Hafiz - Shams Ud Din Mohammed

12/12/2014 20:15

Hafiz – Shams Ud Din Mohammed (1320-1389 EC)

 

 

Para terminar este ano, deixo aos leitores e amigos minhas anotações de alguma poesia de Hafiz - no caso alguns dos gazéis - cuja leitura penetrou em mim de tal forma que simplesmente os lembro de memória.

 

Na web está disponibilizado no site www.archives.org a tradução inglesa de Henry Wilberforce Clarke, em dois volumes do “Diwan i-Hafiz” (https://archive.org/details/thedivan01hafiuoft e para o segundo volume ...thedivan02hafiuoft ), o qual inclui não apenas os gazéis, mas rubayat, masnavi, kitáati entre outros trabalhos poéticos de Hafiz.

 

Em português, que eu saiba, há somente a tradução do trabalho francês de Charles Devilliers - e a tradução brasileira se restringiu apenas aos Gazéis – feita por Aurélio Buarque de Hollanda (Livraria José Olympio, 1944), não mencionando a edição do livro brasileiro que a tradução não é direta do persa mas sim do trabalho de Devilliers, o que o leitor deve deduzir pela leitura da introdução.

 

Para mim o semestre final deste ano foi cansativo e mesmo desgastante, me permitindo poucas horas de sono - se eu quisesse manter alguma organização no meu dia a dia -, o que me forçou mais uma vez a reduzir a continuidade dos meus estudos (os quais me são importantes - as minhas perguntas ainda remanescentes estão vinculadas a esses estudos, ao menos enquanto não os concluo).

 

À época em que Hafiz, Kabir e São João da Cruz chegaram para mim - 25 anos de idade -, eu estava num percurso que me conduzia/encaminhava para uma orientação mais intelectualista. Há algum tempo, tinha alguns colegas/amigos na Filosofia (USP, Faap, PUC/SP) com quem trocava ideias e de quem recebia sugestões de leituras e estudos e pensava em cursar Filosofia (USP ou ainda na Faap - menos militante* ); e também alguns colegas/amigos da Igreja, seminaristas ou formados em Teologia - os quais se conduziam, também eles, num alinhamento fortemente intelectual. 

 

[nota: nada pessoal contra os estudantes - esquerdistas ou não -  e nem mesmo contra os militantes - acerca dos quais tenho relação normal  de amizade com alguns -; à época que procurei alguma aproximação com a USP  - desde 1989, quando encerrei o ensino médio - dos professores que tive notícia do Departamento de Filosofia todos eram esquerdistas engajados e isto se refletia no curso (em 1992 por exemplo, era apenas um semestre com Platão e Aristóteles, seguido o semestre subsequente por Kant (what the hell?) o que me fez recuar, já que eu tinha lido a "Política" de Aristóteles e queria aprender mais; meu amigo da PUC - também socialista - dizia que o curso da PUC "era melhor"; eu mesmo preferia o da Faap - meu professor do ensino médio era um sujeito incrível  e sua aula muito elogiada pelos alunos -. Ao final fui para a área técnica - para descobrir que não era um deles - me arrependo até hoje (eu não anulo amizades sinceras nem convivências que são espontâneas... sendo eu um metafísico tradicional e ortodoxo, tenho amizades verdadeiras até com alguns contrários à minha posição - ou em posições contrárias à minha - realmente, meditando hoje,  preferiria ter estado com o pessoal na USP, mesmo com diferenças)...]

 

Do ponto de vista da espiritualidade, eis que a mesma necessita do desenvolvimento interior/espiritual efetivo e isto envolve a Mente-Coração e a formação de uma espiritualidade viva. Não tendo eu interesse nem pretensão de corrigir ou mesmo me indispor contra a preferência intelectual de ninguém, quero apenas consignar que uma apreensão que se dá somente ao nível intelectual dos ensinamentos e informações espirituais acaba criando uma lacuna ou hiato - como eu percebo essa lacuna/hiato no meio teológico (mas não somente neles) - a qual, infelizmente, para alguns acaba sendo não transposta em tempo algum. 

 

Podemos nos tornar eruditos - acumulação de estudos e saber - isto, porém, num universo que se preocupa com elevação/iluminação (ou ainda com o autodescobrimento a um nível que não pode ser considerado superficial), não implica que há uma contrapartida, uma realização efetiva; não implica que alguém - quem quer que seja - “tem alguma coisa” (alguma realização interior/espiritual verdadeira) mesmo vinculado a uma tradição espiritual que viabilize muitos recursos.

 

Some-se a isto, também, a existência de equívocos (pois, como bem sabemos, há falsos mestres, pseudogurus, a escroqueria espiritual...). 

 

As pessoas, entretanto, normalmente não são bobas de procurar “quem não tem nada” (todavia isto é uma faca de dois gumes - eu prefiro a energia de paz, ou aquela energia que é uma alegria inexplicável a qualquer fenômeno psíquico). 

 

Lidando com religião, espiritualidade ou com autodescobrimento o fato é que precisamos de informações verazes, consistentes, fundamentadas - inviável avançar, trilhar adequadamente um caminho/via sem esse requisito ou agregando tapeações/informações inverídicas; todavia, manter-se apenas ao nível das palavras pode se tornar uma armadilha e fonte de decepção (sendo que a preocupação demasiada ou ainda o apreço por fenômenos psíquicos podem constituir outra armadilha).

 

A Via do Amor/Bhakti Marga – a qual não descarta a Via do Conhecimento Unitivo, pois que esta última, na verdade, é o seu complemento e coroamento - é peça fundamental nas obras de São João da Cruz, Kabir e Hafiz e o meu contato inicial com obras desses espirituais para essa posição me remeteu – em continuação, lá vou eu com Rumi, Mira Bai, Santa Teresa de Ávila, etc. 

 

O que me veio avante, no decorrer das leituras/estudos, foi que se eu me empenhasse numa apreensão somente intelectual, eu não conseguiria ir muito longe, chegaria no máximo ao nível literário da coisa. 

 

Ao menos ler as explanações de São João Cruz - e não apenas os cânticos em si - sobre os processos interiores que caracterizam os desenvolvimentos da 'Noite Escura da Alma ', ou na 'Chama de Amor viva' e assim por diante; analogamente Hafiz e Kabir requerem mais estudos: Kabir usa algumas formulações as quais são notórias a quem sabe um mínimo sobre Hinduísmo ou então que não nos são tão estranhas ou difíceis de captar/entender como o tema da “abelha do coração”, símbolo conectado à Bhakti Marga, ao Amor Divino e ao Teísmo [*]; no caso de Hafiz, entretanto, o estudo implica compreender o significado das imagens/figuras simbólicas próprias do Sufismo como o “vinho” (a influência derramada do depósito espiritual), a “taverna” (tariqa/confraria sufi), “Sáki” (a escanção/sommelier, “a que serve a bebida na taverna”, a qual é, por isto, também “a Amiga”), a “Bem-Amada” (O Feminino metafísico; Hafiz situa a “Bem-Amada” num nível superior ao do domínio exoterista do Islam, a uma realidade ou meta metafísica), o “rouxinol”, a “rosa” e demais flores (diversas aptidões/vocações bem como diversos resultados espirituais), e assim por diante.

 

Deve ser salientado ainda a conexão de Hafiz com os derviches - como os Qalandares - os quais, como os sadhus e kapalikas hindús e monges budistas eram errantes/mendicantes[*].

 

Sem uma compreensão das figuras/imagens simbólicas do Sufismo uma leitura de Hafiz pode se restringir ao nível literário. Alguma compreensão sobre o contexto no qual Hafiz estava inserido pode ser útil - sobre o Corão, os derviches, alguma informação sobre a Pérsia - o rio Roknabad, as cidades de Mosela e Shiraz, as cortes da nobreza islâmica e alguns de seus reis -, as madrasas, as tariqas, etc, ressalvado, entretanto, que tal conhecimento se trata de informações acessórias; a chave é a compreensão do simbolismo.

 

[nota (*) uma amiga indiana  - muita sorte a minha  em encontrar uma que valoriza o Sanatana Dharma (pois já cheguei a conhecer quem não valorizasse - e, claro, isto é pessoal, é dos motivos e experiências de cada um, de seu karma pessoal/samskara/vasana/klesha - e, a meu ver, o que não é espontâneo não pode ser forçado de fora - porém eu  e minha amiga já somos como "irmãos") - certa vez me dizia que, nas tradições espirituais teístas, “quem não tem 'abelhinha' já está complicado com Yama”. Quem não tem “abelhinha”, entre algumas circunstâncias que justifiquem tal carência, ou cometeu/vem cometendo faltas éticas graves/gravíssimas, ou preferiu/prefere viver baseando suas decisões na plataforma de um coração frio/pétreo ou então já é maligno - pois quem vai para Yama tem fracassado na sua jornada terrestre e/ou transgredido de modo significativo-aflitivo o Sanatadharma/Lei Eterna - ou ainda o Buddhadharma (no âmbito budista); Yama apresenta diante do morto um espelho cujo reflexo mostra todas as obras perpetradas por aquele em vida; a pessoa é acareada com suas próprias obras através do espelho. Yama é o Senhor da Justiça e procura algum meio, alguma boa obra que possa justificar, livrar, reduzir ou aliviar a continuidade do estado daquela pessoa; todavia, pesadas as obras na balança daquele karma individual, dois destinos além-morte recorrentes, após o julgamento com Yama, são o Pretalôka – mundo dos fantasmas famintos - e o Narakalôka - mundos infernais...]

 

[nota (**) - dos próprios gazéis se verifica a conexão estreita de Hafiz com os derviches, às vezes dando a impressão de que ele mesmo - que ganhou a subsistência atuando como professor corânico,  boa parte da vida - foi também um deles (Hafiz teve esposa e filho, portanto, foi um pai de família)-; com efeito, se em alguns gazéis temos aquilo que, separado da sua compreensão simbólica, parece remeter somente a algum romantismo e/ou à delícia do vinho e das festas em si mesmos, outra parte dos gazéis de Hafiz traça, caracteriza  o itinerário espiritual do derviche. No que concerne aos Qalandares, a palavra “qalandar” pode significar mais de um seguimento espiritual ou comunidade da Ásia Central (Pakistão, Índia, Afeganistão, Iran, etc.) que não aquela referente à ordem de derviches mencionada de modo honroso nos gazéis. Vale informar que, em contraposição à opulência material das realezas islâmicas, os sufis escolheram o Despojamento/Pobreza (maiormente interior, mas, no caso dos derviches, tanto interior quanto exterior) como Virtude e Amiga Verdadeira, porta de acesso para interação efetiva com as essências espirituais viabilizadas através da tradição islâmica...]

 

 

Shams Ud Din Mohammed, nascido em Shiraz, Pérsia (atual Iran) cerca de 1320 EC, morto em 1389 EC, cognominado “Hafiz” (“aquele que sabe o Corão de cor” - e todo aquele que sabe o Corão de cor é um “hafiz”) - bem como “Khwaja” (mestre) - Hafiz foi discípulo de Attar de Shiraz (não confundir com o sufi, também persa, Farid Ud Din Attar, anterior de dois séculos a Hafiz) -, e sucedeu seu mestre na tariqa a que pertenciam. Como Rumi, também teve sua musa inspiradora, a saber: a bela e virtuosa Shakh-e Nabat. Contraiu matrimônio e teve um único filho. Efetuou, pelos seus 20 anos, um retiro espiritual de 40 dias, findo o qual encontrou seu mestre Attar de Shiraz. Quarenta anos depois, realizou outro retiro de 40 dias, findo o qual foi visitar Attar de Shiraz. no decorrer daquela visita ao mestre, ficou registrado que Attar lhe ofereceu uma taça de vinho,  ao provar a mesma Hafiz alcançou a realização interior/espiritual à idade de 60 anos, sendo dessa fase boa parte dos gazéis..

 

                                     ______________________

 

 

O sorriso”.

 

Uma dessas noites um sábio me falou:

-É preciso conhecer o segredo daquele que nos vende o vinho...”

 

E ainda:

-Não leves nada a sério. O mundo carrega de enormes fardos aqueles que dobram a cerviz”.

 

Depois estendeu-me uma taça 

onde o esplendor do céu refulgia tão vivamente que Zuhra [planeta Vênus] se pôs a dançar:

-Filho segue meu conselho: não te inquietes com as coisas deste mundo.

Guarda as minhas palavras: elas são mais raras do que as pérolas.”.

 

Aceita a vida como aceitas esta taça:

de sorriso nos lábios, ainda que o coração esteja a sangrar!

Não gemas como um alaúde; esconde tuas chagas...”

 

Até o dia em que passares por trás do veú, nada compreenderás.

Não podem ouvidos humanos ouvir a palavra do Anjo.”

 

Na casa do Amor, não te envaideças das tuas perguntas nem da resposta...”.

 

 

A cortesã”.

 

O castelo da nossa esperança assenta em bases frágeis.

 

Uma lufada de vento abate, em uma hora, a casa da vida.

 

Dar-te-ei um conselho.

Guarda-o na memória e que ele te oriente as ações.

Recebi-o outrora de um velho guia no caminho da vida:

 

-Não esperes nada do que te prometeu o mundo falaz.

A terra é uma cortesã que teve milhares de amantes”...

 

Contenta-te do teu quinhão

e apaguem-se as rugas de tua fronte inquieta;

a porta do eleitos não está aberta nem para mim nem para ti.

 

O sorriso da Rosa nada promete, nem sequer fidelidade.

Chora, Rouxinol, esse lamentável destino.

 

Por que então, ó maus rimadores, tendes ciúmes de Hafiz

se Deus lhe permitiu abrir a fonte das palavras suaves

e capturar todos os corações?

 

 

Para quê?

 

Sem o sol do teu rosto

o dia para mim não tem claridade

e a vida é uma noite sem fim.

 

À hora do adeus,

quando partiste para longe de mim

meus olhos repentinamente se esvaziaram de luz

e fiquei cego de tanto chorar.

 

Tua imagem desapareceu de meu olhar

no instante em que gritei

-Ai de mim! Este mundo agora é um deserto!”

 

Só a tua presença afugentava de minha fronte o mau destino

Agora que te achas longe,

já o sinto rondar em torno de mim

 

Aproxima-se o momento em que o Velador dirá:

-Este homem arruinado,

este homem esquecido de todos

vai deixar o mundo...”

 

Que bom seria que viesses agora, ó Bem Amada,

agora que mal resta uma centelha de vida

no meu pobre corpo.

 

Se meus olhos já não têm lágrimas, dize-lhes:

-Vertei agora o sangue do vosso coração”

 

A paciência seria o meu remédio na separação

mas já não tenho mais forças para sofrer...

 

Ó Hafiz, a miséria e as lágrimas te afogaram o sorriso.

Sob o manto da tristeza não cuides mais em festas,

na embriaguez e nas canções!

 

 

O espinho e a rosa.”

 

O Zéfiro [vento da primavera] embriaga-nos com o seu hálito.

É festa da Rosa!

 

Onde está o doce rouxinol?

Pede-lhe que nos cante uma canção!

 

A tua beleza é um jardim de flores

e Hafiz, de cantos tão doces, é o teu rouxinol..”

 

Coração triste, não te queixes da separação

neste mundo existem, lado a lado, o prazer e a dor

como o espinho e a rosa!

 

Eu que outrora fui um homem atilado e sutil

hoje não passo de um pobre

cuja razão vacila...

 

Em meu desespero, rouxinol do amor,

arranco as penas e quebro as asas

para lançá-las ao vento

mas não posso libertar-me desta paixão indomável.

 

Brisas cheirosas, ide para minha Amada

brincai nas tranças de seus cabelos

trazei-me de volta o perfume dela...

 

[nota: eis aqui de volta o meu amálgama – já publicado no post Bhakti Marga - Via do Amor. Não contei, mas há trechos de três ou quatro gazéis aqui. Após terminar a leitura do livro, comecei a tomar notas e, parando para tomar um café numa lanchonete, esses trechos dos gazéis vieram assim à minha memória... preservei a anotação.]

 

 

O poeta pobre.”.

 

A inconstância reina soberana.

São raras, hoje, as provas de amizade verdadeira.

 

Os homens sérios vêem-se reduzidos

a estender aos indignos a mão leal.

 

Na imensa dor do mundo

o homem de bem não conhece

um instante de repouso ao seu sofrimento.

 

Que o poeta faça um canto claro como o vinho...

um canto de menino...

que derrame no coração uma onda de alegria!

 

O avarento e o guloso não lhe atirarão

sequer uma espiga sem grãos

a ele que pode cantar as melodias dos anjos!

 

A Sabedoria, ontem, disse-me baixinho:

-Vai! Embora fraco, tem paciência.”

 

Sim, seja a paciência a tua única arma...

doente ou triste, tem paciência!”

 

Ó Hafiz, guarda na alma este conselho.

E se, de fatigado, cambaleias,

endireita-te, ergue a fronte e caminha!

 

[nota: aos derviches mendicantes se refere Hafiz. Abriram mão de todas as coisas por amor a uma única coisa. Imolaram as próprias possibilidades temporais, se expondo ao tempo, à necessidade e à doença em prol da possibilidade com o Um... Não sem conhecimento de causa, num dos gazéis – cujo teor poderia ser interpretado como um excesso de lirismo - Hafiz, dissertando sobre a fidelidade, escreveu:

 

Jamais a lembrança de tuas faces floridas

me abandone o espírito perturbado

pelas crueldades da vida

e pelo implacável destino...              

 

A vida material dos derviches, com efeito não se tratou de um vida fácil já que boa parte deles viviam expostos... ]

 

 

 

O mendigo”.

 

Sou o amante de meu Amor...

que me importa seja ela fiel ou pérfida?

 

Tenho sede de sofrimento...

que me importa, a mim, nossa união ou desunião?

 

Se nos teus lábios não encontro a vida...

que me resta fazer desta vida sem ti?

 

Se o amor me faz morrer...

que medo poderei ter da espada do sultão?

 

Nu e pobre...

sempre na miséria...

que valem para mim os tesouros dos reis?

 

Os olhos da Bem Amada são a Meca

dos meus pensamentos e do meu desejo...

meu coração não conhece outro lugar de peregrinação!

 

Se te quero só a ti neste mundo...

de quê me serve o Paraíso e suas Hurís eternas [*]?

 

Aquele que se perdeu no caminho do amor, ó Hafiz,

desdenha a amargura...

despreza a aflição...

não procura mais remédio para as suas mágoas...

 

 

[nota: Al Corão - Surata “At Tur” (nº 52) e Surata Al Waqui´a (nº56): as Hurís são formas celestiais femininas, virgens eternas, destinadas - com outros bens espirituais - a serem recompensa a cada muçulmano fiel que alcançar a salvação; colocações como esta custaram a Hafiz indisposição e perseguições com os Ulemás/Doutores da Lei Corânica... (pessoalmente, as descrições no Corão  do Paraíso muçulmano me surpreenderam e, quanto à compreensão destas passagens do Corão com tais descrições, me alinho com a posicão - muçulmana -  que compreende tais descrições como comparativos do que corresponde a bem-aventuranças e fruições) ]

 

 

Qalândares.”.

 

Ouvi, certa manhã,

aquela voz que vinha da taverna

e docemente me dizia:

 

-Volta Hafiz; jà esperaste muito a essa porta.”.

 

Como Djemschid [antigo rei persa] bebe uma taça de vinho;

dela pode sair um raio

que te fará contemplar o reino espiritual”...

 

Nos umbrais do albergue

onde se vendem esse maravilhoso filtro

dormem qalândares bêbados

que preparam e distribuem coroas reais.

 

Descansam a cabeça num tijolo

mas os pés repousam sobre o Setestrelo [as Plêiades]

Olhai para eles:

compreenderás a vaidade do poder e da glória.

 

Reclinarei a cabeça na poeira da taverna:

são humildes as suas paredes

mas o teto alcança as estrelas.

 

Viandante!

Sê compassivo para com o mendigo agachado à porta

se desejas compreender os mistérios divinos.

 

Se receberes a coroa do sultão do Reino dos Pobres

teus domínios se estenderão, pelo menos, da Lua ao signo de Peixes.

 

Mas não te ponhas a caminho

sem ter a Prudência por companheira:

a estrada é escura

e grande o perigo de te desgarrares.

 

Ó Hafiz! Presa da cobiça, envergonha-te de teus atos.

Que representam eles para mereceres, como pedes,

a recompensa de dois mundos?

 

Tu não sabes como se bate à porta da miséria.

Não deixes, pois, escapar de tuas mãos os coxins da volúpia...

 

[nota: No Ocidente, monges cristãos mendicantes ou peregrinos existiram, porém, hodiernamente, ou extinguiram-se ou recolheram-se aos mosteiros. No Brasil não temos informação acerca do que poderia ser a vida de religiosos mendicantes e as grandes cidades sempre possuem moradores de rua; acontece que, dentre os moradores de rua, alguns estãos nas ruas por falta de moradia e emprego e, casos há, também, por falta de albergues (públicos ou de instituições de caridade) ou ainda por falta de vagas nos albergues existentes; outros passaram por situações pessoais traumáticas/grandes decepções ou quedas e desistiram da normalidade da vida; outros perderam a mente (se tornaram andarilhos); outros tombaram por alcoolismo e/ou consumo de drogas; outros ainda são filhos de moradores de ruas (nasceram nas ruas), outros por levar uma vida em desregramento, acabaram anulando vínculos e se viram perdidos. O motivo dos religiosos mendicantes nas diversas tradições espirituais é diferente: Cristo, o Amor Divino, Shiva, Krishna, Shakti, a busca de Brahman ou da Realidade Última, a busca do Buddhato (estado de Buddha). O caso do Buddha Shakyamuni é notável: era príncipe herdeiro, tinha tudo e, quando herdasse o reinado, teria poder de ordenar vida e morte, mandar soltar e prender, decretar e pelejar guerras; em sua vida como príncipe Sidharta, além do conforto/opulência material, tinha uma vida de paz, nada lhe faltando; e a tudo deixou por uma causa nobre (e se o Budismo é uma tradição espiritual metafísica, não se deve negligenciar que em tal tradição duas de suas posições fundamentais são Karuna/Compaixão e Dana/Dar-Caridade). São Paulo, que fora um judeu culto e de boa família, na sua missão e peregrinações, não apenas viveu sem conforto e em constantes apertos, mas muitas vezes passou fome, frio e tribulações (espancamentos, prisões, açoites, apedrejamentos, tentativa de linchamento). A ordem criada por São Francisco de Assis teve entre seus filhos, homens e mulheres oriundos de famílias européias respeitáveis como Santo Antonio, São Gonçalo, São Boaventura e Santa Clara. Também os derviches renunciaram a tudo, foram viver expostos, sem olhar para trás, por uma causa nobre: o Amor Divino e o Conhecimento Divino. Com relação à finalização deste gazél, o certo é que quem não tem mais amarras temporais vai mais longe... pois em relação à “porta da miséria” (i.e.  a Porta da Pobreza/Despojamento) os “coxins da volúpia” remetem à procedimentos numa hierarquia espiritual imediatamente e sutilmente recuada e inferior... ]

 

Se as rosas se vão”

 

Ó Saki, traze-nos a alegria da mocidade!

Enche-nos uma taça e mais uma taça

de vinho rubro.

 

Traze o remédio ao mal de amor;

traze vinho, bálsamo para o velho e o mancebo

 

Não te inquietes com a fuga do tempo.

Sem um gemido, deixa rodar a roda do destino.

Toca sossegado o teu alaúde para ti somente.

 

A sabedoria fatiga-nos:

atira-lhe ao pescoço o laço da embriaguez.

 

À rosa que morre,

dize-lhe um alegre adeus...

e bebo do vinho rubro...

rubro como as rosas...

 

Se o arrulho da rôla emudece, que importa!

Escuta a música suave

que sobe da ânfora de vinho

 

O Sol é quente como o vinho

e a Lua é fresca como uma taça.

Derrama o Sol na Lua...

 

Só em sonho se pode ver o semblante do amor:

verte-me o remédio que me faz dormir...

 

[nota: “Antes do amanhecer o vinho foi derramado. O vinho foi um empréstimo dos olhos de Sáki, a doadora do vinho...”“Ó Sáki, consola-nos tu que trazes o esquecimento...”. O vinho traz saúde (resveratrol) e alegria; o alcoolismo, porém, sendo um excesso e um abuso é aflitivo, pode ter consequências ruinosas (socialmente, na convivência pessoal e familiar, fisica e psiquicamente além de acidentes trágicos/fatais) e nos furta da relação prazerosa  constituída pelo uso moderado do vinho... Os textos de Hafiz poderiam confundir, irritar ou mesmo desorientar alguns que não entendem o que o “vinho” e a “embriaguez” significam no contexto sufi – e que espero já ter demonstrado aqui e no post sobre Budismo (Zen) e Sufismo (para mais do que isto recomendaria adentrar o Sufismo propriamente)... Para finalizar, a "embriaguez" tanto pode se dar em momentos de atividade espiritual e recolhimento/solidão pessoais como quanto se faz presente nos momentos de ajuntamento dos sufis (o que os hindús denominam "sat-sanga", reunião/ajuntamento de guru e discípulos); daí Hafiz e Omar Khayyam  valorizarem a "taverna" (tariqa/confraria sufi) onde os sufis se reúnem para suas práticas espirituais e onde a Baraka (literalmente "benção") - cada verdadeiro mestre sufi, na silsilah (cadeia ininterrupta de transmissão espiritual de mestre a discípulo das diversas ordens/famíllias sufís e que remontam ao Profeta Mohammed - a paz seja sobre ele) recebe a Baraka de seu predecessor; a presença da Baraka  confirma a validade de uma transmissão e a regularidade e legitimidade, na silsilah, de uma ordem  sufi; e a Baraka transborda através do mestre sufi para os discípulos, formando o varão/virago interior em cada um deles. O "vinho"  é o influxo divino e a Baraka propicia que Sáki - "a doadora do vinho" - o distribua entre os sufis. Seria Sáki também a própria Baraka? Diria que a Baraka forma a interação/relação espiritual necessária à passagem de Sáki para que o "vinho" possa ser dispensado por Ela aos sufis... Como disse, veladamente, Hafiz: "O dragão que guarda os tesouros logra escapar a todos os homens..."

 

 Observa, ó sufi, no espelho da taça

o esplendor do vinho rubro.

 

Entre os que bebem é que descobrirás, talvez,

o mistério oculto sobre o véu.

 

O dragão que guarda os tesouros

logra escapar a todos os homens.

 

Larga as tuas armadilhas:

com elas só poderias pegar o vento

nada mais que o vento...

 

(...)

Que o vinho te reconforte o coração

pois este mundo é um deserto e, ao fim de tudo,

o teu pó se misturará com a argila do oleiro...

 

Não escrevais o meu nome acompanhado de uma injúria

Não me chameis de bêbado.

Quem sabe o que o destino gravou em minha fronte?

 

Viandante, não te desvies da sepultura de Hafiz.

Embora sujo de pecados, talvez ele seja o benvindo

entre todos nos Céus...

 

(…)

 

Porque condenar aqueles que, como eu, gostam do vinho?

Beber não é delito maior do que amar.

 

Antes um bebedor cujo coração sem astúcia desconhece a mentira

do que um austero mentiroso que não bebe...

 

(…)

 

Triste daquele que não conhecesse a embriaguez

nesses lugares onde se bebe à lembrança da beleza dEla...

 

Não esperes encontrar nenhum ouro no limiar da taverna:

aqui toda fortuna se dissipa...

 

(…)

 

Bebe vinho ao som da harpa

e afugenta para longe a tristeza.

 

Se acaso te dizem: “-Não bebas!”

responde: “-Deus é misericordioso!”

 

Ó Hafiz, por que sofrer com a separação?

A união virá depois

como às trevas sucede a luz...

 

(…)

 

Que canção pode cantar o Músico

que fez o bêbado e o homem em jejum

dançarem juntos?

 

Que ópio derramaram em nosso vinho?

Já não achamos nem o turbante na cabeça!

 

A Prudência é verdadeira riqueza mas...

que vale a Prudência diante do Amor?!

 

A língua do Amor não é a língua das palavras...

 

Não reveleis ao abstêmio o segredo da embriaguez...

(...)

 

Hoje estou velho

e o amor que me inspiraste

arrastar-me-á ao túmulo

pois nao cesso de encher de vinho 

a grande taça [do coração]

 

Meu amor por Vós 

tem razão contra mim mesmo

e o tempo desfolha 

a minha bela rosa... 

(Omar Khayyam - versão brasileira de Octávio Tarquínio de Souza) ]

 

 

A Rosa dentro da noite.”

 

A tarde morria quando eu desci ao jardim

onde me atraía o perfume das rosas

a procurar - desolado rouxinol -

um bálsamo para a minha febre.

 

Brilhava uma rosa na sombra

uma rosa vermelha,

como lâmpada velada.

 

Contemplei o seu rosto.

Quanta altivez nessa beleza adolescente!

 

À sua vista, fugira a tranquilidade

ao coração do melodioso rouxinol.

 

O olhar do narciso

encheu-se de lágrimas de piedade

e a tulipa, queixosa,

mostrou o sangue das feridas

que lhe fez o Amor.

 

O próprio lírio deixou sair

suas finas agulhas de ouro

e a frágil anêmona

se abriu com boca gemente...

 

Toma da taça e bebe:

o escanção te oferece o vinho puro!

 

O prazer da mocidade, as canções entre as rosas

- eis ó Hafiz o teu quinhão na vida.

 

Outra missão não tem o mensageiro

senão transmitir a mensagem...

 

 

Vaidade.”

 

O resultado de todo o nosso labor é apenas vaidade.

Dá-me vinho:

todos os divertimentos deste mundo são apenas vaidade!

 

O desejo de ter junto a mim Bem Amada enche-me a alma.

Mas o coração – quem sabe? -

o coração e alma são apenas vaidade...

 

O que nos enche o coração sem torná-lo pesado

é alegria verdadeira

e se é preciso tanto esforço e angústia para atingí-la

então – quem sabe? -

os jardins do Paraíso são apenas vaidade...

 

Vive em paz durante os poucos dias

em que te é permitido repousar no caravançarai (*) da vida:

o próprio tempo é apenas vaidade.

 

Ó Sáki, estamos a espera, na praia

ante o oceano da morte;

segura a taça

pois de suas bordas à nossa boca

tudo é apenas vaidade...

 

Nem por um instante voltes o pensamento

para o dia em que rosa fenecerá...

sê alegre como a rosa

pois a glória deste mundo efêmero é apenas vaidade...

 

Ó devoto, não te suponhas livre dos pecados do orgulho:

a diferença entre a mesquita e o templo do infiel

é apenas vaidade...

 

(*) caravansarai: onde as caravanas estacionam para descansar

__________________________

 

 

Me detenho por aqui...[*]

 

[nota: ou quase... vão aqui  mais alguns trechos tirados dos gazéis de Hafiz ...

 

Onde quer que viva o Amor

sua glória faz tudo resplandecer.

 

Em seu caminho

nunca se está longe ou perto do fim...

 

(...)

 

A terra inteira repudiasse o Amor 

e ainda assim eu ouviria os seus decretos

pois ele é o meu Senhor...

 

O Amor é um mendigo

que em seus trapos esconde um tesouro

 

E aquele que pede esmolas

pode ganhar uma coroa...".

 

 

(…)

 

Não tentes reter o vento

ainda que ele sopre à feição do teu desejo

 

Embora a sorte pareça agraciar-te

não te desvies do teu caminho.

 

Não profiras uma única palavra

interrogando sobre o “como” e o “porquê”.

 

O escravo fiel cumpre cegamente

as ordens do seu senhor.

 

Quem te disse que Hafiz ainda pensava em ti?

Ó Bem Amada, é mentira!”

 

(...)

 

Que a visão do teu amor

brilhante como uma estrela

cintile cada vez mais no meu pensamento...

 

Ó Lua de meu Amor

mais vale contemplar-te de coração tranquilo

que trazer a coroa do rei

durante uma longa vida cheia de honrarias...

 

(...)

 

Na rua em que mora o Amor

o esplendor dos reis é apenas vaidade...            ]

 

Que o encerramento e a entrada deste ano sejam bons para todos! Ricardo Kaliputra dezembro/2014.