Kabir. (Santo Kabir)

12/02/2015 06:49

KaBIR.jpg

 

 

Kabir e Angulimala são bastante conhecidos por quem, nos meios ocidentais, tem interesse  pelo Sufismo, pelo Buddhadharma e pelo Vaishnavismo.
 
 
 
A informação sobre a Bhakti Marga (Via do Amor), sobre sua validade, relevância e consistência é necessária – mesmo se a veia da Jnana Marga (Via do Conhecimento) é mais forte ou preponderante em nós. A meu ver a Bhakti Marga tem uma qualidade curativa. Porém, mesmo a Bhakti Marga tem transmissão e sua Bhakti Vidya (Vidya = Ciência Espiritual). Embora eu não descarte a possibilidade da Via Mística - ou seja, sem transmissão - entretanto, o fato da Prática Espiritual é que sem a Benção/Baraka, vai ser mais difícil avançar até onde os iluminados bhaktas chegaram. A Bhakti Marga, suportada pela Bhakti Vidya, é para ser desenvolvida na prática –  se não o que temos consiste dos níveis exclusivamente relativos à religiosidade e/ou ao nível literário. 
 
A Bhakti Marga e a Jnana Marga se complementam e em determinados indivíduos a Jnana é mais forte, em outros a Bhakti... [*]
 
[nota: e como fica a Bhakti Marga no âmbito do Budismo? No caso do Buddhadharma, por exemplo, é explanada a necessidade do cultivo da Bodhichitta - qualidade necessária aos desenvolvimentos da Grande Compaixão/Maha Karuna e, em continuação, da Vacuidade/Shunyata - como requisito para o Buddhato/Estado de Buddha.
 
             MAHA KARUNA/Grande Compaixão              SHUNYATA/Vacuidade
 
                                                          \                                              /
                                                                            __________________________
                                               BODHICHITTA
 
 
Para tal desenvolvimento é necessário cultivar a qualidade Amor-Bondade, a qual não se trata de mero sentimentalismo ou emocionalismo; tampouco de algo que possa ser sabotado ou curvado pela armadilha das exigências antiespirituais e antimetafísicas da nossa cultura hodierna.
 
O ensinamento budista aqui é relevante: ele demonstra que a energia da santidade é permeada pela qualidade Amor-Bondade aberta a todos os seres - desenvolvimento necessário à elevação/iluminação - , nos arhants, bodhisatvas e buddhas; todavia, se a causa da bodhichitta é a qualidade Amor-Bondade aberto a todos os seres, tal qualidade não é exclusividade do Buddhadharma e também está presente nos santos e iluminados das demais tradições espirituais. Nesse caso, os santos têm bodhichitta, mesmo não sendo budistas nem tendo a informação budista sobre a relação bodhichitta/amor-bondade... senão não seriam santos...]
 
 
 
Entretanto, também a armadilha feita de palavras é perigosa – mesmo as palavras de expressão mística, metafísica e/ou religiosa. Se não há uma contrapartida - a qual é luminosa e sadia - é necessário desconfiar (na melhor das hipóteses, talvez alguém não está no lugar/perspectiva espiritual ou ajuntamento que é o mais adequado para si; na pior delas, já se trata de situações movediças ou mesmo falidas ou, ainda, traumáticas)...
 
Onde não há Amor/Bondade nem observação real de valores éticos – pois em alguns casos os valores éticos existem, porém são relativizados - a situação está aflitiva e significativamente comprometida e, nos casos graves, "a vaca já foi para o brejo", "o barco já afundou", "a cidade já caiu"... [*]
 
[nota: o que acontece em toda agremiação, ajuntamento, partido político, grupo ideológico, tradição filosófica, espiritual, religiosa ou esotérica é que há o conhecido discernimento entre os “de dentro” e os “de fora”, os “irmãos” e os “não-irmãos”, os “da família” e os que “não são da família”, os "militantes" e os "não-militantes", os ”iniciados” e os “não-iniciados”.
 
Esse discernimento não é, em si mesmo, maligno nem doentio: um pai e uma mãe hão de se preocupar com suas crianças; as crianças com seus pais, avós, tios, irmãos e primos; um professor há de se preocupar com seus alunos e talvez merecer a preocupação destes; um mestre espiritual há de se preocupar com seus discípulos e esses com o mestre; se eu vou para a prática da sadhana em grupo, devo me preocupar com os outros praticantes e com o bom andamento da sadhana (e a sadhana é para os engajados, para aqueles que têm a instrução e a transmissão; não para quem não os têm)...
 
Todavia, tal discernimento pode tomar rumos malignos quando são perdoados crimes e acobertadas doenças (sem nenhuma reparação justa para as vítimas, - quando o “outro”, o “de fora”, o “não-irmão” é prejudicado no seu direito legítimo de maneira injusta ou maligna - e tudo se decide, simplesmente, por “provimento interno”, como se "o de fora" tivesse alguma relação, compromisso ou obrigatoriedade com o "meu provimento interno" ). Nesse caso, os “de dentro” têm um status especial, uma valoração "superior"; enquanto que os “de fora” não contam para nada que seja benigno e, nos casos graves, são apenas “algo irrelevante”, “sem importância” ou ainda “algo descartável e desprezível” (sem comprovação real destas condições) não prevalecendo a balança imparcial da justiça nos azares, desencontros e conflitos de interesses, mas sim a esperteza, a astúcia, a malícia e a força.
 
Isto se reflete, inclusive, numa certa porção das famílias: “esse é da minha família...” ou “é conhecido da minha família...” ou “é agregado/associado da minha família”... enquanto que aquele outro eu “nunca o vi”, “não sei – e não quer saber - quem é”, “não é da nossa circulação”, ... e isto não daquela maneira necessária à preservação da própria integridade e à cautela no envolvimento com recém-chegados e estranhos (afinal, tudo é uma faca de dois gumes e a posição da prudência e da cautela é sadia; as coisas não estão fáceis) mas de uma maneira que corresponde a uma estreiteza mental/interior, desconsiderando/descartando a possibilidade de acolhimento justo, bem como de alguma hospitalidade (benigna, obviamente). Ao invés, temos uma reação padrão estúpida, implacável, que obsta a possibilidade de uma melhor convivência ("Eu", "meus sonhos, metas e ambições", "minha família", "os amigos que escolho" ... o resto não é da minha conta nem me preocupa outros universos ou planetas que não esses).
 
 
Em nós tudo começa; em nós tudo pode terminar...
 
 
 
O que, por exemplo, a veracidade do Cristianismo sempre ensinou, bem como o Budismo, é que há um limite para o exercício deste tipo de distinção entre os “de dentro” e “os de fora”– a qual muitos colocam em prática inexoravelmente, implacavelmente (e ainda de maneira automática, porque foram criados e educados desta forma) - há um limite ético que não pode ser rompido, não pode ser violado por causa deste valor associativo-comunal, caso contrário, dependendo da situação envolvida, o que temos são condutas iníquas, criminosas, desleais, miseráveis e/ou doentias sendo acobertadas (e haja sujeira/imundície debaixo do tapete da rotação dos crimes sem punição/castigo nem reparação justa para os vitimizados porque perpetrados “por membros da família”...)
 
Não sendo a distinção entre os “de dentro” e os “de fora” irrelevante, mas tendo a sua importância em diversos andamentos para comunidades e famílias – inviável, por exemplo, passar as sadhanas (não me refiro às práticas abertas a qualquer visitante) do Vajrayana para quem não tem instrução nem transmissão - até porque elas simplesmente não funcionam -, entretanto, o uso desta distinção precisa estar, necessariamente, amarrado a uma valoração ética inequívoca, não violadora e não molestadora de limites e observâncias fundamentais, dos direitos legítimos “dos outros” (e que, na verdade, são os direitos de todos nós, engajados nalguma perspectiva ou não). A distinção entre “os dentro” e “os de fora” pode e deve ser utilizada no seu vetor sadio, mas não no vetor que toma um rumo doentio/miserável.
 
O Judaísmo, por exemplo, que por ser uma tradição espiritual vinculada à nação de Israel – e que, portanto, poderia ser considerada autoprotetora e entrópica - tem, na verdade, como ensinamento prescrito justamente o receber os estrangeiros, não fraudá-los nem hostilizá-los, mas acolhê-los, como consta no capítulo 10 de Deuteronômio e relembrado no salmo 81:
 
 
18 Ele [o Senhor] defende a causa do órfão e da viúva e ama o estrangeiro, provendo-lhe alimento e vestimenta.
 
19 Portanto, amareis o estrangeiro, porque fostes igualmente peregrinos na terra do Egito. (Deuteronômio)
 
 
4 Tocai a trombeta na Lua Nova, no dia assinalado para a vossa solenidade
 
5 Porque está ordenado a Israel: um estatuto em honra do Deus de Jacob 
 
6 Ordenou-o por testemunho a José  quando saíra da terra do Egito, 
 
   onde ouvi uma língua que não entendia... (salmo 81)
 
 
 
No que concerne àqueles nas fileiras das tradições espirituais não há elevação nem iluminação sem observação digna, idônea de valores éticos, entre outras observações... E os ritos? (entenda-se: os ritos objetivando elevações). Em geral, não decolam ou decolam muitíssimo menos do que poderiam, ou seja: quando voam, voam baixo... Como me observou um amigo meu, a diferença entre você adentrar um caminho espiritual pela via mistica (identificação + estudos + práticas que não necessitam de iniciação nem de guru ) e ter participação em uma transmissão regular (com iniciações + guru + o suporte da família espiritual correspondente) é que na transmissão regular, em alguém recebendo as iniciações por um guru autêntico, existem certas portas ou corredores que são secretos ou especiais, acessíveis somente para aqueles que tem a regularidade efetiva na linhagem de uma família espiritual e estão, na sua regularidade, aprovados pela mesma – nesse caso, uma pessoa, dependendo da sua construção interior-espiritual, pode ter acesso integral ao resultado de uma transmissão.  Isto já não ocorre na via mística, onde, por não ser possível resgatar uma iniciação ou contactar uma família espiritual com a qual nos identificamos, as portas ou corredores especiais/secretos não são alcançados por falta de rito regular válido que faculte o acesso, mesmo se somos estudiosos e zelosos. O alcance da via mística existe; mas é parcial e restrito, na verdade, limitado... Seja como for, o fato é que, mesmo numa transmissão regular válida, os ritos não decolam ou seu alcance se torna limitado quando há falhas éticas comprometedoras...
 
 
Nós estamos no ano de 2015 EC e o homem está na terra há bem mais tempo. Os ritos das diversas tradições espirituais que correspondem a procedimentos objetivando elevações continuam não afiançando, não avalizando, até o momento presente, condutas miseráveis ou vis, independentemente de opinião humana (e é preciso entender que quando  os ritos "voam baixo" esse resultado já é diferenciado do resultado mundano comum e pode gerar a ilusão de que "tudo vai bem", que "não é nada" ou ainda que "é só um pequeno desvio", "uma besteirinha", e que os ritos estão resolvendo, equacionando tudo sem reduções; sem falar que há, também, quem minta que "tudo está ok"... Uma autocorreção seria o mais adequado...)...
 
Nem o Cristianismo no qual nasci nem o Buddhadharma ao qual, posteriormente (e em decorrência de algumas dificuldades na Igreja), aderi estão me autorizando a cometer crimes, ações mesquinhas, trapaças cruéis, autuações gratuitas ou por motivos ínfimos ou ainda por motivos injustos ou vis - tampouco me acobertando ou protegendo em eu adotando tais condutas ... O dia em que a Tradição estiver acobertando e “perdoando” crimes e misérias (sem compensar justamente o vitimizado) pelo simples e exclusivo fato do criminoso/miserável “ser membro da família” eu estou tirando o meu time de campo  (ou do setor dela que estiver procedendo desta forma).
 
Sem a observação efetiva de valores éticos a novela continua; – entretanto, numa sequência infeliz ou sinistra/miserável…]
 
 
 
Em relação a Angulimala, o fato é que eu, pessoalmente, vejo algo no sofrimento que o atingiu que permanece, infelizmente (e letalmente), atual - ainda que com outras vestes, outras nuances/variantes e outras circunstâncias. Quem viu pessoalmente as pessoas perdidas, desorientadas, fraudadas, com a mente e a alma danificadas e reduzidas - e ainda sem saber o “como” nem o “porquê” de sua situação aflitiva - sabe do que estou falando. Foi o que tentei demonstrar - ou ao menos aventar - nas observações que anotei no post sobre Angulimala.
 
 
Em relação a Kabir, eu tenho algumas poucas observações a fazer, acerca de sua iconoclastia e de sua posição na Tradição.
 
 
Canções de Amor Místico - muitas delas lembrando São João da Cruz e o Cântico dos Cânticos de Salomão bem como a princesa Mira Bai) e Sufismo, Vedanta dual e Vaishnavismo... Procedente a posição que entende Kabir como uma fusão, um sincretismo entre Islam e Hinduísmo.
 
 
A introdução de Evelyn Underhill nos “Cem Poemas de Kabir” por Rabindranath Tagore (Attar Editorial, 1988), procurou ser enxuta, sóbria. Eu preferi verificar também o material do “Bijak”, dos vaishnavas vinculados a Kabir bem como do movimento Kabir Panth (Via de Kabir) e colher mais um pouco de informação sobre sua vida [*].
 
 
[nota pessoal: Esta vez vou ficar devendo o Guru Nanak - cairia bem neste post - e o Sikhismo, porque em decorrência de compromissos materiais e espirituais (visitas/sadhanas no Buddhadharma) - e depois a enfermidade (fortíssima gripe) - não pude efetuar melhor a necessária pesquisa, a qual ficou a meio caminho... Num ulterior post repassarei alguma coisa...]
 
 
kabir (1).jpg
 
 
Nascido no norte da Índia, na cidade sagrada de Benares (Kashi, atualmente Varanasi) atribui-se seu nascimento ao ano de 1398 – outra fonte o posiciona em 1440 - , enquanto que há concordância sobre o ano de 1518 como sendo o de seu falecimento, no distrito de Maghar, em Gorakhpur. Não se sabe da circunstância exata de seu nascimento - uma fonte afirma que a mãe indiana de Kabir concebeu virgem e morreu devido a complicações pós parto; na obra “Bijak of Kabir” - tradução para o inglês de Ahmad Shah da principal obra de Kabir – dá-se a entender que Kabir, como o buddha Padma Sambhava, simplesmente apareceu numa lagoa em meio aos lótus da mesma. Em continuação, ele foi encontrado e adotado por um casal muçulmano e criado conforme o Islam, sendo seu pai adotivo um julaha/tecelão.
 
 
Embora - e com ajuda determinante do Sufismo - o Islam lograsse conversões autênticas em seu avanço pelo região Norte da Índia - os persas Attar, Hafiz, Saadi e Jami já eram muito estudados e difundidos na Índia islamizada -, costumes e tradições sociais/exteriores permaneciam sendo estritamente observados em ambas as tradições; toda a família de Kabir era da casta dos julahas (tecelões), sendo a referida considerada uma casta simples, de estrato social inferior entre as trinta e seis castas sociais existentes em Benares.
 
 
O ensino tradicional estava em mãos dos pandits hindús e malavis muçulmanos mas o menino de origem simples, Kabir, foi afastado dos centros hindús (pathashalas) e muçulmanos (maktabs) de ensino. A educação de Kabir é atribuída a pessoas piedosas.
 
 
 
Ele foi um músico e pinturas do santo o retratam com seu instrumento musical.
 
 
 
Kabir - o filho de Rama e de Allah - desde menino demonstrou interesse em questões espirituais e procurava frequentar os encontros religiosos e satsangas que ocorriam em Benares. Incomodados com os questionamentos de Kabir, pandits e malavis expeliam-no dos mesmos, alegando a falta de formação doutrinal de adolescente bem como, no caso dos hindús, que ele era apenas um Nigura (sem guru, sem professor formal, portanto, sem transmissão nem conexão com alguma linhagem).
 
 
Foi assim que Kabir decidiu procurar um guru autêntico (o que demonstra seu apreço e admiração pelo cerne das doutrinas hindús, mesmo sendo repelido pelos pandits nas reuniões). Sendo Swami Ramananda - da linha espiritual vaishnava do grande reformador indiano Ramanujacharya (séc. XI)- então, um dos espirituais mais respeitados em Benares, Kabir, um muçulmano, decidiu que Ramananda seria seu guru.
 
 
Informando-se sobre o ashram de Ramananda, todavia, ali chegando, Kabir foi estorvado de encontrá-lo pessoalmente pelos discípulos hindús, alegando que o jovem tratava-se de um simples julaha (tecelão) muçulmano.
 
 
Inconformado, Kabir procurou inteirar-se das rotinas de Ramananda e soube que o mesmo ia às margens do rio Ganges, para banhar-se, sempre pela parte da manhã. Kabir se escondeu numa passagem de acesso e quando Ramananda chegou, passando pelo mesma, eis que tropeçou em algo - Kabir - e, ao ver um jovenzinho chorando diante de si, disse: 
“-Não chores filho. Diga: Rama! Rama!”.  
 
Kabir recebeu isto como a transmissão do mantra e, voltando para a casa de sua mãe, contente com o mantra “transmitido” por Ramananda, ele declarou, por si próprio, já ser seu discípulo.
 
 
Inteirando-se do assunto e intrigada, Neema, sua mãe adotiva, dirigiu-se até Ramananda para confirmar a informação de Kabir, tendo em vista ser o mesmo muçulmano. Ouvindo a explicação de Neema, Ramananda requisitou o comparecimento do jovem Kabir e, ao chegar o mesmo, disse-lhe:
 
“Ó filho, por que mentes? Diga-me quando te fiz meu discípulo? Por que me difamas?”.
 
 
Com as mãos em reverência, Kabir respondeu a Ramananda que teve uma visão com ele transmitindo-lhe o mantra. Daí sua insistência, ainda que repelido pelos discípulos quando de seu deslocamento ao ashram. 
 
Em continuação, reverenciou e honrou o nome de Shri Rama, o que não apenas foi aceito, mas comoveu Ramananda, o qual admitiu e ainda abençoou Kabir.
 
 
Entretanto, espalhou-se o rumor que Ramananda estava recebendo, iniciando e abençoando pessoas de baixa casta e de outra tradição espiritual, o que lhe angariou transtornos com os hinduístas.
 
 
Kabir, também, teve sua santidade testada em diversas ocasiões pelo ciúmes de muçulmanos e hinduístas.
 
 
Em uma delas os brahmanes enviaram uma cortesã para caluniá-lo e assim reduzir sua reputação como espiritual iluminado, a qual crescia em Benares; encontrando-se a mesma com Kabir no local onde o mesmo vendia as peças de tecido, começou a dizer em voz alta que Kabir era um enganador de mulheres e que ela mesma era uma das mulheres enganadas por ele, sendo falsa a reputação de sadhu atribuída àquele homem mau. Kabir teve paciência e convidou a cortesã a acompanhá-lo ao seu retiro. Lá chegando, tratando-a cordialmente e conversando benignamente com a cortesã, eis que a mesma compreendeu que estava realmente diante de um santo e tornou-se sua discípula.
 

 

 

Gorakhnath pergunta a Kabir: 

 

-Diz-me, Kabir, quando começou tua vocação? 

Onde nasceu teu amor?”

 

Kabir responde:

-Quando Aquele cujas formas são múltiplas 

ainda não havia começado seu jogo;

quando não havia nem mestre nem discípulo;

quando todavia não existia o próprio mundo;

quando o Supremo Um estava sozinho,

então foi quando me fiz asceta;

então,oh, Gorakh! Brahman atraiu meu coração a Ele.

 

Quando me instruí na doutrina dos ascetas,

Brahma não estaba coroado,

nem Vishnú ungido rei,

nem havia nascido ainda a potência de Shiva.

 

Foi em Benares onde tive uma revelação repentina...

Ramananda me iluminou...

 

Trazia comigo a sede pelo infinito;

e vim a este mundo para reunir-me com Ele.

 

Em simplicidade me unirei com o Ser simples

e meu amor transbordará.

 

Ó Gorakh, marcha ao ritmo desta música!”

 

 

Os deslocamentos de Kabir foram estorvados, em oportunidades diversas, pela observação de aspectos exteriores e sociais por parte de hindús e muçulmanos. Alcançando sua iluminação com Ramananda, Kabir não poupou diversos andamentos de ordem exterior em suas críticas – não poupou também os pandits e malavis (eruditos hindús e muçulmanos) nem algumas autoridades religiosas que tinham os conhecimentos e as práticas porém sem a Realização dos Frutos; aparentemente herético [*], Kabir, em verdade, acabou por se tornar um espelho e um contra-peso da tradição, nas localidades em que viveu.

 

[nota: pessoalmente, vejo Kabir mais como um provocador - ou melhor dito, um desafiador - com seu desdém metafísico, do meu ponto de vista, benigno (afinal é só as pessoas se esforçarem um pouco mais - cada qual na sua possibilidade - não estancarem e os resultados efetivos aparecem)  - das posições constituídas do que como um herético. Mas ele tinha realização interior/espiritual para proceder desta forma...Quem dera eu me encontrar com um Kabir... sentar-me-ia com ele e o teria na conta de um amigo...] 

 

 

Iluminado, pessoas das populações locais acorriam a Kabir para receber sua benção e ensinamentos. Foi crítico do exclusivismo religioso e da rigidez formalista dos doutores da lei, e, vale salientar, tal posição é também a mesma dos sufis (alguns sufis se revoltaram contra os ullemahs, acusando-os de matar a propagação do Amor Divino e ensinar um credo meramente exterior - ou pautado rigidamente nos parâmetros iniciais do Islam, nos primeiros rudimentos -, sem muita interação com as essências divinas nem penetração/aprofundamento nas mesmas). 

 

Na verdade, tal posição deveria ser a de todos os muçulmanos, pois segundo o Corão e o Hadith, todas as religiões verdadeiras até a Hégira (início do Islam)– verificada a veracidade de seus ensinamentos e de seus fundadores, bem como a existência de homens e mulheres sagrados em suas fileiras – são reconhecidas pelo Islam [*]. O Islam, ao menos em relação às tradições espirituais ortodoxas, deveria ser a mais tolerante e universalista das religiões sobre a terra. 

 

[nota: o fundamentalista islâmico Haroon Yahia escreveu o livro “Islam and Buddhism” comparando uma forma de teísmo dualista extraído de passagens do Corão, - parecido com o fundamentalismo protestante - com o Buddhadharma e, obviamente, impugnando o Buddhadharma. Isto chega a ser estranho se se levar em conta que o Corão afirma a existência de “outros profetas” e fundadores de religião em outras nações, reconhecendo sua validade espiritual, ao menos até a Hégira.
 
“Cada comunidade terá o seu enviado” (Corão, X, 47)
“Nunca mandamos nenhum enviado que não falasse a língua do seu povo” (Corão XIV, 4)
 
Um detalhe fundamental, desligado e jogado fora por Yahia: o Buddhadharma é anterior à Hégira, não posterior à mesma... Pela orientação corânica, Allah não apenas é Sem-Forma, mas nos traz uma certa noção de Absoluto, em comparação com o Hinduísmo, mesmo de Brahman; todavia, no campo das energias divinas (lembrando São Gregório Palamas),  há os 99 Nomes Divinos, onde cada um dos nomes divinos traz um atributo ou característica dos caminhos da manifestação divina, abrindo vias para a uma Bhakti Vidya muçulmana (ser "devoto do Absoluto" é possível para quem tem estudos, Bhakti Vidya, mas, numa parte dos casos, as pessoas simples se contentam com noções básicas).  O Buddhadharma, entretanto, pelas Quatro Nobres verdades, nos remete diretamente, à pesquisa interior-espiritual; e das Quatro Nobres Verdades, um budista é remetido, imediatamente às Duas Verdades: Samvritti Satya (verdade condicionada ou relativa) e a Paramartha Satya (Verdade Transcendental, Absoluta ou Final). A pesquisa budista, iniciando com as Quatro Nobres Verdades, busca a Paramartha Satya ou, na terminologia hindú, a Realidade Última... Nesse caso, me pergunto, então, não se é possível, mas se é verdadeiro  idôneo, enquadrar e nivelar o Buddhadharma com um teísmo dualista surgido no Islam moderno (por exemplo: o que foi desenvolvido e divulgado por Sayyd Qutub) muito parecido com o teísmo simplista  protestante?
 
O segundo detalhe fundamental - também jogado fora por Yahia - é: alguém já viu o Buddhadharma estorvar o Islam - ou, ainda, o Protestantismo – em alguma coisa? Alguém pode informar onde o Budismo está fraudando o Islam? No sudeste asiático? Mas o Buddhadharma estava lá primeiro...
 
Embora a invasão muçulmana do Norte da Índia tenha sido cruel para o Buddhadharma, os registros muçulmanos anotaram a presença da religião de Kifl, o profeta da Kapilavasthu (o Buddha Shakyamuni). É preciso entender, salientar que, para o Islam, “profeta” = iluminado = homem sagrado. O livro de Yahia - que não percebe que o Buddhadharma é um formulação diferente da sua interpretação pessoal do Corão -  o Buddhadharma é uma forma de tasawuff (metafísica) e caberia a Yahia compará-lo com o Sufismo, uma vez que a pesquisa do Buddhadharma já se dá ao nível do fim das coisas, da Realidade Última. Não é por ser uma formulação diferente que o Buddhadharma tratar-se-ia de algo maligno ou vil - alguém acredita que há algo perverso ou maligno ou antiespiritual na doutrina do Caminho Óctuplo? ou na doutrina da Maha Karuna/Grande Compaixão?.  Yahia traz uma ponderação que poderia até servir de pretexto para as agressões covardes dos extremistas no sudeste asiático. Mas parece que ele não se preocupou nem um pouco com isto, que seu livro poderia subsidiar uma hostilidade que, à luz da investigação idônea e não-superficial, se mostra desnecessária, gratuita do Islam em relação ao Budismo, se houvesse um pouco mais de estudos e preocupação com as outras pessoas.]

 

.

 

“O fato é que Ishwara e Allah

estão presentes no coração de todos os seres vivos.

Keshava (Krishna) e Karim (o Generoso)

estão também presentes no coração.

 

Pecorra as páginas dos Vedas e do Corão,

essas escrituras também dizem que Rama e Rahim (o Clemente/Misericordioso)

estão presentes em cada ser vivo."

 

Kabir diz: "Eu sou a criança de Allah e Rama;

Ele é meu Guru… Ele é meu Pyr (Mestre).

Eu não tenho fé em nenhuma uma outra coisa que não Ele...

 

 

 

Os poemas de Kabir são conhecidos por muitos no Ocidente – seus poemas foram traduzidos ao inglês por Rabindranth Tagore com introdução por Evellyn Underhill, obra essa disponível também em português (pela brasileira Attar Editorial). A obra principal de Kabir é chamada "Bijak" (localizável em hindi e em inglês no site www.archive.org em Pdf e Epub – o Epub da tradução inglesa, porém, está repleto de erros de grafia, sendo recomendável o Pdf). O belo trabalho de R. Tagore pode ser localizado em sebos, podendo ser consultada na EstanteVirtual a obra “Cem Poemas de Kabir” de 1988 (www.estantevirtual.com.br).

 

 

(...)

 

Conta-me, ó Cisne, tua antiga história...

 

De que terras vens

e a que margens vais?

 

Onde descansarás

e o que é que buscas?

 

Cisne, desperta já,

nesta mesma manhã

levanta-te e segue-me...

 

Há um lugar onde não existe

sofrimento nem dúvida...

 

Onde não se conhece o terror da morte...

 

Ali os bosques em flor

estão sempre em uma eterna primavera

 

E o vento leva a fragrância de seu aroma:

“eu sou Ele”

 

A abelha do coração

está profundamente submersa

e não deseja outra alegria...

 

 

(…)

 

 

Para Ti atraíste meu amor, oh Fakir!

 

Me encontrava, em mim, adormecido

no obscuro aposento de minha alma,

mas Tu me despertaste

sacudindo-me com Tua voz, ó Fakir!

 

Estava me afogando

nas profundezas do oceano deste mundo

e Tu me salvaste,

agarrando-me com Teu braço, ó Fakir!

 

Uma palavra tão somente

e Tu rasgaste as minhas ataduras, ó Fakir!

 

Kabir diz:

“Ligaste meu coração com o Teu, oh Fakir!”

 

(…)

 

Ouço a melodia de sua flauta

e não posso conter-me.

 

A flor se abre

ainda que não seja primavera

 

A abelha já recebeu seu convite...

 

Trovejam os céus

e relâmpagos faíscam

encapelam-se as ondas em meu coração

 

A chuva cai

e meu coração desfalece

anelando meu Senhor

 

Onde o ritmo do mundo nasce

e então declina e morre

até ali meu coração chegou

 

Ali flutuam ao vento

os pendões ocultos...

 

Kabir diz:

“Meu coração morre, embora ainda viva”

 

(...)

 

Amigo

busca-O enquanto vives

conhece enquanto vives...

 

Compreende enquanto está em ti

o fôlego de vida

pois na vida reside a liberação.

 

Se os laços e grilhões

não são rompidos ainda em vida

que esperança de felicidade

se pode almejar da morte?

 

Não é mais que um sonho vazio

pensar que a alma se unirá a Ele

somente porque deixou o corpo...

 

Se O encontras agora

encontrá-lO-ás para sempre [*]

caso contrário, irás habitar a Cidade de Morte...

 

Se obténs a união agora

obtê-la-ás depois...

 

Banha-te na verdade, conhece o Guru Verdadeiro,

tem fé em seu Nome.

 

Kabir diz:

 

É o espírito de busca contínua que nos socorre;

eu não sou mais que um escravo desse espírito de busca...”

 

[nota: ver o santo/iluminado sufi Bayazid Al Bustami: “Os que vêem o Bem Amado hoje são os que O verão também amanhã... Com efeito, que saberá do Amado lá quem está cego aqui?”. Em continuação Kabir – e alinhado com Bayazid - expõe que quem não encontrá-lO aqui “habitará a Cidade da Morte”. O que Kabir chama de “Senhor”, “Verdadeiro Guru” ou “Fakir” refere-se não apenas a Shri Rama – personalidade suprema da divindade no teísmo hindú - mas também a Brahman, ao Último, ao Um sem um segundo, à Libertação; então, “habitar a Cidade da Morte” corresponderá a continuar preso ao samsara, ao ciclo de ignorância, nascimentos e mortes em diversos estados dos seis reinos da existência cíclica...]

 

 

(…)

 

Mais do que qualquer coisa guardo comigo o amor

que me permite viver neste mundo

uma vida sem limitações [*]

 

É como a flor de lótus que florece no pântano

sem que jamais a água toque em suas pétalas

as quais se abrem fora do seu alcance

 

É como esposa que se lança à fogueira

ao chamado do amor:

se incinera e deixa que outros a pranteiem

mas nunca desonra o amor... [**]

 

Kabir diz:

Escuta-me Sadhu: poucos chegam à outra margem...”

 

[nota:

I - quem tem acompanhado este blog e leu o post “Bhakti Marga – Via do Amor”, talvez recorde do amálgama que fiz - e ali apresentei - utilizando versos de cânticos de Kabir:

 

Delicado é o caminho do amor

nele não há perguntas nem respostas

somente umas poucas almas puras

sabem de seu verdadeiro deleite...

 

Onde avareza pode haver sabedoria?

Onde há sabedoria a avareza não pode perdurar...

 

Onde há luxúria pode haver amor?

Onde há amor a luxúria não tem lugar...

 

Em minha vida cativa encontrei a liberdade...

rompi os grilhões de toda a mesquinhez...

 

E mais do que qualquer coisa

guardo comigo o amor

que permite viver neste mundo

uma vida sem limitações...

 

II – A questão da prática de Sati por uma parte dos hindús é observada neste cântico de Kabir. Coloquei as minhas observações sobre a prática de Sati – alinhada com a observação de Kabir - no post anterior a este, sobre a Princesa Mira Bai...]

 

(…)

 

Faz-me rir quando me dizem

que o peixe na água tem sede

 

Não vês que a Realidade mora em ti?

E que tu vagas sem rumo pelas selvas?

 

Eis aqui a verdade:

não importa para onde vás

- a Madrás ou a Madura -

 

Se não O encontras dentro de ti mesmo

é ilusório o mundo para ti...

 

 

(…)

 

 

Oh Sadhu, purifica teu corpo com sahaja.

 

Como a semente descansa no balneário,

e em seu seio moram a flor, o fruto e a sombra;

Assim palpita o gérmen no corpo,

e nesse gérmen se encontra novamente o corpo.

 

Fogo, ar, água, terra e éter;

inexistentes são fora dEle [*].

 

Oh kazi, oh pandit, escutai atentamente:

que coisa existe que não possua a alma?

 

Um cântaro cheio de água

e também submerso nela [em um tanque],

está rodeado de líquido por dentro e por fora [*].

 

Não deve se lhe dar nome,

pois suscitaria o erro da dualidade.

 

Kabir diz:

 

Escuta a palabra, a Verdade, que é tua essência;

Ele pronuncia a Palavra a Si mesmo,

e é Ele mesmo o Criador.”

 

[nota: Comparar também com Kaivalya Upanishad, verso 22: “Para Mim não existem virtude nem vício; Eu não posso ser destruído... Eu não tenho nascimento nem corpo... nem sentidos nem intelecto... Para Mim não existem nem água, nem fogo, nem terra... para Mim não existem nem vento nem céu (éter/akasha)...”.    O “cântaro” é a vida individual. Mas, por dentro e por fora, o que há é “água”. ]

 

(...)

 

 Quando Brahman se revela,

se manifesta Aquele que jamais pode ser visto.

 

Assim como a semente palpita na planta;

a sombra acompanha a árvore,

o vazio está no céu,

e formas infinitas no vazío;

 

Assim do mais além de Infinito emana o Infinito,

e do Infinito se desdobra o finito.

 

A criatura mora em Brahman

e Brahman na criatura:

distintos, mas sempre unidos [*].

 

Ele é a árvore, a semente e o germén.

Ele é a flor, o fruto e a sombra.

Ele é o Sol, a luz e o que a luz alumia.

Ele é Brahman, criatura e maya.

Ele é a multiplicidade de formas e o espaço sem fim.

Ele é o alento, a palabra e seu significado.

 

Ele é o límite e o sem límite;

e Ele é, além do limitado e do ilimitado,

o Ser Puro.

 

Ele é a mente imanente em Brahman e a criatura.

O Ser Supremo é visto dentro do Ser Supremo,

e dentro do ponto é vista novamente Sua projeção.

 

Kabir é bendito porque tem esta visão suprema!

 

[nota: A doutrina nuclear das Upanishads. Ayam atma Brahma: Este Atman é Brahman; Tat tvam asi: Tu és isto...]

 

 

 (…)

 

Não sou devoto nem ateu

Não sou moralista nem libertino

 

Não sou um orador nem um ouvinte

Não sou um servo tampouco um senhor

 

Não estou acorrentado tampouco sou livre

Não tenho preferências nem aversões.

 

Estou longe de ninguém...

Estou perto de ninguém...

 

Não irei para o inferno nem para o céu...

 

Cumpro todos os deveres que me cabem

mas estou dissociado de todos os deveres

 

Poucos comprendem meu significado

que aquele que me entende encontre a paz.

 

Kabir não procura mais criar nem destruir...

 

[nota: Kabir tem alcançado a liberação. Neste versos descreve, mais que convicções pessoais ou filosóficas, a liberdade interior/espiritual de alguém que alcançou a Outra Margem...]

 

(...)

 

Ó servidor, onde me buscas

Se estou junto a Ti?


 

Não me encontrarás na mesquita nem no templo;
nem na Kaaba nem no monte Kailasa;
tampouco nos ritos e cerimônias;
nem no Yoga nem nas austeridades.


 

Se, verdadeiramente, me buscas,

me verás em seguida,
Sem que tempo algum transcorra

me encontrarás.

 

Kabir diz “Oh Sadhu. Deus é o alento de tudo quanto respira.”

 

[nota: A iconoclastia de Kabir lhe trouxe a acusação de herético e sectário pelas autoridades religiosas. Não obstante, Kabir sentou-se junto a ascetas, yogues, sufis e pessoas santas da Índia. A tradição informa que, além de Ramananda, esteve junto de três mestres sufis. Das pessoas com quem sentou-se, algumas se tornaram discípulos; outros já estavam bem encaminhados ou já tinham chegado. Em outro poema Kabir escreveu: “Nunca poderei expressar quão doce é meu Senhor. O Yoga e as pregações, a virtude e o vício, nada significam para Ele.”.

 

O “Senhor” de Kabir, na forma como ele O alcançou e O propôs, já é o Resultado Final e não é atingível intelectualmente. O desdém metafísico de Kabir não é só uma provocação (ou desafio): a ligação de Kabir é uma ligação (e transmissão) direta, a essa ligação direta remete à Benção de Kabir... Como no Sufismo - do qual Kabir também fez e faz parte –, é necessária a transmissão da Benção/Baraka. A provocação de Kabir é um convite para essa proposta pois, verdadeiramente, abriu-se um caminho com ele. A iconoclastia de Kabir não tratou-se de um ceticismo como o dos céticos da nossa época; pois era difícil para as autoridades religiosas de seu tempo tentar impor suas convicções a quem já tinha a Realização, o Fruto.

 

Os engajamentos objetivando a União Suprema ou a Libertação, como o Yoga ou o Tantra, têm sua finalidade - e o filho espiritual dileto de Kabir chamava-se Kamal e era um hatha yogin. Entretanto, alcançada a meta, é como a “Jangada” mencionada pelo Buddha Shakyamuni (Majjhima Nikaya 22): útil/benigna para ajudar alguém a alcançar a Outra Margem, todavia, uma vez alcançada, não é mais necessário carregá-la conosco... isto é, no caso budista, se alguém alcança a "outra margem", este se estabelece na linhagem/família espiritual porém já não são necessárias, para esse que alcançou, a utilização, por exemplo, das técnicas samatha/vipassana, uma vez que o objetivo foi atingido. Resta a quem alcançou ajudar quem não conseguiu chegar ainda...

 

No mais, Kabir se põe a si mesmo como um “servidor” de Deus. O tipo de servidor de Deus que Kabir é pode ser percebido no poema abaixo:

 

Entre os pólos do consciente e do inconsciente,

se mede a mente;

 

Daí pendem todos os seres e todos os mundos,

e jamais cessa seu vaivém.

 

Ali há milhões de seres:

o Sol e a Lua com suas órbitas;

 

Transcorrem milhões de kalpas,

e o vaivém continua.

 

Tudo se mede

O ceú e a terra; o ar e a água

e o Senhor mesmo tomando forma:

Esta visão converteu Kabir em um servidor... ]

 

 

(…)

 

Onde reina a primavera, senhora das estações

e uma música soa por si mesma.

 

Onde torrentes de luz fluem por todas as direções

 

Poucos são os homens capazes de chegar a esta margem

 

Ali, onde milhões de Krishnas permanecem de postas

Onde milhões de Vishnús, em reverência, inclinam a cabeça

Onde milhões de Brahmas lêem os Vedas

Onde milhões de Shivas estão absortos em meditação

 

Nos Céus, iluminados por milhões de Indra

onde são inumeráveis os semideuses e os munis

onde milhões de Saraswatis, deusas da música, tangem suas harpas

 

Ali está meu Senhor presente

e o perfume de sândalo e das flores

permeia aquelas profundidades...