadeira, se dá na esfera da Via Mística (sem ritos legítimos nem “pontes”), apenas com os elementos benignos da boa vontade e valores éticos; os resultados na Via Mística, porém, para surgirem, requerem uma carga muitíssimo maior de esforços e observação de medidas; daí a necessidade de filiar-se a uma família espiritual idônea e tomar refúgio bem como receber as transmissões.

 

 

No caso específico da Igreja, por exemplo, com já observei neste site-blog e torno a reiterá-lo, as alterações do Concílio Vaticano II (1961) “desligaram” a Missa Tradicional, rito que chegou à sua forma final à época de São Gregório Magno (séc. IV), sendo um desenvolvimento absorvido pelo Catolicismo que logrou, com pouquíssimas alterações, simplesmente, preservar o nexo de continuidade, interação, contrapartida e conexão com aquele do Cristianismo Primitivo (pré-Constantino). [*]

 

[nota: Isto é real? O Cristianismo Primitivo e o Catolicismo geraram pessoas santas, fora do nível ordinário; geraram também, pessoas interessadas em descobrir a possibilidade e a veracidade de uma Verdade Eterna. Sem ter uma doutrina da Liberação formalmente exposta na Bíblia - a qual não é, realmente, um manual ou tratado de Metafísica - acabaram por desenvolver, no objetivo de compreender o que é Deus, essa posição. 

O Protestantismo gerou pessoas ajustadas, mas com uma resposta espiritual, quando benigna (nos casos idôneos), limitada; gerou o fundamentalismo sola scriptura (rejeitando a Sabedoria do Cristianismo Primitivo, a qual é apenas verificada intelectualmente nos cursos de teologia, sem qualquer influência na vida espiritual dos fiéis) e uma confiança equivocada na posição movediça, vigarista e baseada num erro de julgamento-avaliação, que induz boa parte dos protestantes a acreditarem que são desenvolvedores da “veracidade e pureza cristãs” além de detentores “exclusivos” das mesmas; tudo isto é oriundo da estrutura escorregadia, repleta de remendos e viciada, do Protestantismo...].

 

 

O principal rito cristão, porém, é a Eucaristia. Mas a Missa Tradicional lhe era sua legítima instrumentação. 

 

Com o desligamento da Missa Tradicional, a Eucaristia deslocou-se para a Via Mística, juntamente com a Igreja. 

 

Deste ponto de vista, a Igreja teria que rezar e fazer muito mais penitências, para repor o que foi “desligado”, e, assim fazendo, lastrear e validar este deslocamento. 

 

Entretanto, este esforço adicional suplementar não é levado a efeito, pois não foi previsto pela inteligência do Concilio Vaticano II, que de certa forma, agiu com uma forma de percepção parecida com a dos protestantes [*].

 

[nota: Nem os opositores da Igreja lhe causaram tanto mal quanto esta decisão intelectual - sem levar em conta o que poderia suceder com a contrapartida do rito - do Concilio Vaticano II. 

Embora a decisão de “desligar” o rito tradicional fosse tomada por experts em teologia e liturgia (ou quase) -, o aggiornamento (atualização) teve como consequências de curto e médio prazo o esvaziamento contínuo das vocações - mesmo onde o Catolicismo era forte, por ser bem estruturado, como em França. O Concílio Vaticano II enquadrou como exageradas, em relação à veracidade teológica, as observações dos trentistas (Concilio de Trento, 1545-1563 – cujas decisões favoreceram a manutenção do rito tradicional, no interim do movimento de Contra-Reforma). O resultado para a Igreja com a Missa Tradicional se desdobrava em nutrição e fortalecimento espiritual em todos os seus setores, justamente por não se tratar de uma construção/relação puramente intelectual, mas da preservação de uma transmissão/rito advinda diretamente da continuidade com o desenvolvimento da Igreja Primitiva - o que deveria ser motivo de paz e orgulho. ]

 

 

A Tanach/Antigo Testamento mostra os homens como eles são; alguns relatos são duros de engolir mas, se se tratasse de fraude ou vigarice, para quê mantê-los num livro sagrado? Não seria mais fácil omiti-los? 

 

A Tanach tem relatos acerca dos “filhos de Belial”: um desses foi o chefe do Exército, Joabe (2º livro de Samuel,  1º livro das Crônicas), condutor das forças guerreiras do rei David - Joabe assassinou a traição Abner (2Samuel, 3) e Asa, ambos chefes de exército, sendo que o rei David pretendia colocar Asa em seu lugar,  passando Joabe para segundo em comando, por ter Joabe assassinado Absalão, filho rebelado de David, contra a ordem do rei para se limitar à sua captura (2Samuel 18:15). 

 

Mais adiante, no 1º livro dos  Reis, cap. 21:1-31, as falsas testemunhas compradas pela esposa do rei Acabe, a rainha estrangeira Jezabel – a qual era de Sidon e seguidora do culto a Baal, o qual ela entendia como sendo superior à religião nativa dos judeus, da qual Jezabel se tornou inimiga - que acusaram e levaram à morte por apedrejamento o jizrelita Nabote, com o fito de que o rei Acabe pudesse se apossar da uma sua propriedade (a qual Nabote havia recusado vender ao rei: “Me guarde o Senhor que te dê a herança de meus pais” disse Nabote ao rei Acabe, recusando todas as suas ofertas e a alegação de que sua propriedade era contígua aos arredores da casa real), - e já se vê que a coisa não era boa. 

 

Já o Livro dos Provérbios identifica para o leitor não apenas a Sabedoria (“A filha de Deus”), mas a presença do justo e do ímpio; do prudente e do louco; do sensato e do tolo... Uma das lições informadas pelo Livro dos Provérbios é fulminante (e verdadeira): 

 
"O que repreende o escarnecedor [o louco e o tolo], toma afronta para si; 
e o que censura o ímpio recebe a sua mancha [“mancha” = mácula = negatividade] 
Não repreendas o escarnecedor, para que não te aborreça; 
repreende o sábio, e ele te amará.
Provérbios 9:7,8
 

Traduzido em termos budistas: quando alguém quer repreender um ímpio, incorre angariar para si uma originação dependente não apenas ruim mas também desnecessária e estorvadora (e isto não é exagero ou invenção minha: a "mancha" trata-se da acumulação invertida ou aflitiva); os tibetanos nativos, por exemplo, compreendem desta forma. O processo é parecido com o de um analista que acaba por absorver a carga de crise - e mesmo, em certos casos, de negatividade - de seu paciente (restando saber como administrar isto; e com a diferença que um analista está exercendo sua profissão). A Sabedoria, assim, nos mostra que, a nível prático, pode não ser possível ou viável tentar corrigir ou autuar tudo, mas as decisões práticas e espirituais devem ser procedidas pelas vias adequadas. O Buddhadharma, na sua verificação, enfatiza as práticas de mérito, para que tenhamos um melhor estruturamento interior, mais resistência e força.

 

                                                                                

RAMAYANA. 

 

O Ramayana do rshi Valmiki tem, na Índia,  um certo número de apreciações e exegeses. Uma delas é a dada no Bhagavata Purana 3-16 e 9-10, na qual dois Devas - Jaya e Vijaya - que integram a esfera celestial das hostes de Shri Vishnu, o Vaikuntha (“Lugar da benção eterna”) tendo o encargo dos cuidados com os portões, recebem mal e decidem barrar alguns devas, a saber: os Quatro Kumaras (kumara = criança). Não obstante a longevidade dos Kumaras, os mesmos têm aparência de crianças e Jaya e Vijaya os barram de visitar Shri Vishnu. Em decorrência disto, são avisados que deverão, por esta falha, deixar a participação na Bem Aventurança de Shri Vishnu. Shri Vishnu lhes manda escolher a penitência: sete nascimentos humanos como devotos ou três nascimentos como potestades temporais poderosas, porém opositoras a Shri Vishnu. Não querendo afastar-se por muito tempo de Shri Vishnu, escolhem os três renascimentos como potestades opositoras, de modo a poder retornar mais rapidamente para junto dEle. No contexto do Ramayana, o segundo nascimento de Jaya e Vijaya se dá como os rakshasas Ravana e seu irmão Kumbakharna.

 

Valmiki narra a trajetória pessoal de cada uma das vidas envolvidas.

 

Tadaka, por exemplo, é mãe de Marisha, Subahu e da menina Kaikesi; através da filha Kaikesi se torna avó de Ravana, Kumbhakarna, Vibhishna e a neta Surpanakha. 

 

Tadaka acaba por se tornar um demônio terrível das florestas enquanto Surpanakha, lidando com práticas mágicas, adquire também um aspecto exterior horrendo e infeliz após a perda do marido rakshasa; também o filho de Tadaka, Marisha, vem ao mundo dotado de poderes psíquicos mas como um ser demoníaco enquanto Subahu segue com Tadaka para a floresta. 

 

Ravana e seus irmãos, o enorme Kumbhakarna, o nobre Vibhishna, além de seus sete filhos – entre eles Indrajit e Prahasta - seus sobrinhos da parte de Kumbhakarna, Kumbha e Nikumbha e demais companheiros se tornam guerreiros e submetem, por campanhas militares e alianças - não apenas militares mas algumas obscuras, como a feita com o reino inferior dos rakshasas -, a Ilha de Lanka [*]. 

 

Antes de iniciar a campanha, Ravana havia feito propiciações aos Devas e severas penitências junto a Brahma e, encerradas as penitências e austeridades, negocia com Brahma para não ser atacado pelos devas enquanto cumprindo seus propósitos de reinado e dominação, comprometendo-se, por sua vez, a também não atacar os Devas, restringindo sua luta ao domínio humano, animal e bestial.  

 

[nota: a ilha de Shri Lanka onde, séculos  mais tarde, se daria a composição do Lankavatara Sutra budista; Lanka foi a terra de Bodhidharma, o qual, imigrando para a China, tornou-se o primeiro patriarca da Escola Ch´an de Budismo chinês - no Japão, a Escola Zen. O Lankavatara Sutra foi um dos poucos sutras escolhidos por Bodhidharma.]

 

O estado dos moradores nativos de Lanka é deprimente, caracterizado não apenas pela sua submissão aos dominadores, mas mesmo a escravidão. 

 

O próprio Shri Vishnu - não podendo uma das ameaças (Ravana) ser combatida pelos Devas - surge no palco da guerra como ser humano, encarnando o príncipe Rama, de Ayodhia, usando as brahmashtras (armas celestiais) transmitidas ao príncipe Rama pelo guru Vishwamitra – o rshi Vishwamitra obteve as armas celestiais através de longos anos de penitências e austeridades. 

 

Tadaka, princesa, bela, próspera e feliz, todavia é cobiçosa e quer ampliar mais ainda seus domínios, negligenciando o Sanatana Dharma (Lei Eterna); em uma de suas buscas para angariar mais, entra em desentendimento e conflito com o rshi Agastya, o qual a restringe e sentencia; acaba, sob a sentença de Agastya,  por perder sua realeza e dignidade, adquirindo um aspecto horrorífico e demoníaco. 

 

Derrotada, se refugia nas florestas com seu filho Subahu, e passa a praticar canibalismo; ferida e magoada pela perda de suas qualidades superiores e realeza, agride a descendência de Agastya: os brahmanes retirados que buscam fixar seus ashrams nas florestas, atrapalhando a execução do andamento dos ritos – consistentes em prescrições como o Agni Hotra (Ritual do Fogo) e abluções diárias para os brahmanes. 

 

O príncipe Rama é ajudado por seus amigos: seu irmão mais novo, o príncipe Lakshamana e Hanuman (o filho de Shiva, nascido como deva-macaco) além do rei vanara Sugriva. Vale lembrar também do preceptor de Shri Rama e seus irmãos, o guru Vashishta. 

 

Ravana, instigado por sua irmã Surpanakha - que tentou seduzir, em vão, o príncipe Rama mas acabou, en decorrência de tentar agredir a princesa Sita, sendo ferida por Lakshamana - resolve sequestrar a princesa Sita, esposa do principe Rama, o que motivou inicialmente, o combate entre ele e Shri Rama. 

 

Anos antes, a jovem e casta Vedavati fazia penitências para alcançar a elevação necessária para poder tornar-se esposa de Shri Vishnu – como Lakshimi e Radha – mas Ravana, embora casado e feliz com sua esposa Mandodari, tenta seduzí-la e, neste escopo, acaba por turbar as penitências de Vedavati. Indignada pelo desrespeito de Ravana em relação às suas penitências direcionadas a Shri Vishnu, Vedavati procura uma pira funerária e nela se atira, sentenciando, antes, Ravana: -”Em meu próximo nascimento serei a causa da tua destruição.”. Vedavati renasce no reino de Mitila, como a princesa Sita...

 

O motivo do Ramayana é o reequilíbrio do Dharma na terra, além da recomposição das amizades divinas de Shri Vishnu (conforme a exegese encontrada no Bhagavata Purana). Pelas mãos do príncipe Rama caem Tadaka e seus dois filhos Marisha e Subahu, bem como os amigos, opositores nas circunstâncias do Ramayana, Ravana e Kumbakharna... Shri Rama entrega o reino de Lanka para o nobre Vibhishna, irmão de Ravana e Kumbhakarna. Diferentemente do Mahabharata - onde a guerra e a destruição são necessárias para recompor o Sanatana Dharma - , a circunstância e contexto do Ramayana são pela reintegração dos elementos desconexos ou dissonantes. O conterxto do Ramayana é um contexto de equilibrio, e um mundo que não se altera mas, antes,  se refaz dos traumas recompondo-se à condição original ( no Mahabharata o Sanatana Dharma é renovado justamente pela alteração; heróis e vilões são mortos - mesmo Krishna - ou morrem - os Pandavas).

 

 

 

USHNISHA VIJAYA VISHUDDI. MAHABHARATA.

 

 

Na dharani Ushnisha Vijaya Vishuddi a devatta Susthita, da esfera Trayastrimsa (Devas dos Trinta e Três, regidas por Indra) é informada de que seu karma se esgotará dentro de sete dias e que passará, dali em diante, por sete nascimentos no reino animal (dentre esses, como porco, como corvo, como cachorro do mato, como serpente e como abutre), após o que haverá de seguir para os infernos; somente após a purgação nos infernos, Susthita voltará a ter um nascimento humano, todavia em uma família pobre e miserável e ainda assim, como cego de nascença. Aterrorizado, Susthita vai a Indra (Sakra) pedir conselho; Indra ouvindo o relato de Susthita, entra em samadhi e contempla, em meditação, todo os nascimentos de Susthita no reino animal, se compadecendo de sua situação. Para tentar livrar Susthita, Indra se dirige ao Tathagata, o qual lhe repassa a recitação da Ushnisha Vijaya Darani.

 

 

No Mahabharata de Vyasa, a guerra entre Pandavas e Kauravas é também uma guerrra entre os devas (os Pandavas e sua coalizão) e os rakshasas (os Kauravas e sua coalizão). Em ambos os lados, os integrantes são disciplinados, cumprem normas rituais e militares e se orientam por princípios e valores kshatryas (casta real e militar). A vitória de Shri Krishna e dos Pandavas - embora não tenha vindo sem reveses [*] - todavia, é a vitória do Dharma...

 

[nota: Abhimanyu, o filho dileto de Arjuna, ainda adolescente, foi emboscado e morto pelos Kauravas. O rei Yudhishthira, filho do Dharma, junto com o irmão Bhima, mediante uma mentira e uma astúcia, iludem e derrotam Dronacharya, que liderava as forças dos Kauravas e, com sua sabedoria militar, mantinha em continuidade o conflito. O preço de uma mentira saída da boca de um homem justo e reputado por sua idoneidade (Yudhishthira) sai caríssimo para os Pandavas: A rainha Draupadi, esposa comum dos Pandavas, teve os cinco filhos menores – não envolvidos no conflito, por não terem idade para serem guerreiros - assassinados no acampamento dos Pandavas (fora da zona da guerra) pelo kshátrya Ashwatthaman, como vingança pela morte de seu pai, Drona, mediante astúcia. Na Tanach/Antigo Testamento, o rei David - o homem "segundo o coração do Senhor dos Exércitos (YHWH)" (1Samuel 13:14) e Seu Ungido (1Samuel 16:13), tomba em decorrência de seu amor por Bateseba, agindo execravelmente contra Urias e contra a Lei, sacrificando sua posição espiritual bem como a estabilidade do reino - explicações metafísicas a respeito do caso de David com Bateseba concluem pela posição que Bateseba era realmente sua mulher e rainha numa ligação não apenas humana mas espiritual; entretanto, por não ter revisão para Urias e diante da gravidez de Bateseba, o rei David comete uma segunda falta, esta vez hedionda e gravíssima (homicídio a traição de Urias) e que lhe custa as vidas de três de seus próprios filhos. Yudhishthira, o filho do Dharma, mente para fazer Dronacharya abrir de suas mãos armas - uma vez que Drona só pode ser morto se depuser, espontaneamente, suas armas -  pois, sem a liderança de Drona, o conflito com os Kauravas poderá ser, por fim, abreviado. Ashwatthaman, entretanto, se queria vingar-se com a força de Rudra, poderia fazê-lo contra os reis Pandavas e demais guerreiros - não contra os meninos; por vingar-se contra crianças, foi condenado a renascer por um período de 3 mil anos como pária, vagando sem rumo, além de perder sua jóia interior – oriunda das transmissões e formada no correr de uma vida de adesão e observação contínua dos ritos - para a rainha Draupadi...]

 

 

BRAHMAVAIVARTA PARARIA. PADMA SAMBHAVA.  RAMAYANA.

 

No Brahmavaivarta Pararia, divulgado no Ocidente por Heinrich Zimmer (“Mitos e Símbolos na Arte e Civilização Indiana”, Heinrich Zinmmer – editora Palas Athena), e também por Mircea Eliade (“Imagens e símbolos” - “Mitos indianos do tempo” - editora Arcádia, Lisboa-Portugal), narra a história da “Procissão das Formigas”.

 

Indra, juntamente com Agni-Brhaspati, acaba de derrotar o gigantesco asura Ahi Vitra Namuci, que logrou, por um período de tempo, superar e restringir os Devas, por reter as águas celestiais. Como reconhecimento, e em agradecimento ao livramento, os Devas elegem Indra com regente de todas as hostes celestiais que foram restringidas por Namuci – nomeadamente os Devas e devattas do Trayastrimsa.

 

Jubiloso, Indra decide construir um palácio de acordo com sua posição e convoca o deva-arquiteto Vishvakarman, para tocar o projeto. Um ano depois, Vishvakarman entrega a Indra um esplêndido e majestoso palácio, mas Indra, conferindo as instalações, passa a sugerir a Vishvakarman novos acabamentos e complementos requintados (terraços, jardins, parques, residências adjacentes) para tornar a edificação e seu entorno ainda mais majestosos. A cada complemento feito, Indra indica novas possibilidades a Vishvakarman, o qual, ante a criatividade e inspiração quase infindáveis para motivos suntuosos de Indra, viu-se esgotado no cumprimento de suas exigências para esse mister. Vishvakarman, já estafado, pede ajuda a Brahma, o qual, inteirando-se da causa, decide recorrer, por sua vez, a Sri Vishnu.

 

Shri Vishnu recebe o pedido de Brahma e encarrega-se de fazer Indra retornar à Realidade.

 

Um belo dia, Indra recebe no seu palácio a visita de um jovem andrajoso. Era o próprio Shri Vishnu, que tomara este aspecto para corrigir o Rei dos Deuses. Sem lhe revelar de início a sua identidade, e mesmo com a aparência de um jovem, chama-lhe ”meu filho“ e começa a falar-lhe dos inúmeros Indras que até essa altura tinham povoado os inúmeros Universos.

 

- “A vida e a realeza de um Indra” — disse-lhe ele — “duram 71 eons (um ciclo, um mahâyuga compreende 12.000 anos divinos, ou sejam 4.320.000 anos); um dia e uma noite de Brahma, equivalem a 28 existências de Indra. Mas a existência de um Brahma medida nos ditos dias e noites de Brahma, é de apenas 108 anos. Um Brahma segue-se a outro Brahma; um deita-se e outro levanta-se. Não se consegue contá-los. Não tem fim o número destes Brahmas — para já não falar nos Indras...”.

 

 

- “Mas quem poderá avaliar o número dos Universos, tendo cada um o seu Brahma e o seu Indra? Para lá da mais longínqua visão, para lá de todo o espaço imaginável, os Universos nascem e dissipam-se indefinidamente. Como barcos levíssimos, estes Universos flutuam na água pura e sem fundo que forma o corpo de Vishnu. De cada poro desse corpo, um Universo sobe um instante e, após, desintegra-se. Teríeis vós a presunção de contá-los? Credes poder enumerar os deuses de todos estes Universos — os Universos presentes e os Universos passados?”

 

Durante o discurso do jovem, uma procissão de formigas adentrara a sala principal do palácio. Alinhada numa coluna de dois metros de largura, a massa de formigas exibia-se no soalho. O jovem olha para as formigas, pára e depois, cheio de espanto, desata num riso súbito.

 

- “Porque te ris?” — pergunta-lhe Indra.

 

- “Vi as formigas, ó Indra, desfilando num longo cortejo. Cada uma delas num nascimento anterior, chegou a ser um dia um Indra. Como vós, cada uma, em virtude da sua piedade ascendeu, outrora, ao nível de um Rei dos Devas. Mas agora; após múltiplos renascimentos, cada um se transformou em formiga. Este exército de formigas é um exército de antigos Indras...”

 

Depois desta revelação, Indra compreende a vaidade que deixou ter livre curso em si mesmo, bem como a insensatez de seu orgulho e suas ambições. Chama Vishvakarman, recompensa-o regiamente e renuncia para sempre a ampliar o palácio divino...

 

 

Há uma série de histórias hindús e budistas que poderiam ser agregadas aqui para nos dar uma compreensão mais ampla – ou mais profunda - acerca de Causalidade-Karma-Renascimento.

 

O Buddha Padma Sambhava, atirando uma pedrinha numa mosca, acertou juntamente com a mesma um menino e acabou por cometer um homicídio. O Buddha explicou tratar-se de uma dívida kármica anterior do menino, que havia sido cruel para com ele - havendo aquele menino, num nascimento anterior, cometido um crime passional comunicou, entretanto, que o responsável pelo ato havia sido Gautama (nascimento anterior de Padma Sambhava), o qual foi executado no lugar do verdadeiro criminoso -, tendo a pedrinha “com a força do karma”,  embora pequena, atingido-o em sua cabeça, justamente de um modo fatal. Por causa deste crime o Buddha Padma Sambhava foi preso. Após, realizando ritos tântricos, a esposa de um ministro bem como seu filho, também foram mortos quando o Buddha deixou cair, a esmo, seu Dorje (punhal vajra) e seu trishula (tridente, como o de Shiva), ferindo mortalmente mãe e filho. O Buddha explicou que tanto a mãe quanto o menino integraram também o episódio que culminou na sua execução injusta como Gautama... 

 

 

Também, no Ramayana, o rei Dasaratha, pai do príncipe Rama, acidentalmente numa caçada, matou, pensando tratar-se de um animal, um jovem que era filho único de pai e mãe idosos e cegos. 

Dasaratha, pediu perdão aos pais do jovem, mas o pai lhe disse que ele ainda haveria de sentir algo parecido com o que ele e sua esposa estavam agora sentindo na cremação do filho único (terminado o serviço que antecede a cremação, os pais cegos se jogaram na pira funerária do filho). 

Dasaratha sofreu grande desgosto ao ver o príncipe Rama deixar sua cidade de Ayodhia, exilado, em decorrência da obscuridade que tomou sua terceira esposa Kaikeyi, a qual exigiu dele - em decorrência de uma antiga dívida deste para com ela, e acerca da qual ele havia lhe empenhado sua palavra [*]- , que o trono – de direito ao príncipe Rama, por ser o primogênito - fosse repassado ao segundo filho, o nobre e digno Bharata, porém situado logo atrás de Rama na sucessão real; e ainda pediu Kaikeyi que Rama fosse exilado por catorze anos nas florestas. 

 

[nota: o rei Dasaratha foi ferido em batalha, no ínterim de uma guerra contra um reino dos asuras (titãs; semi-deuses); a rainha Kaikeyi, que conduzia seu carro, removeu o rei Dasaratha do campo de batalha, livrando-o...]

   

Não suportando nem o primeiro mês de afastamento de seu filho dileto e excelente, em pouco tempo adoeceu e veio a expirar em desgosto... 

Bharata foi à floresta buscar Rama no intuito de desfazer, assim, a loucura que veio sobre eles através de sua mãe, Kaikeyi. Shri Rama, todavia, explicou-lhe que a palavra empenhada pelo rei Dasaratha deveria ser cumprida, preferindo prosseguir até o fim o exílio. 

Baratha pediu a benção de Shri Rama e este deu-lhe suas sandálias para que os nobres vissem que o reinado de Baratha tinha sua aprovação. Baratha, porém, recusou sentar-se no trono e ao invés, pelos catorze anos do exílio, deixou ali as sandálias de Shri Rama, restituindo-lhe o reino, ao final...

 

 

Pelas doutrinas hindo-budistas sobre a Causalidade, trazemos o Mal sobre nós próprios negligenciando ou descartando valores éticos; o Mal se amplia quando prejudicamos comprometedoramente os outros ou fazemos vítimas por motivos gratuitos, iníquos ou vis. 

 

Pela nossa conduta, ousadias com nossa próprias vidas e com as vidas dos outros, preferências e aversões, e pelos relatórios de que dispomos (embasando nossas crenças e convicções e orientando nossa maneira de compreender), conforme a Lei do Karma, é possível não propriamente antever, mas delinear o futuro. Muitos karmas em andamento, por exemplo, gerarão - se não corrigidos - os futuros mendigos, entre tantas possibilidades. Alguns karmas estão se esgotando, outros se formando... Alguns karmas são punitivos e seu desdobramento trata-se de um verdadeiro inferno na terra, sendo demônios em corpos humanos os exatores e algozes daqueles nessas miseráveis e doentias situações (por exemplo: tráfico de pessoas e de órgãos humanos [*]). Pelo lei do karma, nos transformamos naquilo que cultivamos pessoalmente, individualmente: anjos, demônios, santos, satânicos, justos, tolos/imbecis, desvairados/loucos, ávaros, generosos, coração duro, coração aberto, etc. 

 

[nota: o que não significa, mesmo se tratando de acumulações kármicas exageradamente aflitivas/invertidas, que devamos concordar ou nos conformar com essas doenças... Parafraseando René Girard, a nobreza é encerrar o ciclo de vinganças...]

 

Em continuação, a possibilidade do Mal só se encerra quando o Sanatana Dharma (Lei Eterna) é devidamente buscado e a origem do Mal verificada e sanada  – dentro de nós mesmos e em cada um individualmente...

 

Acusado certa vez por brahmanes de ser um sábio nihilista, o Buddha Shakyamuni respondeu: “Outrora, como agora,  eu apenas declarei o Mal e a interrupção do Mal...”. Majjhima Nikaya 1:140.

 

 

 
"Oh, rapados... quê andais a buscar?
 
Por todos os lados saís a dizer
 
que o Tao [Caminho] deve ser praticado
 
e ser posto à prova [comprovado]...
 
 
 
Não sejais cabeças-duras!
 
Se há alguém que possa praticar algo,
 
o que esse alguém pratica
 
não é senão a acumulação de karma para vários renascimentos.
 
 
 
Vós deveis disciplinar até a perfeição os seis sentidos,
 
mas isso não é  mais que criar karma,
 
Os Buddhas e  Patriarcas não são tão superficiais!
 
(...)
 
 
Buscar o Dharma é criar karma,
 
estudar os sutras e karikas [comentários] é criar karma,
 
Buscar o Buddha...
 
tudo isso não é mais que criar karma e mais karma,
 
que vos levará direto, de cabeça 
para os Infernos!
 
 
 
Muito pelo contrário,
 
os antigos viviam a vida com enorme despreocupação,
 
agindo apropriadamente em função de cada circunstância particular,
 
segundo esta surgisse  e conforme fosse necessário
 
(sem diretrizes nem ideias preconcebidas);
 
(...)
 
 
 
No há lugar no Budismo [em sua finalidade essencial] para o esforço [egotista (*)],
 
Simplesmente sede vós mesmos,
 
sem acrescentar nada especial.
 
 
 
Defecai e limpai vosso corpo,
 
vesti-vos e comei vossa comida.
 
Quando estejais cansados, repousai.
 
 
 
Os ignorantes desviarão disto,
 
mas os sábios compreenderão...
 
- Mestre Ch'an Lin Chi (japonês: Rinzai).
 
 
 
[nota: Num outro texto, há o seguinte comentário de Lin Chi: "Amigos, digo-vos isto: Não há Buddha, nem caminho espiritual para seguir; não há treinamento nem nenhuma realização espiritual. O que buscais de modo tão febril? Colocais uma cabeça [a noção de um 'eu'/ego separado, seccionado do momento presente/atual] em cima de vossas próprias cabeças, ó cegos idiotas? Mas vossas cabeças estão bem onde deveriam estar. O problema reside em que não acreditais suficientemente em vós mesmos. Porque não acreditais em vós mesmos, vos encontrais tombados: aqui e ali e em todas as situações/circunstâncias com que vos deparais. Estando escravizados e enredados pelas situações objetivas, vós não tendes liberdade interior, absolutamente... não sois mestres de vós mesmos. Parai de girar para o exterior e não estejais ligados nem mesmo às minhas palavras. Apenas cessai o apego ao passado e o desejar o futuro. Essa será a melhor peregrinação que podeis fazer em dez anos."
 
Esta colocação de Lin Chi remete àquela mesma, posicionada sobre a doutrina do Anatman (Não-Eu), constante  do Visudhimagga de Buddhaghosa:
 
 
"Só o sofrimento existe... ninguém que sofra...
 
O feito existe... mas não quem o faça...
 
O Nirvana existe ... mas ninguém que O busque...
 
O Caminho existe... mas ninguém que O percorra..."
 
 
 
O Buddha Padma Sambhava, num cântico exaltando a Clara Luz,  anotou:
 
 
"Clara Luz, Auto-originada, eternamente Não-nascida
 
é um filho órfão da Sabedoria... é maravilhoso...
 
 
Sendo Incriada é Sabedoria  Natural... é maravilhoso...
 
 
Não tendo conhecido o Nascimento, não conhece a Morte... é maravilhoso...
 
 
Embora perceba o Buddha, Ela permanece dissociada do Bem... é maravilhoso...
 
 
Embora vagueie pelo Samsara, Ela permanece não maculada pelo Mal... é maravilhoso...
 
 
Embora seja a Realidade Total, não existe seu percebedor... é maravilhoso..."
 
 
em "O livro tibetano da Grande Liberação" - Evans-Wentz (*)]
 
 
 
Fora do contexto budista, estas observações posicionadas sobre a Dourina do Anatman nos remetem a Shiva - e/ou Shakti -  (simbolizando a Realidade Última) dançando sobre o anão, bem como ao Shiva Linga... O anão remete à cabeça desnecessária, estorvadora e enganadora, indicada por Lin Chi...  Nas palavras de Shri Ramana Maharshi:
 

"toda atividade consciente da mente ou do corpo gira em torno da tácita pressuposição de que existe um “Eu” que está fazendo alguma coisa...".

 

Digna de menção é, ainda, a observação - a qual parece uma bela piada de cunho metafísico - de Shri Ramana Maharshi (em "Joias de Shri Ramana Maharshi"):
 

 

"Não é correto dizer que os Advaitins [não-duais] ou que a escola de Shankara [Escola Vedanta] neguem a existência do Universo, ou que o chamem de irreal. Por outro lado, o Universo é mais real para eles do que para nós. O Universo deles sempre existirá [não tem princípio nem fim], enquanto que o de outras escolas terá início, desenvolvimento e decadência, por esse motivo não pode ser real..."...

 

 

[nota: Prof. Evans Wentz foi um erudito, conectado ao movimento e  à Sociedade Teosófica. Suas obras sobre o Vajrayana e o Budismo tibetano abrangeram, enquanto a diáspora tibetana não se deslocava de forma mais contundente para o Ocidente, tratados de Metafísica e Yoga budistas, até então pouco divulgados, como o "Livro Tibetano dos Mortos"/"Bardo Todol". Hoje seu "Bardo Todol" e seu "Milarepa", bem como o "Yoga tibetano e as doutrinas secretas" (abrangendo os "Seis Yogas" de Shri Naropa além do "Rosário Precioso do Caminho Supremo" de Gampopa e uma pequena obra do Guru Padampa Sanghay) provavelmente não são mais os mais lidos e talvez estejam, atualmente, inclusive no ostracismo pois as pessoas interessadas - inclusive eu mesmo - se deslocam para as edições produzidas por fontes tibetanas e/ou por eruditos engajados como o Prof. Herbert V. Guenther, Keith Dowman, etc. Quanto ao trabalho de tradução do Prof. Evans-Wentz, eis que o mesmo é louvável (basta comparar com as edições oriundas de fontes tibetanas e ocidentais engajados). Devo salientar, porém, que, em relação às suas notas explanatórias, não obstante sua erudição e grande esforço em traduzir o Vajrayana para uma percepção ocidental, eis que, todavia, a erudição das obras acaba sendo comprometida com a necessidade do Prof. Evans não tanto de aproximar - em meio a algumas de suas notas - mas de posicionar conceitos budistas como equivalentes a alguns conceitos espiritualistas. No caso, a aproximação até é possível; não porém a sua equiparação pura e simples. O Budismo não se vale do termo "reencarnação" que nos conduz à percepção da reencarnação biológica; mas sim 'renascimento'. No "Milinda Panha", sem usar termos sofisticados da linguagem budista, o Venerável Nagasena explica isto muito bem, com vocabulário bastante acessível (como este do texto de Mahaduta).  'Karma', também, no Ocidente, adquiriu o sentido de 'evolução' ou ainda "evolução espiritual". Tenho conhecidos, colegas e amigos espiritualistas posicionados na perspectiva da "transição planetária". O problema é que karma entendido como 'evolução', acaba nos desviando justamente das Quatro Nobres Verdades - as quais nos remetem para a pesquisa interior/espiritual e daí, mais ainda, para a Paramartha Satya/Verdade Absoluta ou Final - que é o que está sendo explicado aqui por Lin Chi (e, no seu contexto, também por Shri Ramana Maharshi). As Quatro Nobres Verdades não nos remetem para fora de nós mesmos e a noção interior/exterior não é aplicável à Paramartha Satya. Isto é o que tenho observado para colegas e amigos espiritualistas - lembrando-lhes, também, que muitos espiritualistas europeus e americanos, tendo descoberto Shri Ramana Maharshi e Shri Nisargadatta Maharaj, por exemplo, sentaram com esses verdadeiros gurus e se uniram às suas sat-sangas (ajuntamentos com finalidade espiritual), aderindo a seus ensinamentos e não tendo se afastado mais. 

 

No contexto budista e hindú, 'karma' significa 'ação' - cuja consequência e implicação intrínseca é também, causa e efeito. As obras do Prof. Evans Wentz, só pecam pela tentativa de tentar convergir - e mesmo nivelar como equivalentes - , sem esclarecer adequadamente, conceitos budistas e espiritualistas os quais, verificados em seus fundamentos, têm desdobramentos e interações diferentes, não sendo possível o nivelamento num mesmo patamar... Acaba por se propagar, divulgar ou vender o Budismo como se se tratasse de algo semelhante ao Espiritualismo, mas o Buddhadharma não nos conduz a afastarmos da pesquisa interior/espiritual. A meu ver, o Espiritualismo é uma posição não-metafísica; a mediunidade se propõe nos conduzir  a um  "salto qualitativo" mas o alcance dela e de outros fenômenos psíquicos é limitado.  Não podemos repassar a outros (espíritos, mestres, homens) a responsabilidade que compete a nós mesmos: Salvação, Liberação/Kaivalya e Iluminação dependem das contrapartidas que nosso esforço pessoal, insights, compreensão do processo interior/espiritual e elevações conseguem realizar. E o parinamana (transferência de mérito)? Está no lugar de sempre (Amitabha, Cristo), mas ainda assim há posições que dependem de nós. O parinamana fará a sua parte, desde que nós façamos a nossa. Podemos, ainda, por exemplo, usar técnicas mentalistas ou Programação Neurolinguística: isto pode até nos ajudar num certo número de situações e corresponder, tais práticas, a alguns pequenos sucessos; mas aqui também o alcance é limitado (e tentar ir além do limite com essas técnicas, esperando resultados que elas não são capazes de produzir, pode trazer decepções ou auto-ilusão/auto-engano). Por fim, em relação aos mestres ascensos - que o Prof. Evans tenta honrar (particular e especificamemente a figura de 'Koot Hoomi') -, o ensino atribuído aos mesmos é tão espiritualista que não é possível, nem forçando, conectá-lo aos ensinamentos budistas tradicionais/ortodoxos... Outro exemplo, embora não relacionado em nada a este post, seria a obra "Budismo Esotérico" de A. P. Sinett, a qual, distante do esforço do Prof. Evans-Wentz (que, não obstante alguma dissonância doutrinal nas notas explanatórias, nos repassa traduções de documentos budistas) -  foca sobre o Devakan/Mundo dos Devas - que, para mim, parece tratar-se mais do 'Mundo dos Espíritos' - repassando poucos ensinamentos budistas...].  

 

_______________________________