Mais zen...

06/11/2014 02:33

    

Mais zen...

 

 

 

U.G.: “- Existe isto que chamam 'moksha' [liberação]?”

 

Shri Ramana Maharshi: “- Sim, existe...”

 

U.G.: “- Isto está em vós?”

 

Shri Ramana Maharshi: - “Está...”

 

U.G.: “- Há níveis nisto?”

 

Shri Ramana Maharshi: “- Ou bem estais ali ou não estais em absoluto...”

 

U.G.: “- Podeis vós dar-me esta moksha?”

 

Shri Ramana Maharshi: “- ... sim... posso dar-vos... porém... podeis vós recebê-la?”

 

 

 

[nota: me parece que em todas as obras sobre U.G. será encontrado este relato...]

 

 

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Aluno: “-Que é o Tao?”

 

Professor: “-Ver a natureza verdadeira é o Tao...”

 

Aluno: “-Tu vês esta natureza verdadeira?”

 

Professor: “-Eu a vejo...”

 

Aluno: “-Como é esta natureza verdadeira?”

 

Professor: “-A natureza verdadeira é ato puro...”

 

Aluno: “-De quem ou o quê é este ato puro? eu não compreendo...”

 

Professor: “-O ato é aqui-agora... tu simplesmente não o vês...”

 

Aluno: “-Eu o tenho em mim?”

 

Professor: “-Tu és o ator agora...”

 

 

[nota: extraído da Revista Planeta - Edição Especial "Zen". Não rastreei o documento original deste diálogo.]

 

 

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Existe moksha [liberação]? ou, no contexto budista, existe a iluminação? é possível ultrapassar o dualismo? 

 

Seguindo através da via Zen este é o assunto deste post.

 

Deve ser salientado que a escola Ch´an chinesa (Zen no Japão) a partir do 6º Patriarca - o Buddha Hui Neng (638-713 EC) -, adentra o caminho que culminará no foco da instrução sobre o “despertar abrupto”, consubstanciado na forma de ensinar do mestre Ma-Tsu (japonês: Bashô - 709-788 EC) - e para o Zen japonês o “despertar abrupto” foi equiparado ao surgimento do satori. 

 

Isto não quer significar - em hipótese alguma - que nos mosteiros ch'an houvesse ocorrido algum tipo de redução ou mesmo de regressão na observação da Disciplina Moral/Ética, na tomada de refúgio e no cumprimento dos votos ou ainda alguma redução/regressão nos estudos objetivando as acumulações de sabedoria/conhecimento -  ainda que as acumulações fossem focadas no ensino próprio do Zen como os sutras Prajnaparamita, Vajracchedika, Lankavatara, Avatamsaka e Vimalakirti Nirdesha -  e consequente compreensão doutrinal de qualidade do Buddhadharma tampouco dos demais métodos tradicionalmente utilizados nas práticas budistas (por exemplo: as técnicas samatha/vipassana objetivando a mestria na meditação/dhyana). 

Alguns que se deparam com textos zen - e particularmente documentos com relatos sobre o despertar abrupto -, podem incorrer em não perceber o contexto/plano de fundo no qual os budistas estavam inseridos (disciplina, estudos doutrinais e, no caso dos monges, regras monásticas - observado ainda que na China antiga havia também budistas mendicantes) e, destarte, levar em conta apenas o desembocar, o estágio final do  processo de uma construção interior/espiritual, eventualmente sem a devida apreciação/consideração pela sua nascente.

 

O foco sobre o “despertar abrupto”, enquanto disciplina espiritual habilita/tem como resultado, justamente, anular qualquer pretensão dualista - espiritual ou egóica - e qualquer auto-ilusão e/ou auto-engano por parte dos aspirantes bem como dissolver o dualismo (e integrar o aspirante ao Tao) - veja-se os muitos buddhas da Escola Ch'an (“Que é o Tao?”  pergunta o monge noviço... “A tua vida cotidiana”  responde o mestre...)

 

A meu ver, é em relação a isto (anulação de auto-ilusões/auto-engano e dissolução do dualismo – com a consequente integração no Tao) que os mestres ch'an/zen se posicionaram pelo foco no despertar abrupto... A instrução focada/orientada sobre e para o despertar abrupto tornou-se, no âmbito do Budismo Ch'an chinês, uma culminação e uma mestria... 

 

Resta em relação ao Ch'an/Zen duas questões não levantadas: a da presença da mestria - já aventada acima - e a da transmissão.

 

O que quero dizer é que, se no nosso dia a dia convivemos com pessoas frias e/ou malignas, esse tipo de energia não passa despercebido pelos atentos ou por aqueles que acabam tendo desencontros ou conflito de interesses com pessoas nesta situação (e embora pessoas nesta situação, geralmente, procurem evitar ser espalhafatosas ou indiscretas, além de agirem sorrateiramente e sigilosamente).

 

E se convivemos com pessoas santas - eu, por exemplo, tenho amigos cristãos que são cristãos de fato, sem hipocrisia nem miséria - é difícil não sentir, na convivência como tais pessoas, a energia de santidade (no caso dos cristãos, a energia crística - justo chamá-la assim pois é a Cristo que tal energia nos remete). Aqui me refiro aos católicos.

 

Em relação aos protestantes em situação de idoneidade na sua posição, o problema não é ausência de contrapartida, nem de resultado nem de consistência; diria que os protestantes tomam o que é, com efeito, parcial pelo que é total; tomam um pouco de posição com Cristo que eles têm por uma posição privilegiada nEle (uma posição privilegiada em Cristo não diz que os outros “são todos do Diabo” nem que a experiência verdadeira e sadia dos outros “não conta... é demoníaca”) e muitos podem ser induzidos nesta direção entusiástica, empolgada, equivocada, fundamentalista e extremista. No Brasil dizemos que  “o pouco com Deus é muito” e “o muito sem Ele é nada”. Se os brasileiros chegam a esse nível do profundo de seus corações, o adágio é, então, verdadeiro [*].

 

O resultado total, porém, não vem de um posicionamento/desenvolvimento parcial que o limita, não o penetra tampouco procura verificá-lo... essa é a dificuldade que o Protestantismo, na sua pretensão de se achar a única posição espiritual válida, cria... 

 

[notas:

 

1) Pessoalmente - e como um “filho distante no tempo e no espaço” de Chuang Tzú -, prefiro o pouco ou o nada com o Tao... do que muitos resultados sem o Tao - afinal “Mahamudra descansa sobre nada” (Budismo vajrayana). Dentro de mim eu já estou no nível que se preocupa efetivamente com a elevação/iluminação e isto se desdobra através de uma combinação de estudo e prática (saliento que só consigo ler um livro por vez - normalmente em 15 dias -, sendo que instâncias pessoais e materiais me estorvam uma carga de estudos mais intensa). Resultados? A lucidez e a maturidade espirituais fazem a sua parte, não cuidam de resultados mas, antes, de procurar fazer o melhor que podem... O que vem amanhã? O que estou plantando hoje... o que tem sido plantado ontem... e o que tiver de vir...

 

2) O nosso protestantismo brasileiro é mui pouco luterano pois predominantente derivado do protestantismo anglo-americano (presbiterianos, metodistas, batistas, etc.) ou de desenvolvimentos locais que procuram, num ou noutro aspecto, imitar tal modelo; há aqui, também, algumas seitas de índole protestante surgidas em solo americano.

 

Embora baseado na religiosidade bíblica, o Cristianismo “dos pastores” não possui, todavia, ITINERÁRIO, sendo um desenvolvimento - nas suas origens/fundações - meramente humano, como já observei no post anterior a este - “Bhakti marga: a via do Amor”.

 

O Protestantismo que vê a si mesmo como proprietário exclusivo da Pureza e da Veracidade cristãs foi criado pelos nobres, os quais eram iniciados, em decorrência de divergências entre eles e o Clero católico, sendo o Protestantismo parte integrante de um conjunto de medidas/ações objetivando a demissão da Igreja.

 

No hoje, integrando inclusive a cúpula/liderança de diversos ministérios protestantes - mesmo daquelas denominações consideradas respeitáveis -, há iniciados (no que eu, realmente, não me escandalizo ou surpreendo - tampouco vejo nada de errado -, já que tais denominações foram criadas e impulsionadas por eles). 

 

Eu, aliás, de minha parte, nunca me perturbei com os iniciados em nenhum campo; também nunca avalizei os erros, desvios e falhas da Igreja – tampouco deixei de defender o ponto de vista da Igreja quando encontrei no mesmo o que considero verdadeiro e/ou correto... Concordo com Pierre Feuga sobre o exagero/equívoco da Igreja em rotular, por serem pagãos, iniciados que buscavam seriamente a elevação/iluminação nos seus andamentos - como a  Alquimia - como "feiticeiros".  Também não vejo nenhuma possibilidade de o Santo Ofício (Inquisição) poder corresponder à solução correta para os problemas com os hereges e os pagãos; pois, embora a Igreja tivesse se deparado com algumas situações vis (como o uso de práticas de magia negra em andamentos prejudiciais/malignos às pessoas), entretanto em relação a diferenças de crença, desvios e crenças errôneas (ou consideradas errôneas) a condenação pessoal caberia/cabe à Justiça Divina (lembrando que as nossas justiças humanas são falhas). A meu ver a Igreja deveria ter procurado se reforçar doutrinalmente e espiritualmente, desde dentro e jamais permitir que o Santo Ofício tomasse a direção que tomou, extrapolando e desviando do que a Lei de Cristo formula (e a Igreja tinha meios, recurso espiritual e intelectual, para que isto não ocorresse). O Santo Ofício tomou uma direção que corresponde, num determinado momento histórico da instituição, a um desvio delirante de propósito da tradição cristã, no âmbito da Igreja Latina. São Patrício (Saint Patrick) trouxe a Irlanda céltica para Cristo pelo exemplo, oração e conversão. Meu interesse pela Igreja sempre esteve - e ainda permanece  - vinculado à espiritualidade, fundamentado nela; posições como o nexo de continuidade com o Cristianismo da Igreja Primitiva e a Sucessão Apostólica são informações verdadeiras prestadas pela Igreja (apesar do cisma entre Roma e Bizâncio); do ponto de vista ético, porém, não posso me posicionar contra os iniciados - nem considerá-los como inimigos pelo fato de serem pagãos - quando o objetivo que eles buscam trata-se da elevação/iluminação (até porque, as tradições espirituais quando se encontram verdadeiramente, tal encontro é justamente "por cima"); em termos simples/singelos, Cristo ensinou a não sermos temerários bem como que "aquilo que é dEle vem para Ele"; o Ocidente além de cristão sempre foi esoterista... 

 

“Criar”, porém, o Protestantismo sem itinerário foi, a meu ver, um êrro/falha dos seus idealizadores uma vez que isto teve como resultado uma limitação nos protestantes  - pobreza/ausência de relatórios sobre a posição cristã superior - cuja consequência foi, além da carência de resultado superior, a abertura ao desvio fundamentalista (a religiosidade bíblica, embora propicie obras importantes para a construção protestante, tem os seus limites - não substitui eficientemente tampouco pode ser sobreposta à Sabedoria e insistir nisto tem consequências comprometedoras para a posição protestante). 

 

Hipoteticamente, poderia ter sido explicado que não há nada de errado nem de “demoníaco” em estudar obras como  “O Livro do Conselho Perfeito” ou  “A Nuvem do Não saber” ou ainda São Boaventura, por exemplo, o qual foi um cristão não apenas exemplar mas iluminado...

 

Em última instância teríamos Jakob Boehme (ou Jacob Boehme - 1575-1624 EC) e Johann Gichtel (1638-1710 EC), mas ambos foram rejeitados e expelidos pelo Protestantismo da Europa continental de seu tempo, tendo Boehme deixado por escrito sua decepção/desencanto com a confusão do Livre Exame e as falhas humanas oriundas dos púlpitos (Gichtel, à sua vez, abandonando o Luteranismo não encontrou seu espaço/posição no Catolicismo, deixando-o também e passando a seguir via própria); seja como for, em relação a Boehme e Gichtel – e não que eles não pudessem ter “filhos” em meio ao protestantismo do Povo Simples (veja-se que se Gichtel foi advogado da suprema-corte - o que não quer dizer nada  metafisicamente - Boehme, a sua vez, foi sapateiro) já que o que conta mesmo é a vocação - o que temos é realmente uma posição espiritual/doutrinal “para os poucos, não para os muitos”, tendo inclusive o próprio Gichtel informado a “desnecessidade de culto exterior” para aqueles procurando Cristo e a Sophia na sua posição - ascese metafísica - o que, talvez, possa parecer demais para a maioria daqueles oriundos do Povo Simples.  

 

Se espirituais acima de qualquer suspeita, cristãos exemplares como São Boaventura e Santa Teresa de Ávila - ou ainda Santa Teresa de Lisieux - acerca dos quais  teríamos muito o que aprender, são desnecessários ou mesmo "demoníacos"... que não se dizer dos metafísicos Boehme e  Gichtel?

 

Não deixa de ser deprimente o subaproveitamento espiritual dos protestantes, os quais, literalmente, estacionam a meio caminho e se auto-restringem, obviamente por falta de relatórios aprofundados, de meios e de itinerário (os quais necessitam ser fidedignos, autênticos); procurando avançar em Cristo apenas no âmbito do louvor/adoração (prática legítima) e da profecia e das pregações carismáticas (práticas que podem apresentar falhas humanas e espirituais, as vezes gravíssimas, mesmo traumáticas), o fato é que os protestantes acabam não avançando na esfera da veracidade, desviando da mesma por falta de meios para recebê-la, adentrá-la e penetrá-la. 

 

Quem for visitar os protestantes perceberá que, não obstante a maioria ter alguma forma de experiência/vivência e de motivo e fidelidade na Via Mística com Jesus, entretanto, na posição que é a da Sabedoria ao invés dela o que existe, em verdade, trata-se de religiosidade bíblica, teologia protestante (fundamentada na mesma religiosidade bíblica) bem como algumas crenças sem fundamentação espiritual nem doutrinal, mesmo fantasiosas (os protestantes almejam milagres e obras grandiosoas, mas não têm como avaliar o quanto interiormente isto custa). Não pretendo neste relatório, contudo, afirmar que os protestantes não têm nenhuma experiência sadia em Cristo - longe de mim caluniar quem está na posição protestante em situação de idoneidade. Não dá para ir mais longe, porém, sem a Sabedoria ou rejeitando-a e não vejo que seja salutar para os protestantes o resultado desse divórcio. E no Brasil os dados do IBGE do último censo nos informam acerca de existência de algo em torno de 40 milhões de protestantes. 

 

Ao final, meu interesse por espiritualidade se trata mesmo daquele que objetiva elevação e/ou iluminação...

 

Nestes termos, o surreal é, a meu ver - e em verdade - a pretensão absurda de “Pureza”, “Veracidade” e de ser “a única posição espiritual válida” que é repassada pela informação protestante - sendo que sua origem não corrobora tais posições, as quais consistem não em verdades objetivas mas em simples desejos...

 

Livros:    "A nuvem do não saber". Anônimo século XIV -  Edtora Paulus.

           São Boaventura: "Itinerarium mentis in Deum" ("Itinerário da Mente até Deus") em "Obras escolhidas de São Boaventura" (latim-português). Editora Sulina. 

              Santa Teresa de Ávila : "Moradas ou Castelo Interior"; "o Livro da Vida" (em "Santa Teresa de Jesús: Obras completas." , em castelhano. Em português pela Editora Paulus.

              Jacob Boehme: A aurora nascente, trad. Américo Sommerman - Editora Polar.

          Johann  G. Gichtel. A senda do homem celeste (título original "Theosophia practica" - trad. Américo Sommerman. Ed. Polar]

 

Tive também a oportunidade de ter contato com um roshi zen japonês: percebi/senti o domínio dele, a sua mestria na meditação sentada, percebi/senti - sem exageros - que “ali há nirvana”; também com um lama tibetano visitando São Paulo, percebi/senti a sua disciplina e mestria em relação à Vacuidade e ao Mahamudra...

 

Existe também a energia daquilo que se apresenta ou se propõe como espiritualidade autêntica sem sê-lo todavia (se isto não existisse não haveria enganação, nem desvios, nem êrros tampouco o “supermercado espiritual”).

 

Quando alguém tem a felicidade de conviver com pessoas santas e/ou iluminadas, é impossível não ser afetado pela energia que há nessas pessoas (uma vez que a mesma, literalmente, “irradia” delas)... e quanto mais a transmissão?

 

O que quero dizer é que onde há um buddha ou um jivanmukta ou um santo ou um autêntico sheikh sufi a possibilidade dos “filhos” (filhos espirituais) é melhor.

 

E, em relação à escola Ch'an chinesa o que quero dizer é que ela não se tratou apenas de treinamento/instrução esmerada mas também houve:

 

1) o complemento da transmissão através dos patriarcas e mestres ch'an

 

2) e o amparo/sustentação espiritual da sangha (comunidade de praticantes budistas) pela energia búdica corporificada e irradiada a partir dos “pais”, a qual era aberta e benigna à idoneidade dos “filhos”. 

 

O preço de uma tal construção, obviamente, é caríssimo:

 

1) implica que as pessoas envolvidas com espiritualidade devem, num primeiro desenvolvimento, fazer a sua parte (observação doutrinal, responsabilidade/ética, honestidade, etc.) - sejam eles monásticos, sacerdotes ou  laicos; pais/mães de família ou não; dotados da vasta erudição ou não;

 

2) num segundo desenvolvimento - o qual implica o cumprimento do primeiro - ir além, gerar o resultado a nível de elevação/iluminação, informado pelas respectivas escrituras e tratados; irradiar as energias do Amor e da Sabedoria bem como a Luz...

 

Daí a necessidade de, no âmbito da espiritualidade, aqueles com interesse genuíno, sincero se direcionarem a verdadeiros/autênticos gurus, lamas, roshis, sufis, místicos e santos...

 

 

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Shih-tou (700-790 EC - japonês: Sekito) afirmou certo dia no mosteiro:

-Seja qual for a conversa que vós tiverdes sobre aquilo e seja qual for o procedimento que vós tiverdes... nada tem a ver com aquilo...”

 

Wei Yen (745-828 EC - japonês: Yakusan), de Yao-Shan, comentou:

- Mesmo quando vós não falais sobre aquilo e mesmo quando vós não procedeis de qualquer modo... nada tem a ver com aquilo...”

 

Shih-tou: “-Ali não há lugar nem mesmo para a ponta de uma agulha...”

 

Wei-yen: “-Ali é como plantar flores em pedras...”

 

 

 

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Um monge, chamado Seng-k´o [ou Sheng-kwang – conforme a transliteração], sabendo da presença de Bodhidharma nos arredores de Shao-lin, determinou-se a visitá-lo, com vistas a obter ensinamentos. Encontrando-se com Bodhidharma, suplicou fervorosamente ao buddha que o instruísse e iluminasse sobre a verdade do Budismo. Bodhidharma, porém, não atentou para os rogos de Seng-k'o.

 

Seng-k'o não se deixou desanimar nem contrariar, uma vez que era homem de estudos com grau considerável de instrução e com conhecimento sobre grandes espirituais do passado que haviam passado por provações duras e desencorajadoras no decorrer de suas jornadas pessoais, ainda que tendo por finalidade um objetivo superior.

 

Uma tarde esteve em meio à neve, esperando que Bodhidharma notasse sua presença e o convidasse para achegar-se. Caindo rapidamente a neve, a mesma chegava quase à cintura de Seng-k'o.

 

Bodhidharma, verificando a situação, penalizado dirigiu-se a Seng-k'o e disse:

-Que desejas que faças por ti?”

 

Seng-k'o lhe disse:

-"Venho receber tuas inestimáveis instruções; rogo-te que abras a porta da misericórdia e estendas tua mão de salvação a este pobre mortal sofredor...”

 

Todavia, Bodhidharma respondeu a Seng-k'o:

"A incomparável doutrina do Budismo somente pode comprender-se depois de dura disciplina, suportando o que é muito difícil de suportar e praticando o que é muito difícil de praticar. A homens superficiais, envolvidos com uma virtude e uma sabedoria inferiores não lhes é possível compreender a verdade do Budismo. Todo o trabalho resulta em nada"...

 

Ante a exposição de Bodhidharma, Seng-k'o, que portava uma espada, cortou com a mesma o próprio braço esquerdo [*] e apresentou-o diante de Bodhidharma, o qual, entretanto, lhe disse:

 

-O Estado de Buddha não pode ser encontrado através de outra pessoa...”.

 

"-Minha alma não está em paz senhor. Rogo-te que a pacifiques...", tornou Seng-k'o.

 

"Traz-me a tua alma, e a pacificarei...", disse Bodhidharma.

 

 

Seng-k'o deteve-se por um momento e, então, replicou:

"Eu a tenho procurado por muitos anos, sem nenhum efeito!"

 

-Pois, então”, voltou Bodhidharma, “-Tua alma já está pacificada para sempre!”

 

 

Então Bodhidharma disse a Seng-k'o que mudasse seu nome para Hui-k'o [ou Hui K'e - japonês: Eka], o qual, posteriormente, dentre os discípulos chineses de Bodhidharma, veio a ser seu sucessor e, assim, o 2º Patriarca da Escola Ch'an de Budismo chinês.

 

[nota: pelo relato, depreende-se que o braço de Seng K'o já deveria estar congelado. Hui K'o esteve com Bodhidharma por seis anos...].

 

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O sábio Shih-shuang (japonês: Sekiso – 986-1039 EC) disse:

 

Cessa todos os teus anseios;

deixa o mofo crescer em teus lábios;

faça de ti mesmo como um perfeito

pedaço de seda imaculada;

 

Deixa teu pensamento ser a eternidade;

Deixe-te ser como as cinzas mortas, frias e sem vida;

mais uma vez, deixa-te ser como um velho incensório

num santuário abandonado de uma aldeia!

 

Pondo tua fé somente nisto,

disciplina-te a ti mesmo, de acordo com ela;

Deixe teu corpo e mente serem transformados

num objeto inanimado da natureza

como uma pedra ou um pedaço de madeira;

 

Quando um estado de perfeita imobilidade

e inconsciência é obtido

todos os sinais de vida partirão

e também todos os vestígios da limitação desaparecerão.

 

Nem uma única ideia perturbará tua consciência,

quando... eis! todo de súbito

tu perceberá uma luz abundante

em meio a um imensa alegria.

 

É como a vinda, do outro lado,

de uma luz na escuridão espessa.

 

É como receber um tesouro na pobreza.

 

Os quatro elementos e os cinco agregados

não são mais sentidos como fardo pesados;

tão leve, tão fácil, tão livre tu estás.

 

Tua existência foi liberada de todas as limitações;

 

Tu te tornaste aberto, claro e transparente.

Tu ganhaste uma visão interior iluminada

sobre a natureza das coisas,

que agora aparecem para ti

como flores fantásticas

sem nenhuma realidade concreta.

 

Aqui é manifestado o ser sem sofisticações,

o qual é a face original do teu ser;

aqui é mostrada em toda a sua nudez

a bela paisagem da tua terra natal.

 

Agora há apenas uma passagem aberta

e interiormente desobstruída.

 

Isto é assim

quando tu te entregares inteiramente:

teu corpo, tua vida e tudo o que pertence

para o teu 'eu' mais íntimo.

 

Isto é onde tu ganhas paz, tranquilidade, repouso

e um deleite inexprimível.

 

Todos os sutras e shastras

não são mais que a comunicação deste fato;

todos os sábios, tanto antigos como modernos,

têm esgotado sua criatividade e imaginação

com nenhum outro propósito

senão o de apontar o caminho para este fim.

 

É como abrir a porta para um tesouro;

 

Quando a entrada desta porta é obtida,

cada objeto à tua vista é teu,

cada oportunidade que se apresenta 

está disponível para teu uso;

 

Pois não são todos elas, embora inumeráveis,

bens que podem ser obtidos

dentro do teu próprio ser original?

 

Todos os tesouros que há

apenas esperam que tu os descubras e utilizes.

 

Isto é o que se entende por

'Uma vez ganho, eternamente ganho, até o fim dos tempos.'

 

Todavia, realmente, nada tem sido ganho;

o que obtiveste não é nenhum ganho,

e, no entanto, há algo verdadeiramente ganho no presente."

 

[nota: o relato de Shih Shuang dá breve descrição do processo interior de uma pessoa iluminada; o método é o tradicional, através da meditação/dhyana, de certa forma já aparentado com a técnica zazen...] 

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Foi no sétimo ano de Hsien T'ung (867 EC)

que iniciei o estudo do Tao.

 

Por toda a parte, aonde ia

eu encontrava palavras

e não as entendia

 

Um fragmento de dúvida dentro do espírito

me era como um cesto de vime.

 

Durante três anos, morando nos bosques, junto do regato

eu era inteiramente infeliz

quando, inesperadamente,

por sorte, eu encontrei o Dharmaraja [“rei do dharma” - o mestre ch'an]

sentado no tapete.

 

Aproximei-me dele, ansiosamente,

pedindo-lhe para dissolver minhas dúvidas.

 

 

O mestre, que estava sentado

absorto em profunda meditação

levantou-se do tapete

 

Depois, descobrindo o braço,

deu-me um murro no peito.

 

Isto fez, de repente, explodir em pedaços

meu fragmento de dúvida.

 

Erguendo o cabeça

percebi, pela primeira vez,

que o sol era redondo.

 

Desde então tenho sido

o homem mais feliz do mundo

sem temores nem preocupações

 

Dia após dia, passo o meu tempo

do modo mais jovial

 

Somente eu percebo meu íntimo

repleto de um sentido de plenitude e satisfação.

 

Já não saio mais de um lado para o outro

com minha tigela mendigando comida...

 

Lohan Hoshung [japonês: Rakan Osho] é um budista errante do séc. IX EC, mencionado em “A Transmissão da Lâmpada” de Tao Yuan (1002 EC)

 

[nota: Lohan Hoshung chegou ao nível em que as palavras não eram mais suficientes nem poderiam mais iludir ou desviar... um murro no peito e satori? aí é que entra a mestria dos buddhas... para ele, para mim sim... não, talvez, para outra pessoa - ainda que na mesma situação...]

 

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