Blog

1. Sesshin de verão. 2. Bodhidharma (revisado).

29/07/2014 08:56

1. SESSHIN DE VERÃO.

 

Num verão da época do Buddha Shakyamuni, um brahmane rico convidara a Sangha [comunidade] para um retiro. O grande retiro de verão começou. À noite, porém, o brahmane teve um sonho: uma enorme serpente branca enlaçara-lhe o castelo. Sonhar com uma serpente branca significa bom augúrio. Aquele brahmane, entretanto, não o sabia e foi consultar-se com um vidente, homem mau, que tinha inveja do Buddha Shakyamuni.

 

O que devo fazer?” – perguntou o brahmane ao vidente – “Aconselhai-me.”

 

Deveis encerrar-vos em vossa casa e não sair de lá durante todo o verão” – disse-lhe o vidente. “Encerrai-vos na companhia de belas criadas.”

 

O brahmane, assim orientado, encontrou-se impossibilitado de acolher a Sangha. Em continuação, a reserva de arroz daquele brahmane havia sido roubada. Encontrando-se a Sangha naquela região para finalidade do retiro - não obstante o cancelamento do convite -, todo o mundo, inclusive o Buddha Shakyamuni, só tinha sopa de trigo para se alimentar.

 

Inteirando-se o Buddha acerca do motivo da desistência e do recuo do brahmane, o mesmo ficou muito zangado:

 

Devo excomungar-vos.”.

 

O discípulo Maudgalyayana tomou a palavra:

Senhor, com meus siddhis [faculdades supranormais] posso obter-nos boa comida do Paraíso Sukhavati.”.

 

Não Maudgalyayana, não é necessário. Se no futuro, depois que eu morrer, durante um retiro de verão, não houver entre os praticantes quem possua siddhis desenvolvidos, que farão os participantes? Não há necessidade de obter comida através de siddhis.

 

Disse ao Buddha o discípulo Ananda:

Senhor, é difícil para o Abençoado e para nós tomarmos apenas sopa de trigo durante todos os dias do retiro. Toda a gente está sofrendo. No país vizinho mora minha família que é muito rica. Pedir-lhes-ei que nos ajudem...”.

 

Ananda, se no futuro, depois que eu morrer, durante um retiro de verão, os participantes não puderem contar com a ajuda de nenhum homem rico... que farão?”.

 

Falou, em seguida, Shariputra:

 

Senhor, conheço ricos upasakas [budistas leigos] aqui nesta região. Pedir-lhes-ei que nos ajudem.”.

 

Volveu o Buddha:

Não vale a pena, Shariputra. Se no futuro, depois que eu morrer, durante um retiro de verão, os participantes não puderem contar com a ajuda de budistas ricos... que haverão de fazer?”

 

Assim o Buddha prosseguiu aquele retiro sem nenhuma assistência. Ninguém comeu outra coisa além de sopa de trigo durante o retiro daquele verão...

 

[Texto extraído - e adaptado por mim  - do livro “A tigela e o bastão - 120 contos zen” do mestre zen japonês Taizen Deishimaru. Segundo um amigo, eu traduzí a "Sesshin de verão" para "o idioma do meu livro" - e é bem assim; não há, porém, alteração da sua essência; apenas omiti a conclusão do mestre Deishimaru - prefiro a conclusão subentendida, a cargo do leitor. No mais, no Zen Budismo o termo “sesshin” não apenas refere-se a “retiro”, mas a um retiro cujo finalidade trata-se de treinamento/prática intensiva, objetivando aprofundamento...].

 

 

2. BODHIDHARMA.

 

[nota: localizei entre as minhas anotações os "Ensayos sobre Budismo Zen - serie 1" de D. T. Suzuki -  obra importante para o estudo sobre o Ch´an/Zen. Documento em mãos, achei por bem complementar esta singela e pequena nota sobre Bodhidharma. Kaliputra 23/08/2014.]

 

A documentação biográfica acerca de Bodhidharma [japonês: Bodai Daruma ou apenas Daruma] não é isenta de forte apelo mítico, sendo seu período de vida na China caracterizado pelo viver de um mestre incomum, o qual, por muitos anos, viveu como um yogin retirado da sociedade – por exemplo: os anos que passou em meditação numa caverna, no pico Shaoshih do Monte Sung, em cuja redondeza está localizado o Templo de Shaolin, aprofundando sua prática, por conduzir a meditação mantendo-se sentado diante da parede da mesma (se fala desse período como algo em torno de 9 anos); em continuação boa parte dos relatos a seu respeito são baseados na Tradição e, ainda assim, via transmissão oral, compilados mais tarde na Transmissão da Lâmpada de Tao-yuan (1002 EC) e Vidas Remotas de Monges Exemplares de Tao-hsuan (645 EC). Assim como Vimalamitra e (muitíssimo mais ainda) Padma Sambhava [*], há muitos fatos considerados de difícil determinação histórica ou míticos (ou ainda lendários, como a questão da introdução do chá na China) atribuídos a Bodhidharma, o que dificulta o trabalho de reconstituição dos eruditos, havendo quem chegue a afirmar que o Buddha não existiu [**], tratando-se apenas de figura lendária com forte apelo mítico/simbólico entre uma parte dos budistas chineses. Todavia, Bodhidharma é o primeiro patriarca do Budismo Ch´an, vertente budista que a partir do sexto patriarca Hui Neng [japonês: Eno], passando por Lin Chi [japonês: Rinzai] e Chao Chou [japonês: Joshu] e Ts'ao-ch'an (japonês: Sozan) culminaria no Zen Budismo, como ainda podemos ver nas escolas japonesas Rinzai e Soto. 

 

[notas:

(*) Vimalamitra foi um budista indiano autor de tratados vajrayana que a tradição tibetana agrupou na família "Mahayoga", citado e comentado, por exemplo, por Longchenpa (linhagem Nyingma pa). Sobre Vimalamitra, do que eu conheço, há os trabalhos "Context and philosophy in the Mahayoga system" de Nathaniel De Witt Garson (tese de doutorado) bem como comentários e explanações no livro "The practice of the Dzogchen" de Longchenpa, traduzido e comentado por Tulku Thondup. Quanto ao Guru Rinpoche (Padma Sambhava) entre as obras disponíveis há o conhecido trabalho do prof. Herbert V. Guenther "The teachings of Padmasambhava".

(**) Se o Buddha não existiu, como a tigela e o manto - transmissão da linhagem da escola Ch´an – chegaram a Hui K´o (segundo patriarca do Ch'an) e, passando pelos três patriarcas subsequentes, até o Buddha Hui Neng? Seja como for, o inconcebível aqui é como uma mentira poderia ter tanta força espiritual, ao ponto de apresentar resultados notáveis, explêndidos, consubstanciados nos muitos buddhas da escola Ch´an, como – entre muitos (e fazendo injustiça a todos os não-mencionados) - Seng Ts´an, Huang Po, Wen Yen de Yao Shan, Hui Neng e Lin Chi ? ... ]

 

 

Circula pela Web, em sítios budistas, um bom resumo sobre a vida de Bodhidharma ["O ensinamento zen de Bodhidharma"], do qual me servirei um pouco para concluir este post (a minha fonte mesma são os trabalhos de D.T. Suzuki- “Introdução ao Zen-budismo”,  “Mística Cristã e Budista”  e "Ensayos sobre Budismo Zen- serie 1").

 

O Buddha nasceu em torno do ano 440 em Kanchi, capital do reino sulista indiano de Pallawa [atualmente a região corresponde ao Sri Lanka]. Brahmane de nascimento e terceiro filho do Rei Simhavarman, quando jovem converteu-se ao Buddhadharma, e mais tarde recebeu instruções sobre o Dharma pelo guiamento de Prajnatara, de Magadha, o qual foi convidado a estar em Kanchi por seu pai, o rei. Magadha era um antigo e tradicional centro de Budismo [é a região do norte da Índia onde o Buddha Shakyamuni peregrinou e anunciou o Buddhadharma]. Também a Prajnatara é creditado a recomendação a Bodhidharma para deslocar-se à China. Uma vez que a tradicional rota terrestre estava bloqueada pelos hunos, e uma vez que Pallawa tinha laços comerciais por todo Sudeste Asiático, Bodhidharma partiu de navio de um porto nas proximidades, Mahaballipuram. Depois de contornar a costa da Índia e a Península da Malásia por três anos, ele finalmente chegou ao sul da China ao redor do ano 475.

 

Bodhidharma foi convidado para ir à capital em Chienkang para uma audiência com o Imperador Wu da dinastia Liang, sucessor de Liu Sung. Segundo a Tradição, durante esse encontro o imperador Wu, adepto do Mahayana, adentrou a conversação com Bodhidharma abordando o assunto sobre as obras de mérito, tendo a conversação chegado nos termos que seguem:

 

Wu: Tenho construído templos, mandado copiar e traduzir escrituras sagradas, provido amparo material a monges e monjas... qual pode ser o meu mérito?

 

Bodhidharma: Nenhum mérito, majestade.

 

Wu: Por quê?

 

Bodhidharma: tais obras se situam num nível que resultará em que seu autor torne a renascer na terra ou nos céus. Conlevam em si pegadas de mundanidade; são como as sombras seguindo os objetos. Ainda que pareçam realmente existentes, não são mais que meras não-entidades. Uma verdadeira ação meritória, está plena de pura sabedoria e é perfeita e misteriosa, e sua natureza real está além da captação da inteligencia humana. Algo como isto não pode ser buscado através de nenhum resultado mundano."

[nota: não devemos nos enganar: as obras de mérito o são de fato; estão entre os poucos resultados que poderão integrar e acompanhar uma jornada alem-túmulo (o que, por sinal, está implícito na explanação acima). A questão com o Imperador Wu não eram suas obras em prol do Dharma, mas sim o fato informado por Bodhidharma acerca do assunto central, nuclear da verdadeira Liberação, e que estava sendo relevado ou ignorado pelo imperador. Em continuação, mesmo em relação às obras de mérito, neste diálogo depreende-se que o Imperador Wu ainda estava identificado com suas obras, interressado em pesquisar resultados que não o das obras em si mesmas (no caso, em prol do Dharma). Quando nos identificamos com as obras e nos apegamos aos resultados, desviamos do Essencial, nos afastamos do fio da meada. Isto não quer dizer que, agindo, seremos negligentes ou não faremos o melhor possível. Quando fazemos obras nobres, dignas, honradas sem a elas nos identificarmos nem nos apegarmos aos seus resultados, Dana/Caridade, por exemplo, se transformam em mais uma força espiritual concorrendo para a nossa Liberação; todavia a Libertação/Iluminação é concernente à Sabedoria/Conhecimento (Prajna/Jnana)...]

Wu: qual o princípio último e mais sagrado do Dharma?

 

Bodhidharma: um vasto vazio majestade; sem quaisquer distinções...

 

Wu: quem é, então, que está diante de mim neste momento?

 

Bodhidharma: não sei, majestade...

 

O imperador Wu não entendeu e Bodhidharma partiu.

 

Quando Bodhidharma deixou a entrevista com o Imperador Wu, saiu também da cidade de Chienkang, deslocando-se de barco para o Norte da China, através do rio Yangtzu. Conta-se que, num primeiro momento, o Imperador Wu haveria mandado um enviado após o Buddha.

 

D.T. Suzuki em seu livro “Mística: Cristã e Budista” (“Mysticism: christian and buddhist” disponível em www.sacredtexts.com, entre outros) destacou a observação do comentarista Yian Wu (japonês: Yengo - 1063-1135):

 

Bodhidharma veio a este país, pela rota do sul, vendo que havia algo na mentalidade chinesa que correspondia realmente aos ensinamentos mahayana. Estava cheio de esperanças [*], queria conduzir nossos patrícios à doutrina do Espírito-sozinho, a qual não pode ser transmitida por letras ou por meio das palavras orais. O Espírito somente poderia ser imediatamente apreendido ao atingirmos a percepção da Natureza Búdica, isto é, a compreensão do estado de Buddha. Quando é alcançada a Natureza ficamos inteiramente livres de todos os laços e não nos extraviamos devido a complicações linguísticas. Aí, a própria Realidade é revelada em sua nudez, sem qualquer espécie de véu. Nesse estado de espírito Bodhidharma aproximou-se do imperador Wu. Também assim instruíra seus discípulos. Vemos que (o espírito esvaziado) de Bodhidharma não premeditara medidas, não calculara planos. Apenas atuara da maneira mais livre possível, desvencilhando-se daquilo que poderia impedí-lo de ver diretamente a Natureza em sua interia nudez. Não havia ali nem bem nem mal, nem certo nem errado, nem lucro nem perda..."

 

[nota: o Buddha não saiu à toa da Índia para a China, mas com uma missão, a qual, no que concerne às escolas Ch'an, foi honrosa e dignamente cumprida...]

 

Após, quando se instruiu mais a respeito de Bodhidharma e compreendeu o quanto fora superficial/tolo deixando de aproveitar a oportunidade rara de se aprofundar no mistério da Realidade, o Imperador Wu ficou grandemente perturbado. Sabendo da morte de Bodhidharma, alguns anos mais tarde, erigiu em sua memória uma estela e nela escreveu:

 

"Eu o vi,

encontrei-o e interroguei-o

mas não soube reconhecê-lo.

 

Que tristeza.

Tudo passou.

E a história é irrevogável.

 

Enquanto o espírito permaneça na relatividade

sempre ficará nas trevas.

Mas no momento em que se perde na vacuidade

ascende ao trono da Iluminação.".

 

 

Aludindo ainda à preocupação do imperador Wu em enviar alguém após Bodhidharma, um outro comentarista, Hse Tou (japonês: Seccho - 980-1052), redigiu em versos o seguinte:

 

"Tu (o Imperador Wu) podes ordenar a todos os teus súditos

que o procurem

mas ele jamais se mostrará a ti novamente.

 

Fomos deixados sós pelos tempos que virão

Pensando em vão no irrevogável passado...

 

Detém-te, porém! Não pensemos no passado!

A fria brisa refrescante sopra sobre toda a Terra

nunca sabendo o momento em que suspenderá seu trabalho..."

 

Concluindo a leitura, Hse Tou perguntou à audiência:

Irmãos, não deve nosso Patriarca ser descoberto entre nós, neste momento?”

 

Apontando diretamente à verdade interior, minha doutrina é única e não assolada por ensinamentos canônicos. É a transmissão absoluta do verdadeiro sêlo.”. Bodhidharma. [*]

 

[nota: relendo os "Ensayos sobre Budismo Zen- serie 1", de D.T. Suzuki,  a sentença foi resumida nos seguintes termos: 1- Transmissão especial, fora das escrituras; 2- independência de palavras e letras; 3- apontando direitamente à alma humana; 4- visão dentro da natureza-própria e consecução do estado de Buddha.]

Angulimala (Ahimsaka Angulimala)

30/06/2014 07:59

angulimala

 

 

 

ANGULIMALA (Ahimsaka Angulimala).

 

Belo como a lua que se desembaraça das nuvens

é aquele, anteriormente negligente, que se torna atento...

Semelhante a Nanda [primo do Buddha], Angulimala

Ajatasatru e Udayana...

 

Surllekha (“Carta a um amigo”) verso 14 – Nagarjuna.

 

 

 

 

O nobre relato sobre Angulimala encontra-se no capítulo 86 do Majjhima Nikaya, o qual, juntamente com as notas explanatórias, está disponibilizado pelo acessoaoinsight.net e é oriundo da tradução inglesa do Bhikkhu Nanamoli, editada e revisada pelo Bhikkhu Bhoddi e que passo a reproduzir aqui, com alguma observação minha (na apresentação/sinopse) bem como umas poucas notas pessoais.

 

 

APRESENTAÇÃO/SINOPSE:

 

O nome "Angulimala" é um epíteto que significa "colar (mala) de dedos (anguli)". Conta-se que Angulimala era o filho de um brahmane chamado Bhaggava, um capelão do rei Pasenadi de Kosala. O seu nome de nascimento era Ahimsaka, que significa "o inofensivo". Ele estudou em Takkasila, onde ele se tornou o favorito de seu professor brahmane. Entretanto, os seus colegas estudantes, tomados por inveja, disseram ao mestre que Ahimsaka havia cometido adultério com a esposa do professor. O professor, com a intenção de arruiná-lo, ordenou a Ahimsaka que lhe trouxesse mil dedos humanos da mão direita, a título de honorários. [*]

 

[nota: 1 - capelão: brahmane residente na corte do palácio real, como o sábio Vashishta, no Ramayana de Valmiki.

nota 2: não se havendo falar em fé cega onde se estudavam os Vedas e artes tradicionais, é presumível que o professor de Ahimsaka/Angulimala alegou - na intenção de prejudicá-lo - que vil obra não poderia acarretar desvio, demérito nem regressão para ele ou que, na hipótese de regressão, a recompensa - ou reposição - viria por algum caminho... O meu esforço nas notas que pus aqui é tentar extrair as lições significativas que podem estar contidas/imbuídas no relato de Angulimala e verificar como essas lições podem se desdobrar em situações humanas reais, sendo prudente me pautar no relato em si e evitar especulações. Todavia,  do que eu tenho estudado sobre o Hinduísmo, não me surpreenderia se constasse no Angulimala Sutta que os colegas de Angulimala tivessem reforçado a calúnia com o recurso dos ritos - a Brhaspati,  por exemplo, o preceptor dos devas, divindade associada não apenas ao conhecimento sagrado mas à inteligência e à astúcia - o que, de certa forma, ampararia a cegueira de seu professor brahmane...]

 

Assim, autuado por inveja - de seus companheiros de estudos – e, em continuação, prejudicado pela limitação espiritual de seu preceptor brahmane (recebeu a denúncia falsa - e grave - contra Angulimala, sem se preocupar em verificar/comprovar a veracidade da mesma), Angulimala, que, pelo contexto do sutra, depreende-se era apenas um jovem, foi também autuado por vingança - de seu preceptor - e levado a adentrar um caminho vil... [*]

 

[nota: há lições importantes, significativas na história de Angulimala.
 
1 - O mal da inveja - para nós ocidentais, um dos casos de inveja mais notórios é a daquela que se gerou dentro de Caim, irmão de Abel, resultando no assassinato de Abel por Caim (Livro de Gênesis,cap. 4). Dois relatórios notáveis para aumentar a nossa compreensão sobre a história de Abel e Caim são aqueles elaborados por René Guénon em seu "o Reino da  Quantidade e os sinais dos Tempos"  e René Girard em seu "A violência e o Sagrado" (ambas as obras estão disponíveis em nosso idioma, conquanto o livro de Girard lançado pela Editora Paz e Terra nos anos 90, talvez não esteja com fácil localização nas livrarias sendo prudente pesquisar primeiro na Web - procurar na www.estantevirtual.com.br). Outro caso notável de inveja está no Mahabharata (Livro 2, capts. 50, 51 e 52), qual seja: a inveja de Duryodana em relação, particularmente, ao êxito/prosperidade, bem como excelência, de Yudishthira - o mais velho dos irmãos Pandavas e rei de Hastinapura) -, e que teve como resultado a guerra entre Kauravas e Pandavas (e o consequente morticínio)...
 
2- Também o mal da falta de verificação da veracidade de informações divulgadas - no caso de Angulimala, a informação repassada comprometia gravemente a sua integridade e a sua posição (seu professor internalizou o que lhe foi repassado como algo realmente ocorrido e não quis conversar com Ahimsaka/Angulimala); o que antes era apreço da parte de seu preceptor, tornou-se ódio enrustido, dissimulação e desejo de vingança, de ruína e destruição. Em continuação, Angulimala, agindo em inocência, acabou por também se deixar cegar e atuar de modo ingênuo ao receber, como se fidedigna fosse, a ordem incomum de seu preceptor – sem buscar conselho quanto a uma orientação não apenas inusitada ou ainda sui generis, mas frontalmente contrária a qualquer ensinamento ortodoxo, não percebendo a falha/loucura doentia que havia tomado conta de seu preceptor tampouco o seu motivo - o que, entretanto, não chega a ser anormal, tratando-se Ahimsaka/Angulimala de um jovem e estando num ambiente em que, em princípio, deveriam prevalecer a confiança, a integridade, a honestidade, a veracidade e a dignidade da parte de professores e alunos - é necessário, porém, salientar que a Sabedoria, nas tradições espirituais, não está presa a um singelo dualismo "Bem x Mal" (tal forma de dualismo corresponde a um nível inicial ou periférico da espiritualidade, nunca aos níveis profundos ou nucleares). Normalmente, temos a habilidade de perceber o simplismo do dualismo Bem x Mal, mas nem sempre há percepção de um resultado muito pior que este simplismo - pois comprometedor num sentido aflitivo e, inclusive, nocivo - que é toda a posição que se julga a si própria acima e além do bem e mal (sem que isto corresponda, todavia, a um fato ou condição objetivos); entretanto, neste aspecto há a necessidade de reconhecer e encarar as coisas como elas são, não sendo apropriado qualificar como "bem" aquilo que é mal tampouco o seu contrário. 
Também, da perspectiva da Sabedoria, algumas posturas ou reações, sem as verificações dos motivos profundos,  podem conduzir a erros de compreensão, já que a causalidade não pode ser ignorada ou negligenciada; se nossa cognição/discernimento falham, então, andamentos desastrosos se seguem. Sobretudo, no Angulimala Sutta, surge nítida para a compreensão budista a questão do karma (ação) e da avidya (ignorância), bem como da força do karma acumulado e da necessidade de se buscar saída através da Sabedoria Milenar. Para a compreensão budista, o renascimento é decorrente da avidya (ignorância) e do karma (ação) e conforme a qualidade da ação é a qualidade do nascimento; ações com Sabedoria, Ética, Caridade e Justiça geram resultados divinos e uma melhor possibilidade para a pesquisa pelas elevações de ordem interior-espiritual e pela Iluminação; ações com Malícia, Erros de Compreensão em diversos níveis, Perversão/Corrupção, Egoísmo  e Injustiça geram renascimento nos reinos da restrição (animal, fantasmas famintos e infernal). O karma acumulado está inscrito nas samskharas (formações voltivas). De certa forma, não é errôneo dizer que samskharas equivalem a karma.  
 
A respeito de Karma, Renascimento e Causalidade ver o post: Histórias budistas: 1. Sasapandita Jataka – Conversão ao Budismo. 2. Mahaduta – Entendendo a doutrina do Karma, Renascimento e Causalidade (Hetuvada).
.
 
Não enxergando a causa nem a origem nem o motivo, incorremos padecer, como Angulimala, grandemente com os efeitos. Eventualmente, na relação guru/discípulo podem ocorrer situações que chegam a surpreender, diferenciadas da normalidade; nunca, porém, situações maliciosas ou que anulam a possibilidade da realização espiritual autêntica; talvez essa possibilidade de situações diferenciadas/inusitadas tenha levado Ahimsaka a ser iludido pela mentira que prendeu e dominou seu preceptor. Angulimala recebeu como vingança de um ato não praticado uma destruição impiedosa, a qual objetivou a sua ruína não apenas a nível social mas, antes e maiormente, desde dentro. Vale lembrar que ao contexto brahmanico em que se encontrava Ahimsaka/Angulimala correspondia um padrão ético e espiritual equivalente...
 
.
 
3- Um caso como o de Angulimala - não apenas quanto à questão da inveja, mas, maiormente, em relação à questão da sua simplicidade (a qual poderia ser simplicidade/ingenuidade de qualquer um de nós) em acatar, sem buscar conselho, um pedido contrário ao Dharma - não se trata de situações impossíveis de acontecer.
 
.
 
Pois é certo que não é absolutamente inviável encontrar situações como a de Angulimala (adotar comportamentos e atitudes bem como realizar ações que não fazem sentido nenhum ou ainda que têm um sentido abertamente nefasto, na crença de tratar-se de obra "espiritual", "genial", "liberadora" ou mesmo "meritória") no ambiente e contexto de movimentos sectários e pseudorreligiosos.
 
Quem quiser se dar ao trabalho - mas eu não estou fazendo o convite a ninguém - de verificar depoimentos e testemunhos de egressos de seitas e movimentos pseudorreligiosos ou ainda, de familiares (de egressos e não-egressos) deve preparar-se para o deplorável e triste espetáculo do horror show - e, em parte dos casos, os episódios não têm um final que traga alívio ou reintegração; são "variações de Angulimala” que não têm a sorte de encontrar com um Buddha ou um Amigo Espiritual verdadeiro ou ainda algum andamento que faculte a sua recuperação – quando a mesma ainda é possível...
 
.
 
Poderemos encontrar - eu, por exemplo, já encontrei (e a mim isto pareceu incrível) - situações semelhantes ou análogas em ambientes e contextos respeitáveis, como no Protestantismo. "Respeitável?". Sim, pois, ao menos em princípio, num ambiente cristão esperamos encontrar - a nível individual, comunitário e na orientação de suas lideranças - a colocação em prática dos ensinamentos de Cristo (portanto, condutas éticas, honradas e responsáveis - essas posições, se situações de fato, são dignas do nosso respeito - há quem avalie como dignas de respeito somente as pessoas  ilustres; e há, também, como todos bem sabemos, quem respeite apenas o dinheiro; de minha parte, verdadeiramente respeitável é somente aquilo que está estabelecido na veracidade das coisas...).
 
 
Entretanto, encontrar-se-ão, em variações protestantes situações tristes, execráveis e pouquíssimo comentadas (e mesmo acobertadas), as quais são lamentáveis. Há “Angulimalas” ali também - trapaceados, iludidos, desconectados do rumo de suas possibilidades, nas suas almas gravemente feridos, sem entender o como nem o porquê e, ainda, nalguns casos, com a vida e a mente danificadas.
 
Resta saber, do que eu pude ver em alguns meios protestantes (verifiquei, com um amigo, o Protestantismo e o Espiritualismo) - onde Cristo pregou a banalização das pessoas e de seu direito legítimo, bem como banalização da fé cristã em situação de idoneidade? Ou o ódio e a vingança, a fraude/enganação, o roubo da condição (e da identidade) das pessoas e a trapaça como fundamentos de doutrina? Não me recordo de nenhuma passagem bíblica/evangélica em que Cristo tenha pregado que "o mundo é dos espertos (ou dos astuciosos)" ou "dos mais fortes" ou de quem "finge e mente melhor" ou que alguém esteja "autorizado pelos Céus" a proferir sentenças temerariamente - em nome de  Cristo ou de si próprio. O que ocorre no protestantismo - em decorrência de desvios, por parte dos fieis, dos cursos estabelecidos nos seguimentos pentecostais e e do reavivamento) são verdadeiras execuções de fieis que n]ao têm compreensão do que são as cúpulas que conduzem os ministérios protestantes (num ministério presbiteriano, por exemplo, me parece que até as crianças pequenas sabem que "Jesus é somente uma etapa, não a fase amadurecida nem o Conhecimento Profundo"). O que é normal no presbiterianismo e outros (batistas iniciais  - não-pentecostais -, metodistas, etc.) NÃO o é no movimento Pentecostal, no Reavivamento e nas seitas protestantes norte-americanas (Adventistas, Testemunhas de Jeová, etc.) onde a mensagem oficial é confundida com a totalidade dos posições/resultados de uma confissão. A maior parte dos fieis - milhões de pessoas no Brasil - nesses ministérios não sabem que as cúpulas são um regimento vinculado ao Esoterismo ocidental.
 
Assim, o Protestantismo não bloqueia a situação miserável que eu encontrei entre eles - e que molesta a vida das pessoas (o que me leva a concluir que suas lideranças são favoráveis às situações/andamentos que propiciam a ocorrência desses desastres ou sacrifícios e mesmo utilizam-nos para expelir aqueles que desviam dos cursos estabelecidos).
 
Pois tal falha ou fratura é propiciada, ainda, pela incompletude dos relatórios e pelo caráter modernista do Protestantismo - sem ascese e sem a Sabedoria que a ascese necessita para ser bem sucedida; sem contemplação, sem a santidade tradicional, sem vivência unitiva (com efeito, o Protestantismo enquanto possibilidade espiritual é repleto de bugs e amputações no comparativo com o Cristianismo tradicional, se mantendo no Biblicismo dualista e, nalguns ministérios, no Fundamentalismo Sola Scriptura/Somente a Bíblia, limitando, em ambos os casos,  os cultos ao Louvor-Adoração). 
A meu ver, em decorrência do que se passa no Protestantismo - cúpulas com vínculos esoteristas formando um "Regime" (mas que, quanto a isto, no Reavivamento/Movimento Gospel  e no Movimento Pentecostal, tal situação não é comunicada aos fieis) e Arraia-Miúda - isto é: todos os fieis sem vínculo direto com o "Regime" e tampouco sequer sabedores da existência de algum "Regime", os quais acabam se tornando, sem o saberem, não apenas simples contribuintes para campanhas arrecadatórias mas, muitos mais do que isto, em colaboradores, carregadores de despesas e estrado para as cúpulas -  diria que no âmbito evangélico Cristo é apenas uma "isca".
 
Por essas e por outras o meu Cristianismo é o da Tradição Cristã, não o modernista.
 
Então, a situação que apresento aqui está conectada, estreitamente, aos relatórios repassados aos fiéis como fidedignos - e aceitos e/ou compreendidos pelos fieis desta forma.
 
.
 
((quem se interessar por mais informação acerca da situação do Protestantismo, por favor verifique o post Meditações na Era de Kali (Kali yuga): II – Vale a pena ser protestante/evangélico? – Ananda (Bem Aventurança). )).
 
.
 
Algum protestante, sem as informações deste relatorio, poderá observar que o Cristianismo deles é o "de Jesus" (errado: é apenas um Cristianismo biblicista) e que "Jesus não é religião" (mas o Cristianismo da Igreja Primitiva - aquela pré-imperador Constantino, até o século IV EC -, era essencialmente religioso e muitíssimo mais consistente que qualquer seguimento protestante - já se vê que há ou alguma mentira ou alguma insuficiência comprometedora por parte dos protestantes que os fieis, pr lidarem com relatórios minimais, não conseguem perceber...).
 
.
 
E, entretanto, se julgando os protestantes portadores das "melhores" colocações doutrinais (se não houvesse essa convicção entre a maior parte dos fiéis, o que seria de muitos seguimentos e ministérios protestantes?), temos que, em meios protestantes pode ser encontrada a preservação e a má avaliação daquilo que Cristo, há mais de dois mil anos, pôs para fora: os "vendilhões"  - além de mercenários e lobos (Evangelho de São João, capítulo 10) - e não estou me referindo à  "Teologia da Prosperidade"; os  "vendilhões" podem ser encontrados em ambientes protestantes nos quais não há adesão à "Teologia da Prosperidade"...
 
.
 
Aceito a simplicidade sincera de alguns  protestantes (na verdade, a maioria deles) - e há protestantes valentes; há também aqueles que são cultos e os há também eruditos - mas chega a ser estranho o "Cristianismo de Jesus" não ter Ascese nem Renúncia: sem essas "ferramentas" não há como restringir algumas situações e posições que Cristo não formula nem valida, os fiéis acabam ficando numa situação que corresponde a uma mistura com o mundanismo, a qual reduz a adesão a Cristo, bem como acarreta a não-interação com a Sabedoria, resultando em limitação e desvio e falta de penetração espiritual, além das  situações que mencionei aqui...
 
.
 
Em outros contextos, temos, por exemplo, o terrorismo/extremismo de grupos radicais armados - praticantes de atentados com explosivos ou outros meios letais, homens/mulheres-bomba, assassinos e torturadores cruéis, estupradores, etc., doutrinados a acreditar que suas ações são justificadas e/ou, ainda, louváveis e meritórias – em tais casos, porém, há uma liderança da malícia e a utilização sistemática, calculada do engano e mesmo do que podemos chamar de lavagem cerebral ...
 
.
 
Embora não se trate do mesmo contexto do Angulimala Sutta (inveja-malícia-mentira-vingança num contexto em que elas não deveriam medrar/prosperar/ter êxito), me parece tratar-se, todavia, do desenvolvimento dos mesmos fatores doentios (engano-malícia–mentira) conduzindo as pessoas a azarar as próprias vidas e as vidas alheias - como se deu no relato de Angulimala... ]

 

.

 

Ahimsaka vivia na floresta Jalini, atacando viajantes e cortando um dedo de cada um e usando-os como um colar. Na narrativa de abertura do Angulimala Sutta, lhe faltava apenas um dedo para completar os mil requisitados por seu preceptor brahmane e ele estava determinado a matar a primeira pessoa que aparecesse.

 

O Buda Shakyamuni, por sua força espiritual, viu que a mãe de Angulimala estava a caminho para visitá-lo e, tendo consciência de que Angulimala tinha as condições necessárias para alcançar o estado de arahant - em decorrência de acumulações de mérito em muitos nascimentos anteriores -, encontrou-o pouco tempo antes que a mãe chegasse...

 

 

ANGULIMALA SUTTA – MAJJHIMA NIKAYA cap. 86

 

1. Assim ouvi. Em certa ocasião o Abençoado estava vivendo em Savathi, no Bosque de Jeta, no Parque de Anathapindika.


 

2. Agora, naquela ocasião havia no reino do rei Pasenadi de Kosala um bandido chamado Angulimala que era um assassino, com as mãos tingidas de sangue, habituado a golpes e violência, impiedoso com os seres vivos. Vilarejos, cidades e distritos haviam sido destruídos por ele. Ele estava constantemente matando pessoas e usava os dedos delas em um colar.


 

3. Então, quando havia amanhecido, o Abençoado se vestiu e tomando a sua tigela e manto externo, foi para Savathi para a coleta de alimentos. Depois de haver perambulado em Savathi coletando alimentos ele retornou e após a sua refeição arrumou o seu local de descanso e tomando a tigela e o manto externo saiu pela estrada que levava para onde estava Angulimala. Pastores e camponeses que passavam vendo que o Abençoado caminhava na direção que levava para onde estava Angulimala lhe diziam: "Não siga por essa estrada recluso. Nessa estrada se encontra o bandido Angulimala que é um assassino, com as mãos tingidas de sangue, habituado a golpes e violência, impiedoso com os seres vivos. Vilarejos, cidades e distritos foram destruídos por ele. Ele está constantemente matando pessoas e usa os dedos delas em um colar. Homens em grupos de dez, vinte, trinta e até quarenta seguiram por esta estrada e assim mesmo foram vítimas de Angulimala". Quando isso havia sido dito, o Abençoado prosseguiu em silêncio.

 

 

Por uma segunda vez... [e] Por uma terceira vez os pastores e camponeses disseram isso ao Abençoado, mas ainda assim o Abençoado prosseguiu em silêncio.


 

4. O bandido Angulimala viu o Abençoado se aproximando à distância. Quando ele o viu, pensou: "É fantástico, é maravilhoso! Pessoas em grupos de dez, vinte, trinta e até quarenta seguiram por esta estrada e assim mesmo foram minhas vítimas. E agora esse recluso vem sozinho, sem companhia, como se empurrado pela fé. Porque eu não deveria matar esse recluso?". Angulimala então tomou a sua espada e escudo, afivelou o seu arco e a aljava e seguiu o Abençoado de perto.

 

5. Então o Abençoado realizou tamanha façanha com os seus siddhis [faculdades supranormais] que o bandido Angulimala, embora caminhasse tão rápido quanto pudesse, não conseguia alcançar o Abençoado que caminhava em seu passo normal. Então o bandido Angulimala pensou: "É fantástico, é maravilhoso! Antes eu conseguia alcançar e agarrar até mesmo o elefante mais rápido; eu conseguia alcançar e agarrar até mesmo o cavalo mais rápido; eu conseguia alcançar e agarrar até mesmo a carruagem mais rápida; eu conseguia alcançar e agarrar até mesmo o cervo mais rápido; mas agora, embora esteja caminhando o mais rápido que possa, não consigo alcançar esse recluso que está caminhando em seu passo normal!" Ele parou e chamou o Abençoado: "Pare, recluso! Pare, recluso!"

 

"Eu parei, Angulimala; pára tu também."


 

Então o bandido Angulimala pensou: "Esses reclusos, filhos dos Sakyas, falam a verdade, afirmam a verdade; mas embora esse recluso ainda esteja caminhando, ele diz: 'Eu parei, Angulimala; pára tu também.' E se eu questionasse esse recluso."


 

6. Então o bandido Angulimala se dirigiu ao Abençoado em versos da seguinte forma:

 

"Enquanto caminha, recluso, tu dizes que parou;

Mas agora, quando eu parei, tu dizes que não parei.

Eu te pergunto agora, Ó recluso, qual o significado:

Como pode ser que tu tenhas parado e eu não tenha?"


.

"Angulimala, eu parei para sempre,

Eu me abstenho da violência para com os seres vivos;

Mas tu não tens nenhum refreamento em relação àquilo que tem vida:

Essa é a razão porque eu parei e tu não."

.
 

"Ó, até que enfim este recluso, um sábio venerado,

Veio para esta grande floresta por minha razão.

Ouvindo os teus versos com o ensinamento do Dhamma,

Eu de fato renunciarei ao mal para sempre".[*]


 

[nota: Acatando uma ordem abjeta, sem finalidade objetiva, pérfida e maligna - como se se tratasse de uma solicitação espiritual, conquanto inusitada, com fins legítimos - Angulimala perdeu a lucidez em sua mente e o rumo de sua vida. Não fosse isto suficiente, entrou num processo de obscuridade interior/espiritual através da marcha regressiva para a qual foi maliciosamente conduzido, aniquiladora de acumulações e qualidades interiores/espirituais meritórias - sendo o mérito substituído por demérito - e geradora de sofrimento e malefício a si e aos outros. Nestes versos é descrito o fortuito encontro de Ahimsaka/Angulimala com o Buddha Shakyamuni e o nobre momento da recuperação da lucidez em seu entendimento. Reconheceu o mal como mal (a loucura doentia como loucura doentia), renunciando-o… O encontro com o Buddha Shakyamuni resgatou Angulimala do inferno... e mais...]


 

Assim dizendo, o bandido tomou a sua espada e armas

E as arremessou em uma cova, num abismo;

Angulimala venerou os pés do Abençoado,

E depois ali pediu sua admissão na vida santa.


 

O Iluminado, o Sábio da Grande Compaixão,

O Mestre do mundo com [todos] os seus deuses,

Dirigiu-se a ele com estas palavras, "Venha, bhikkhu" [monge budista].

E assim foi como ele se tornou um bhikkhu.


 

7. Então o Abençoado iniciou a caminhada de regresso a Savathi com Angulimala como seu acompanhante. Caminhando em etapas eles acabaram por chegar em Savathi e lá se estabeleceram no Bosque de Jeta, no Parque de Anathapindika.

 

8. Agora naquela ocasião uma grande multidão havia se aglomerado nos portões do palácio do rei Pasenadi, barulhenta e ruidosa, gritando: "Senhor, o bandido Angulimala encontra-se no teu reino; ele é um assassino, com as mãos tingidas de sangue, habituado a golpes e violência, impiedoso com os seres vivos. Vilarejos, cidades e distritos foram destruídos por ele. Ele está constantemente matando pessoas e usa os dedos delas em um colar! O rei precisa acabar com ele!"

 

9. Então no meio do dia o rei Pasenadi de Kosala saiu de Savathi com um grupo de 500 cavaleiros em direção ao parque. Ele foi até onde a estrada permitia ir com a sua carruagem e depois desmontou e seguiu a pé até onde estava o Abençoado. Depois de saudar o Abençoado ele sentou-se a um lado e o Abençoado lhe disse: "O que há, grande rei? O rei Seniya Bimbisara de Magadha o estará atacando ou os Licchavis de Vesali ou outros reis hostis?"


 

10. "Venerável senhor, o rei Seniya Bimbisara de Magadha ou os Licchavis de Vesali ou outros reis hostis não estão me atacando. Mas há um bandido no meu reino chamado Angulimala, ele é um assassino, com as mãos tingidas de sangue, habituado a golpes e violência, impiedoso com os seres vivos. Vilarejos, cidades e distritos foram destruídos por ele. Ele está constantemente matando pessoas e usa os dedos delas em um colar. Eu nunca serei capaz de acabar com ele, venerável senhor."

 

11. "Grande rei, suponha que tu visses que Angulimala raspou o seu cabelo e barba, vestiu os mantos amarelos e seguiu a vida santa; que ele está se abstendo de matar seres vivos, de tomar aquilo que não é dado e da linguagem falsa; que ele se abstém de comer à noite, come somente uma vez ao dia, é celibatário, virtuoso, com bom caráter. Se tu o visses assim, como o tratarias?"

"Venerável senhor, nós o homenagearíamos, ou nos levantaríamos, ou o convidaríamos para que ele se sentasse; ou o convidaríamos para que aceitasse mantos, alimentos, um lugar para descanso ou medicamentos; ou nós lhe proveríamos guarda, defesa e proteção sob a lei. Mas, venerável senhor, ele é um homem sem moral, mau caráter. Como poderia ter tal virtude e contenção?"


 

12. Agora, naquela ocasião o venerável Angulimala estava sentado não muito distante do Abençoado. Então o Abençoado estendeu o seu braço direito e disse ao rei Pasenadi de Kosala: "Grande rei, este é Angulimala."

 

Então o rei Pasenadi ficou com medo, alarmado e aterrorizado. Sabendo disso, o Abençoado lhe disse: "Não temas, grande rei, não temas. Não há nada a temer da parte dele."


 

Então o medo, alarme e terror do rei diminuiram. Ele foi até o venerável Angulimala e lhe disse: "Venerável senhor, és tu realmente Angulimala?"


 

"-Sim, grande rei."


 

"Venerável senhor, de que família é o teu pai? De que família é a tua mãe?"


 

"Meu pai é um Gagga, grande rei; minha mãe é uma Mantani."


 

"Que o nobre senhor Gagga Mantaniputta descanse satisfeito. Eu irei prover mantos, alimentos, um lugar para descanso e medicamentos para o nobre senhor Gagga Mantaniputta.".

[nota: se referindo a Angulimala pelos sobrenomes de seu pai e mãe – filho de Gagga e Mantani]


 

13. Agora naquela ocasião o venerável Angulimala vivia na floresta, coletava alimentos, vestia mantos feitos com trapos e se restringia a três mantos. Ele respondeu; "Já é o suficiente, grande rei, meus três mantos estão completos.'

 

O rei Pasenadi então voltou para o Abençoado e após saudá-lo, sentou-se a um lado e disse: "É fantástico, venerável senhor, é maravilhoso como o Abençoado doma os indomados, traz paz para os perturbados e conduz ao Nibbana aqueles que ainda não alcançaram o Nibbana. Venerável senhor, nós mesmos não pudemos domá-lo com a força e armas e, no entanto, o Abençoado o domou sem força e sem armas. E agora, venerável senhor, nós partiremos. Estamos muito ocupados e temos muito que fazer."


 

"Agora é o momento, grande rei, para fazeres o que tu consideras ser adequado."

Então o rei Pasenadi de Kosala levantou-se do seu assento e após homenagear o Abençoado, mantendo-o à sua direita, partiu.


 

14. Então, quando havia amanhecido, o venerável Angulimala se vestiu e tomando a sua tigela e manto externo, foi para Savathi para a coleta de alimentos. Enquanto ele perambulava de casa em casa em Savathi, ele viu uma certa mulher dando a luz a uma criança deformada. Vendo isso, ele pensou: "Como os seres sofrem! De fato, como os seres sofrem!"

 

Depois de haver perambulado em Savathi coletando alimentos ele retornou e após a sua refeição ele foi até o Abençoado e depois de homenageá-lo ele sentou-se a um lado e disse: "Venerável senhor, pela manhã me vesti e tomando a minha tigela e manto externo, fui para Savathi para a coleta de alimentos. Enquanto perambulava de casa em casa em Savathi, vi uma certa mulher dar à luz a uma criança defeituosa. Vendo isso, pensei: "Como os seres sofrem! De fato, como os seres sofrem!"


 

15. "Nesse caso, Angulimala, vá para Savathi e diga para aquela mulher: "Irmã, desde que nasci, não me recordo de intencionalmente haver privado da vida um ser vivo. Por essa verdade, que tu fiques bem e a tua criança fique bem!"

 

"Venerável senhor, não estaria eu contando uma mentira deliberada, pois intencionalmente privei da vida muitos seres vivos?"


 

"Então, Angulimala, vá para Savathi e diga para aquela mulher: "Irmã, desde que nasci com o nobre nascimento, não me recordo de intencionalmente haver privado da vida um ser vivo. Por essa verdade, que tu fiques bem e a tua criança fique bem!"


 

"Sim, venerável senhor", o venerável Angulimala respondeu e tendo ido até Savathi disse para aquela mulher: "Irmã, desde quando nasci com o nobre nascimento, não me recordo de intencionalmente haver privado da vida um ser vivo. Por essa verdade, que tu fiques bem e a tua criança fique bem!". Então a mulher e a criança melhoraram.


 

16. Depois de não muito tempo, permanecendo só, retirado, diligente, ardente e decidido, o venerável Angulimala, realizando por si mesmo com o conhecimento direto, aqui e agora entrou e permaneceu no que é o objetivo supremo da vida santa, pelo qual com razão membros de um clã adotam a vida santa. Ele soube que: "O nascimento está destruído, a vida santa foi vivida, o que devia ser feito foi feito, não há mais vir a ser em nenhum estado". E o venerável Angulimala se converteu em um dos Arahants.

 

17. Então, quando havia amanhecido, o venerável Angulimala se vestiu e tomando a sua tigela e manto externo, foi para Savathi para a coleta de alimentos. Agora naquela ocasião alguém jogou um torrão de terra e atingiu o corpo do venerável Angulimala, outra pessoa jogou um pau e atingiu o seu corpo e outra pessoa jogou um pedaço de cerâmica e atingiu o seu corpo. Então, com o sangue jorrando da sua cabeça cortada, com a sua tigela quebrada e com o seu manto externo rasgado, o venerável Angulimala foi atá o Abençoado. O Abençoado o viu chegando à distância e lhe disse: "Agüente, brahmane! Agüente, brahmane! Tu estás experimentando aqui e agora o resultado de ações pelas quais tu poderias ser torturado no inferno durante muitos anos, por muitas centenas de anos, por muitos milhares de anos [*]."

 

[nota: Angulimala havia atingido o estado de Arhant, portanto as agressões feitas contra ele, doravante, eram agressões feitas contra uma pessoa santa...]

 

18. Então, enquanto o venerável Angulimala estava sozinho em retiro, experimentando o prazer da libertação, ele pronunciou o seguinte:

 

 

 

 

"Quem antes vivia em negligência

e depois não é mais negligente,

Ele ilumina o mundo

Tal como a lua liberta das nuvens.


 

Quem inspeciona as más ações que cometeu

Praticando ações benéficas no seu lugar,

Ele ilumina o mundo

Tal como a lua liberta das nuvens.


 

O jovem bhikkhu que dedica

O seu esforço aos ensinamentos do Buda,

Ele ilumina o mundo

Tal como a lua liberta das nuvens.


 

Que meus inimigos ouçam um discurso do Dhamma,

Que eles se dediquem aos ensinamentos do Buda,

Que meus inimigos cuidem dessas pessoas de bem

Que conduzem outras a aceitarem o Dhamma.


 

Que meus inimigos prestem atenção ocasionalmente

E ouçam o Dhamma daqueles que pregam a tolerância,

Daqueles que também falam em favor da bondade,

E que eles sigam esse Dhamma com ações bondosas.


 

Pois então com certeza , eles não irão desejar causar dano a mim,

Nem pensarão em causar dano a outros seres,

Portanto, aqueles que protegem a todos, fracos ou fortes,

Que eles alcancem a paz insuperável.


 

Aqueles que fazem canais, conduzem a água,

Arqueiros endireitam as flechas,

Carpinteiros endireitam a madeira,

Mas os homens sábios buscam domar a si mesmos.


 

Existem alguns que são domados com surras,

Alguns com grilhões e alguns com chicotes;

Mas eu fui domado por alguém só

Que não possui vara nem nenhuma arma.


 

'Inofensivo' é o nome que tenho,

Embora eu tenha sido perigoso no passado.

O nome que tenho hoje é verdadeiro:

Eu não firo nenhum ser vivo.


 

Embora tenha vivido no passado como um bandido

Com o nome de 'Colar de Dedos',

Aquele arrastado pela grande correnteza,

Eu procurei refúgio no Buda.


 

Embora tivesse no passado as mãos tingidas de sangue

Com o nome de 'Colar de Dedos',

Veja o refúgio que encontrei:

O grilhão de ser/existir foi partido.


 

Enquanto que muitas ações que pratiquei conduzem

Ao renascimento no inferno,

No entanto o seu resultado já me atingiu agora,

E assim, me alimento livre das minhas dívidas.


 

São tolos e não possuem noção

Aqueles que se entregam à negligência;

Mas aqueles com a sabedoria protegem a diligência

E a tratam como seu maior bem.


 

Não abram caminho para a negligência

Nem busquem prazer nos prazeres sensuais,

Mas meditem com diligência

De forma a alcançar a felicidade perfeita.


 

Dessa forma sejam bem vindos à escolha que fiz

E que ela permaneça assim, pois não foi mal feita;

De todos os Dhammas que são conhecidos

Eu encontrei o melhor.


 

Dessa forma sejam bem vindos à escolha que fiz

E que ela permaneça assim, pois não foi mal feita;

Eu alcancei o conhecimento tríplice

E fiz tudo o que o Buda ensina.".

 

                           ______________________________

 

 

[nota: Este post é sobre o Angulimala Sutta - para a maioria dos budistas, um relato bem conhecido - e, também, sobre quais as lições importantes, a meu ver, podem ser extraídas dele - o que pde ser útil a quem vem chegando ou não conhece ainda o Angulimala Sutta.
 
Dessarte, passei para esta nota final um  último comentário, aqui, sobre os protestantes (tinha posto-o juntamente com a própria nota no item 3 da nota da Sinopse, mas isto resultou em estender demais a argumentação).
 
Para mim foi uma grande surpresa encontrar em meios protestantes o que eu acabei por encontrar - achava que eles tinham outros problemas (ou ainda menos problemas) e, dessarte, praticamente nenhuma (ou pouca) dificuldade no aspecto do problema humano/espiritual que nós traz o Angulimala Sutta.
 
Ao final, ampliou-se em mim a visão e a compreensão do universo protestante: uma parte do Protestantismo são ministérios cujas cúpulas são um regimento do Esoterismo, mas isto não é divulgado nem comunicado, antes mantido em segredo para a maioria das pessoas nos ministérios (a arraia miúda não-vinculada aos Regimes, como vemos no Brasil, Coreia do Sul, etc.); não é como na igreja Presbiteriana, onde todo o mundo - inclusive as crianças - sabe de todas as posições que há na confissão. Um amigo meu é batista e iniciado; outro colega é metodista e iniciado  - são discretíssimos, preferem usar os códigos e ambos os meus amigos levam uma vida honrada. Não conversam comigo sobre Esoterismo - ou desconversam - , mas entendem que eu sei que eles são iniciados. Por outro lado, já encontrei pessoas com pouca ou nenhuma conduta ética...
 
Os poucos amigos protestantes sem vínculo direto com o Regime que eu tenho, mesmo com altos e baixos e, num momento ou outro, "empurrando as coisas com a barriga", experimentam alguma felicidade decorrente da sua própria sinceridade e fé em Cristo: algumas visitações, livramentos, milagres, momentos de paz no coração, algumas curas e obras pela fé, nada disto são balelas nem vigarice, mas resultados dos protestantes não vinculados ao regime - embora as cúpulas efetuem propiciações - , em sua interação com a Dimensão da Fé.
 
Porém, essa forma de espiritualidade corresponde a um nível que é um nível inicial de interação e adstrito a um dualismo. Do meu ponto de vista, esses protestantes se deslocam não apenas num campo que é um espaço restrito pelo seu caráter dualista, mas também movediço - as cúpulas demitem os desvios dos cursos estabelecidos, mesmo que se trate de resultados cristãos notáveis (não querem a perda do controle nem desvios) .
 
Então, temos luz - a qual é algo da Luz, mas não, ainda, a Luz. Deve ser observado que há, no Cristianismo Tradicional, por exemplo,  uma muitíssimo maior penetração espiritual - confiam e se valem da Sabedoria. Por fim, temos, também, sombra.
 
Da perspectiva da Sabedoria, Luz e Sombra se acompanham - as sombras podem se tornar trevas, mas até o que procura refletir luz, em se desviando ou extraviando, se torna também treva - e a "Luz sem sombra"  não é dualista. Interior e espiritualmente, o Dualismo resulta em sofrimento, pois restritivo, limitante e, a partir de uma determinada fronteira ou nível,  sem instrumentos nem meios adequados que viabilizem/facultem  um maior  avanço ou desenvolvimento -  o Dualismo esbarra e coloca as pessoas numa impossibilidade espiritual.
 
O que narrei nesta observação - juntamente com alguma balela, alguma vigarice, alguma doença ou endemoninhamento que também podem ser encontrados - corresponde às sombras/trevas,  as quais também existem - e os protestantes sabem perfeitamente bem disto (sendo que, a meu ver, quanto a isto se previnem pouco, não formam uma sabedoria/experiência como no Judaísmo...)]

Meditações na Era de Kali: I - O Mal.

12/06/2014 03:52

 

Milhões de seres humanos

padecem necessidade todos os dias

- porém muitos não lhes dão ajuda.

 

Oprimidos pela fome e a subnutrição

um deles morre a cada sete segundos

- mas muitos não se importam.

 

As pessoas são tolas...

 

Pense:

se você fosse uma criança pobre

de algum país sofrido da África

- ou de qualquer outro canto do mundo -

 

Você estaria apenas gritando,

chorando pelo teu destino...

Muitos, porém, apenas ririam de ti.

 

Porque eles não te amam...

e ainda te machucam...

 

Mas agora outros seres humanos

estão próximos de morrer

ou tendo suas vidas estraçalhadas, espicaçadas

sem nenhuma misericórdia...

 

Porque ninguém lhes dá ajuda...

 

[“People are fool”, Pete Vaisanen. Tradução - e adaptação - do texto em inglês por Kaliputra.]

 

                                         _______________________________________

 

 

O espirito possui uma torre inexpugnável

que nenhum perigo ameça

desde que a torre seja guardada

pelo Tao invisível

que age sem saber e cujas ações

perdem-se quando são deliberadas,

reflexivas e intencionais.

 

 

O Inconsciente

e toda a sinceridade do Tao

são turbados por qualquer esforço

de demonstração autoconsciente

- todas essas demonstrações são mentirosas...

 

 

Quando nos portamos

dessa maneira ambígua, exibicionista

o mundo exterior explode

e nos aprisiona.

 

Não somos mais protegidos

pela sinceridade do Tao...

 

Cada novo ato

é um novo erro...

 

 

Se os atos são públicos,

feitos à luz do dia,

seremos punidos pelos homens...

 

Se são privados e secretos

seremos punidos pelos espíritos...

 

Deixe cada um compreender

o sentido da sinceridade

e proteger-se contra a ambiguidade e o exibicionismo!

 

Ficará em paz

com os homens e os espíritos

e agirá corretamente, despercebido

em sua própria solidão

na torre de seu espírito...

 

[Chuang Tzu - “A torre do espírito” - extraído de “A via de Chuang Tzu” por Thomas Merton .]

 

_____________________________________

 

 

 

Quando se está num pesadelo

o desejo do coração é acordar...

escapar....

 

Não me refiro àquele pesadelo

que pode se dar durante o sono

- o qual é a ocorrência puramente onírica -

 

Tal pesadelo

- se nenhuma feitiçaria ou malevolência nos sobrevêm -

termina quando retornamos à consciência de vigília.

 

 

O pesadelo a que me refiro

trata-se da materialização

de uma situação aflitiva, opressiva,

- e, em certos casos, mesmo apodrecida -

na vida cotidiana.

 

Uma situação decorrente de posicionamentos impiedosos,

maliciosos e/ou perversos...

 

É quando aquilo que consegue somente sugar,

vampirizar a vida...

aquilo que consegue somente aviltá-la

- desfigurando, deformando -

e aquilo que consegue

somente aniquilar a vida pela corrosão,  pela depredação

- mas nunca, jamais, permitir que haja vida -

se impõe como valor

e/ou medida decisória...

 

(…)

 

O mal se instala

onde encontra ocasião para se instalar.

Isto se desdobra como hipocrisia, opressão e inversão,

antagonismo (“todos contra todos”) e perversão...

 

O mal não tem raça nem classe social

não tem gênero sexual nem nível cultural

não tem cor nem idade nem nível socioeconômico

não tem religião nem filosofia

não tem ideologia nem partido político...

 

Quanto mais duros, ousados e frios

preferem ser os homens

mais um pesadelo encontra ocasião

para se alastrar sobre a Terra, dia após dia...

 

E, conforme isto se alastra,

sofrimentos - alguns intensos e 

de alto grau de dificuldade de reparação -

vão emergindo das trevas

e se alocando no seio da comunidade humana...

 

(...)

 

A dificuldade sempre existiu;

momentos ruins têm sempre existido.

Monstruosidades e torpezas sempre têm ocorrido...

 

O mal não é um conceito abstrato

tampouco um mero jogo dialético...

 

Supor ser o mal um mero conceito

uma mera questão intelectual ou mental

de sabor subjetivo

é uma insensatez que expõe os outros à dor

- a serem as novas vítimas...

 

 

Se não há contenção do mal

experiências difíceis, cruéis

macabras e/ou doentias

acometem sobre as pessoas...

 

(...)

 

Num tempo de homens compreendidos, em princípio,

como civilizados, inteligentes e evoluídos

não apenas injustiças e iniquidades

mas bestialidades e torpezas vêm acontecendo.

 

Tal degradação não é algo inédito

na condição do gênero humano

pois que é a marca de toda a dificuldade,

ignorância e miséria interior

que têm sempre anelado ocasião

para, através dos homens, se desenvolver na Terra.

 

Em tais momentos se manifestam

as facetas mais maliciosas,

mais cruentas e obscuras do ser humano.

 

Nossa fraqueza, inclinação/propensão para a maldade

e limitação espiritual

bem como a estupidez e a bestialidade que podem acompanhá-las

são apenas os Jardins das Trevas...

 

São o desdobramento da enfermidade interior

(a qual só pode ser resolvida individualmente, em cada ser humano que nasce)

que não vale a pena olhar...

não vale a pena contemplar...

 

As pessoas que participam das ações e condutas

que levam à vitimização gratuita e

à deterioração impiedosa, desleal, maléfica do próximo

vivem conosco, caminham entre nós...

 

O mal que elas causam e fomentam

é dirigido contra todos nós...

 

(…)

 

Na nossa atual sociedade

temos de aprender a conviver com o mal

que situações como a soberba, o nihilismo e o egoísmo,

a ganância, a inversão de valores, a covardia, a deslealdade,

as condutas sorrateiras/traiçoeiras e a estupidez

têm dado amplos espaços para surgir,

estabelecer-se e expandir-se sobre a Terra.

 

A vida não pode ser,

não pode seguir o seu curso natural

quando os homens se julgam

mais importantes que a Realidade

quando avaliam que podem fazer o que bem entendem

sem qualquer responsabilidade

nem apreensão com as consequências de suas ações...

 

E a vida não funciona adequadamente

quando os homens não têm doação, generosidade [*],

contenção/moderação nem liberalidade...

 

[nota: me provoca mal-estar testemunhar e verificar como, em alguns ambientes, há desdém e mesmo zombaria por parte da algumas pessoas no que concerne à Caridade; como se a Caridade não fosse algo nobre, mas uma insuficiência de percepção, um posicionamento oriundo da 'infância humana' – a qual não consegue avançar, dirigir-se à 'fase adulta', madura e/ou pragmática - e mesmo um posicionamento miserável... Jogando-se para escanteio a Caridade (Dana para os orientais) a crueldade, o declínio e a miséria são quase inevitáveis... Nalguns casos tenho testemunhado/verificado desdém também em relação à Ética (na verdade, a um compromisso ético autêntico/genuíno, não-superifical ou utilitarista)...]

 

Aceite-se ou não,

aquilo que é sanidade

vem na esteira da devida consideração a valores autênticos.

 

Atrás do relativismo moral, porém,

vêm, não apenas, a estupidez e a perversão

mas o canibalismo e a bestialidade...

 

 

(...)

 

Os exemplos têm mais força,

valem mais que as palavras.

 

Se os exemplos são a aplicação prática

de mentiras que pretendem passar por verdades;

e se os exemplos são a aplicação prática

de posicionamentos mesquinhos, hipócritas e egoístas,

que pretendem passar por virtuosos ou necessários

o que granjeamos é, no mínimo, o declínio e a miséria...

 

Desistiu-se de lutar, de esforçar-se:

"Para quê ser ético?  

E para quê moralidade ou integridade?

Para quê perder tempo com esforços assim

e desperdiçar meu potencial?

A expansão dos meus desejos, das minhas projeções

é que é mais importante..

para quê atinar outro padrão de conduta?

 

Sucede a catástrofe:

implodimos... explodimos...

 

Entramos vivos nalgum andamento qualquer por aí

mas saímos recuados, diminuídos, reduzidos...

se saímos...

 

E, em verdade, mesmo saindo

não somos mais aquilo que éramos

quando da nossa entrada.

Nossa condição diminuiu, atrofiou...

 

E as coisas belas, de repente,

perderam a força da sua beleza

assim, também, as coisas graciosas

perderam a força da sua graciosidade...

 

A enfermidade interior/espiritual avançou sobre elas...

 

Deploravelmente, miseravelmente a adesão ao mal

tem agregado “famílias”, grupos, núcleos, comunidades...

 

Em tempos de preocupações ecológicas, ambientais

vivemos também em meio a uma “poluição espiritual”

altamente tóxica e de difícilima contenção e correção...

 

O Relativismo Moral é inimigo da vida

- dá suporte retórico a ações e condutas

cuja aplicação prática afetam destrutivamente

aquilo que dá sustentação ao viver...

(dá suporte retórico àquilo

cuja aplicação prática torna mais ruim a vida) ...

 

Por que não deveria encarar os outros

mais que como simples objetos?

Por que deveria me esforçar

em relação a alguma justiça efetiva?

Minhas construções

- mesmo aquelas baseadas naquilo que pode ser considerado 

injustiça, exagero ou crueldade -

meus desejos e vaidades

minhas obscenidades e doenças

são mais importantes...”

 

Quando o mal se tornou o vetor...

que importa se o outro é uma pessoa

ou um simples objeto?

 

Ou, então, um “inimigo” a ser evitado, mantido à distância

e descartado para qualquer ação

que corresponda a justiça, melhoria,

generosidade ou bondade,

servindo, se muito, para exploração?

(mantido na zona de “cautela/exclusão/agressão”

pois “não faz parte da família”...)

 

Ou ainda um “alvo” para algum fim doentio?

 

Céu e Terra são testemunhas de atos vis, perversos, torpes...

 

O que pode ser feito?

 

Resistir...

não nos vender - nem vender os outros...

não aderir - e, ainda, conforme o caso, romper ...

não transigir (ou compactuar)...

reagir (com sabedoria) ... não capitular...

 

Adaptar nossa conduta a valores verdadeiros, autênticos...

e, nessa esteira, desenvolver perspicácia  (e destreza) com dignidade;

 

Anular/estornar o que só tem proveito para a impiedade...

devolver o que não é imbuído de justiça verdadeira...

 

Verificar - e devolver - o que acha que pode “ganhar dos dois lados”

(quem quer ganhar dos dois lados está do lado de lá)...

 

Devolver o que não imbuído de Altruísmo verdadeiro [*]...

 

 

[nota: no Judaísmo aprendemos: "Lança o teu pão sobre as águas que passam, porque depois de muitos dias o acharás; reparte dele com sete e ainda com oito; não sabes que mal estará para vir sobre a terra"... Eclesiastes 11:1-2. Estando na nossa possibilidade fazer um bem efetivo sem dúvida que o melhor é fazê-lo; e um dia qualquer desses pode chegar a nossa hora de precisarmos. E não apenas isto: para o além-túmulo o bem efetivo, objetivo que fizermos neste corpo reverterá a nosso favor...

Já tenho observado neste blog que o exercício da Caridade sem o desenvolvimento de uma Sabedoria pode gerar insatisfação, decepção e mesmo frustração/infelicidade, uma vez que, entre diversas situações aflitivas a serem levadas em conta, há aquela referente a pessoas que exercem a Caridade com uma mão (por exemplo: socorrem a necessidade material dos necessitados o que é algo digno em si mesmo) mas proporcionam um prejuízo interior para as pessoas com as duas, uma vez que sua ação benigna não é imbuída de isenção e exige algo em troca; outros praticam atos de generosidade mas sentem a necessidade de publicar, de tornar notórias suas ações;  outros prestam atendimento meio que mecanicamente, sem interagir com os atendidos e com a situação (incorrendo exercer a Caridade sem objetividade, prestar ajuda que a pessoa não precisa, deixar de prestar a ajuda realmente necessária, sendo que cada caso é um caso específico); outros não socorrem os necessitados mas aliviam, em suas relações de amizade ou interesse, os negligentes e os ímpios, socorrem e se compadecem de quem não merece - em detrimento de quem realmente  precisa e merece; isto não quer dizer que a Caridade não possa abranger os ímpios: na verdade pode, mas é necessário considerar, verificar qual a ajuda adequada uma vez que  o acúmulo de atos impiedosos é um acúmulo de negatividade que não sai de graça - relevar ou negligenciar as acumulações negativas/aflitivas dos malignos, as condutas vis/ímpias que eles estão desenvolvendo nesta existência (e não apenas, do ponto de vista budista, acumulações que acompanham esta existência de uma situação anterior) é melhor, também, não descartar a possibilidade de um desequilíbrio, bem como preparar-se para o surgimento de insatisfação/decepção e frustração/infelicidade - a menos que você já seja um Amitabha ou um Avalokiteshvara. 

 A amiga da Caridade é a Sabedoria; a atitude idealista não é amiga, incorre nos levar a tentar padronizar nossa visão e ação, o que pode ser uma armadilha destrutiva: por mais que existam casos análogos, sempre estamos lidando com a realidade concreta, movente, com um ser vivo o qual está inteiro ali (não apenas sua  necessidade: também sua virtude e justiça, sua dificuldade, fraquezas e falhas bem como sua negatividade e aflições). A padronização idealística há de ser evitada e/ou abandonada - pois a "régua" idealista mata, anula/cancela a aferição do fato concreto, e nós não estamos lidando com meros números (e se, no caso, eu quero socorrer um maligno é absolutamente necessário partir da situação concreta; não é adequado tratar, dispensar o mesmo protocolo para um demônio como se o mesmo fosse um anjo [essa é a miséria da cultura moderna/pós-moderna]; "maligno" não é um morador de rua sem banho e em farrapos que, eventualmente, infelizmente, além de estar no crack perdeu também sua mente; "maligno" se trata de alguém que molesta, maltrata, vilipendia, violenta, frauda ou prejudica sem motivo ou com pouco motvo, injustamente, cruelmente as pessoas; alguém que ignora, também, friamente, impiedosamente a necessidade das pessoas; alguém que tem compromisso interior com o mal, não devendo ser confundido nem encarado como alguém que não tem essas condutas; daí ser imprescindível procurar prestar, maiormente em relação aos malignos, a ajuda adequada). Em termos orientais: o exercício de Dana/Dar e Karuna/Compaixão não apenas é de rigor, necessário,  mas exige também o incurso e o desenvolvimento de Jnana/conhecimento (ou gnose) e Prajna/Sabedoria. É possível atender melhor, gerar benefício a quem precisa e a quem merece; é possível também, numa maneira adequada, atender os ímpios. De minha parte, fico com Nagarjuna  (Ratnamala/Grinalda Preciosa) e São Vicente de Paula (hospitais - Santas Casas de MIsericórdia (gratuitas, abertas a todos, indistintamente), asilos, orfanatos, abrigos e assistência material para aqueles em situações extremas, etc.)... ] 

 

 

                                                                                                                            ______________________________________

1. Budismo moderno ou neobudismo? Nihilismo e distorções no Budismo Ocidental. 2. Karanda Vyuha Sutra.

31/03/2014 23:32

 

1. Budismo moderno ou neobudismo? Nihilismo e distorções no Budismo Ocidental.

 

- I -

APRESENTAÇÃO.

 

Há apontamentos da vida do Buddha Shakyamuni[*] cujo conteúdo consiste em matéria de cunho sobrenatural e/ou religioso e que não podem ser comprovados de maneira a satisfazer alguns critérios da mentalidade moderna, sendo objeto de boa-fé e confiança - razão pela qual, ao menos para algumas mentes ocidentais, a menção de tais apontamentos pode comprometer a “clareza e a objetividade” na exposição filosófica e transmissão do Buddhadharma no Ocidente - uma religião caracterizada, justamente, pela exatidão das suas exposições -, devendo tais apontamentos serem omitidos, evitados e mesmo descartados - subentendendo como desnecessária a posição de “religiosos e poetas” (como eu, por exemplo, que pareço ser um pouco das duas coisas) em insistir na manutenção, dentro da exposição do Buddhadharma, daquilo que não pode ser “historicamente comprovado”.

 

[Nota: esta situação se repete, constantemente, no Budismo tradicional: com a biografia de Nagarjuna (o qual foi não apenas o filósofo madhyamika e abade do universidade monástica de Nalanda, mas alquimista e tântrico, se falando nalguns meios eruditos em dois Nagarjuna) e Asanga (sua conexão com o Buddha Maitreya e as situações envolvendo sua iluminação); e, ainda de forma mais contundente, em relação às biografias de Padma Sambhava e dos Mahasiddhas, de Marpa, Milarepa e Longchenpa, além de Yeshes Tsogyal - dentre os mais conhecidos -, uma vez que há menção plena de fatos envolvendo a contrapartida dos ritos do Vajrayana (Kalachakra, Hevajra, Mahamudra, Chakrasamvara, Mahavairocana, Guhyasamaja, etc.), observado que tais ritos não são transmitidos, via de regra,  sem treinamento preliminar em metafísica, psicologia e ética buddhistas, além das práticas para purificação/purgação (sadhanas com recitações mântricas e oferendas de mérito)... ]  

 

 

Em continuação, além do livre curso em algumas sanghas - sem refutação nem moderação - desta modalidade de crítica modernista, no Ocidente ainda pode ser encontrado em meios budistas a convivência com a circulação de erros doutrinais como a ideia de reencarnação  - impugnada pelo Buddha Shakyamuni, o qual reafirmou a Originação Dependente/Pratityasamutpada bem como a designação expositiva de um tal processo pela palavra 'Renascimento' ao invés de 'reencarnação', o qual pode implicar, para muitos no Ocidente, a ideia biológica e a ideia da presença de um 'eu' através dos agregados psicofísicos (skhandas)  -; por fim, nalguns casos, também pode ser encontrado no Ocidente a circulação e adição de ideias antiteístas e/ou ateístas [*].

 

 

Ser budista, porém, significa se posicionar, na pesquisa interior/espiritual, desde o ponto de vista da realização do estado de Buddha, portanto, lidando com a perspectiva da realização espiritual como possibilidade real de elevações e iluminação/liberação - uma vez que o Buddhadharma não é agnóstico -;  e tendo como fundamento não alguma posição materialista ou nihilista mas, antes, a posição com a perspectiva Não-Dual. Os conceitos budistas de Shunyata (vacuidade), Nirvana e Clara Luz são, ao menos em princípio, neutros - assim como o é o Brahman impessoal no contexto hindú.  

 

 
[nota: ser budista não significa ser antiteísta tampouco ateísta: o Buddha Shakyamuni, embora tenha refutado a perspectiva dualista (por insuficiente - e limitadora - para o descobrimento interior/espiritual objetivando a Paramartha Satya (Verdade Transcendental ou Final), nunca pregou nem a irreligião, nem o ateísmo nem o anti-teísmo. 
No cânon páli, livros “Digha Nikaya” (páli = Discursos longos) e "Majjhima Nikaya" (páli = Discursos médios), por exemplo, temos Digha Parajana, o qual trata-se de um yaksha, regente de uma hoste de yakshas e amigo do Buddha (cf. Majjhima Nikaya 31:21 e Digha Nikaya 32:10); o Buddha Shakyamuni, na sua jornada terrena, nunca advogou a abolição do culto aos Yakshas - pelo contrário, recomendou a sua manutenção (ver Majjhima Nikaya 31:21) -, nem de qualquer outra forma legítima de culto ou religião. À guisa de informação, na narrativa contida no livro Jataka/Histórias de nascimentos como bodhisattva do Buddha Shakyamuni, no volume I, capítulo 38, “Bala Jataka” (O Jataka da Garça), o Tathagata renasceu como "um espírito que residia em uma grande árvore" (cf. a tradução de Robert Chalmers no www.sacred-texts.com) ou seja: um yaksha.
 
O fato é que o Budismo, nascido na Índia, não rejeita nenhuma divindade informada pelo Hinduísmo – a Trimurti, as Dez Mahavidyas, Indra, Yama, Prajapati, os yakshas, etc., tampouco as informações espirituais-metafísicas contidas, por exemplo, nos Puranas hindús. 
 
Certo é que a pesquisa budista se dá ao nivel das Quatro Nobres Verdades e das Duas Verdades (Paramartha Satya/Verdade Transcendental ou Final e Samvritti Satya/Verdade Relativa ou Condicionada); na prática, no primeiro caso temos a orientação pela pesquisa interior-espiritual e no segundo caso, a pesquisa da Realidade Condicionada avançando até a pesquisa da Realidade Última (no caso budista, a pesquisa da Paramartha Satya/verdade Transcendental). 
 
A Questão Teísmo e Budismo se equaciona na “Tomada de Refúgio”. Tornarei a esses assuntos no correr do post.  
 
O Ateísmo Ocidental tem se desenvolvido com algumas variações. O Ateísmo de origem indiana, entre os seus caminhos, tem o Charvaka (análogo a uma das configurações do Ateísmo Ocidental) e o Jainismo (o qual, em alguns aspectos importantes, tem fortes paralelos com o Catarismo); segundo o Charvaka, todo a proposta de posições e considerações que ultrapassam os cinco sentidos é enganação e fraude; nesse caso, levando em conta a ponderação do Charvaka, se os Yakshas não existem, por que o Buddha Shakyamuni recomendaria aos indianos a manutenção do seu culto? E não apenas os Yakshas são reconhecidos pelo Buddha: as muitas classes de Maras e de Devas... Aqui no Ocidente muitos rejeitam a possibilidade da existência de anjos e demônios.
 
Em relação à Trindade cristã, é necessário, para uma comparação com as outras grandes tradições espirituais, se valer dos recursos de Religiões Comparadas: nessa perspectiva, a Trindade cristã deve ser comparada ao Trikyaya budista ou ao Sat-Chit-Ananda hindú (ao invés da Trimurti - Brahma, Vishnu, Shiva). 
 
O Buddha Shakyamuni esclareceu que a iluminação é possível e é o Estado Final, a Liberação (Moksha ou Kaivalya); refutou e impugnou erros doutrinais e espirituais (como o Charvaka e o Jainismo)...]

 

 

Também é possível constatar em circulação nalgumas sanghas: 

 

- a formulação que consiste na redução psicologista de alguns ensinamentos budistas; 

 

- além da redução psicologista, também a utilização do amesquinhador - e analogamente redutor - argumento culturalista, não apenas em relação ao Vinaya mas também em matéria de doutrina metafísica, o que denota haver rejeição - por parte dos budistas ocidentais que o validam - aos ensinamentos budistas, especialmente em relação àqueles com equivalência aos que podem ser encontrados em outras tradições espirituais [*].  Desconhece-se qualquer explanação budista tradicional impugnando, por exemplo, a informação espiritual/metafísica contida nos Puranas ou, então, revisando/corrigindo a própria informação budista quando os ensinamentos não avalizam  o materialismo/secularização -  bem como a tirania cultural e as distorções - de nossa cultura ocidental atual. 

 

[nota: os ensinamentos budistas se dão em diversos níveis - sutra, abhidharma, tantra -, com expositores de escolas tão diversas, como Buddhaghosa e Harivarman, Nagarjuna e Aryadeva, Asanga e Vasubandhu, Shantideva, Chandrakirti, os buddhas Padma Sambhava, Amitabha, Vairocana e os Siddhas.]

 

 

O Budismo Ocidental, nalgumas sanghas, incorre se tornar um Budismo eivado de posições nihilistas, desviado da observação de ensinamentos milenares (cuja validade tem sido confirmada, geração após geração, no Oriente), a fim de agradar e se adaptar ao temperamento/disposição dos homens de nosso tempo e cultura, bem como a adesão/validação por essas sanghas do que  é desvio e/ou nihilismo. [*] 

 

 

[nota: nem em meu período anterior como católico, nem em todos esses anos como budista, nunca passou pela minha mente que alguém é/está obrigado a fazer o que eu faço ou a acreditar no que eu mesmo acredito ou a aderir aos valores da minha adesão pessoal ou ainda a fazer/acreditar/aderir ao que quer que seja oriundo de quem quer que seja. A mim sempre pareceu que cada um tem as suas crenças, convicções, motivos, razões  e valores de acordo com suas peculiaridades pessoais (criação, formação cultural, eventos da vida pessoal, realidade estrutural interna),  sendo  pretensiosa e descabida a imposição de qualquer verdade secular ou espiritual...  

 

Nossa cultura atual, "aberta" e moderna é não apenas anti-tradicional, é também desfavorável e hostil à co-existência da pluralidade de posições; procura impor, por decreto, a sua visão peculiar de como deve ser encarado o mundo e em quê devemos  - e mesmo em quê podemos - acreditar ou não, bem como quais valores podemos e devemos sustentar ou não...

 

Também, nunca passou pela minha mente que alguém esteja/seja obrigado a sofrer sanções, repreensões, ostracismo ou rejeição social por sustentar valores ou opiniões diferenciadas, divergentes  ou dissonantes. Sempre acreditei - e continuo acreditando - que cada um tem a sua própria vida e que podemos, senão conviver, ao menos co-existir pacificamente, com nossos pontos de vista diferenciados. De fato, há alguns que detestam esta posição e perguntam se, em determinados casos, "temos então que nos odiar civilizadamente?". Se um ser humano não se convencer por argumentação idônea e fundamentada e se não mudar a sua posição, em princípio errônea ou equivocada, desde dentro, a pressão externa (argumentativa ou coercitiva) não conseguirá alterar o ponto de vista da tal pessoa; a meu ver temos de respeitar Direitos Civis, o que é realmente o mínimo, porém:

 

1)  um mínimo mais legítimo que a tirania de um idealismo absolutista que não aceita opinião contrária ou divergente,  

2) a tirania estatal - nalguns casos, também policial - ou, ainda,

3)  a miséria/doença terrorista; 

 

 

Esse "mínimo" vale mais que as posições (e pretensões)  convictas e/ou absolutistas, fanáticas  e/ou extremistas, porque há o respeito às Liberdades e Direitos Civis Fundamentais. 

 

Com efeito, a Liberdade é a verdadeira questão importante, a questão crucial. Cometer crimes por causa de convicção ou crença elimina, viola o direito essencial do outro a ser/existir e de livremente considerar as posições (liberdade de consciência); entretanto, a Liberdade é molestada na atitude de, meramente, imputar como crime "o que não concorda comigo" - essa direção é para onde nossa cultura atual está rumando... 

 

 

Sem Liberdade e Pluralismo o que temos é um confinamento cultural, o qual pode ter desdobramentos tirânicos. 

 

A proibição coercitiva do ponto de vista diferenciado, divergente ou  dissonante se trata, na verdade, de um rebaixamento da condição humana. Um tem direito não apenas a defender, sem ser molestado, aquilo em que acredita - seja lá o que for -, mas também de impô-lo aos demais, execrando e passando por cima de qualquer argumento divergente ou dissonante, mesmo que fundamentado... mas o outro não... e ainda incorre ser molestado e/ou vilipendiado socialmente ou sofrer restrições civis... 

Por esse desenvolvimento, oscilamos entre a imposição e o extremismo...]

 

 

- a ideia de que a moralidade budista pode ser adaptada aos tempos modernos para receber posições que o Buddhadharma, milernamente, não tem recomendado nem recebido como posições que podem ser validadas e integrar, normal e irrestritamente, a conduta recomendada aos budistas, em detrimento e desconsideração do que consta dos documentos budistas tradicionais consagrados, cujas orientações têm sido observados por milênios. Desde o ponto de vista de uma realização interior/espiritual, a desconsideração dos ensinamentos tradicionais pode implicar reduções e regressões, passíveis de conduzir, inclusive, conforme a conduta pessoal, aos estados inferiores - o fato é que os ensinamentos tradicionais não foram repassados objetivando meras imposições culturais ou morais. 

 

Entretanto, há sanghas no Ocidente e no Oriente validando posições nesse vetor ou diapasão - o Vinaya  e o Samaya são antiquados para os novos tempos. Em continuação, não se trata de meramente condenar essa ou aquela conduta de "A", "B" ou "C" ou de pregar alguma forma de moralismo; até porque - e dado importante para formar uma compreensão -  é necessário recordar que, do ponto de vista do Buddhadharma - e do Hinduísmo -, as situações humanas que se nos apresentam são resultado do karma. 

 

Todavia, hoje nós temos uma configuração cultural diferenciada dos referenciais tradicionais; e eis que essa nova configuração cultural é uma construção que não possui qualquer conexão, correlação ou vínculo com buscas humanas por iluminação e/ou elevações - e isto justamente porque tais buscas por elevação-iluminação das civilizações tradicionais nos remeteriam de volta a posições que hoje se encontram, nalguns núcleos, impugnadas ou tachadas como 'antiquadas'. 

 

 

Na prática, as pessoas escolhem como querem viver suas vidas, mas a responsabilidade do que eu escolho/decido para a minha própria vida é exclusivamente minha. Se não localizo ou identifico dentro de mim nenhuma afinidade com os requerimentos para uma vida baseada em valores espirituais ou metafísicos nem em engajar-me por erigir uma construção interior/espiritual, nesses moldes ou parâmetros, não há necessidade de forçar ou distorcer o Buddhadharma - ou as demais tradições espirituais – por causa disto. Impor àqueles engajados nas tradições espirituais tal posição - correspondendo as tradições espirituais a conjuntos de uma sabedoria milenar -, trata-se de um capricho, em si, doentio, já que eu posso, simplesmente, viver a minha própria vida a meu modo diferenciado, juntamente com pessoas com adesão semelhante à minha, sem perturbar quem não concorda ou tem uma posição distinta da minha, sendo desnecessário forçar os outros ao meu ponto de vista quando ele não é fundamentado ou convicente. 

 

 

- também budistas praticantes que, no seu quadro de referências/valores pessoais preservam a adesão a posições não formuladas pelo Buddhadharma - como o Feminismo, por exemplo - e mantêm, mesmo sendo praticantes de uma tradição espiritual, a continuidade com esses referenciais propriamente modernistas. 

 

 

No caso do Feminismo, eis que não só o Buddhadharma, mas as tradições espirituais como um todo, encaram homem/masculino e mulher/feminino desde uma perspectiva que é metafísico-espiritual. O caminho dos Arhants, no Budismo inicial, por exemplo - haja vista a envergadura da alteração interior requerida à natureza feminina para se adequar à via dos Arhants, - é sacrificoso para a natureza feminina, sendo o Mahayana e o Vajrayana um endereçamento melhor para as vocações femininas; entretanto, a via dos sramanas/ascetas, não consistiu em impedimento para o desenvolvimento espiritual das mulheres: as bikshunis são heroínas do Dharma. Deve ser observado ainda que, no caso do Vajrayana, uma das quebras de voto do Samaya  é menosprezar as mulheres [*].  

 

 

[nota:  Dentro de uma tradição espiritual objetivando  a iluminação/verdade final, o discurso feminista moderno - particularmente aquele desenvolvido a partir dos anos 60 - é como um corpo estranho, um gênio mundano, um desvio de assunto, pois nós, no caso do Buddhadharma, homens e mulheres, como sangha, devemos lutar por um propósito não-mundano, superior. Não vou deixar de respeitar - e honrar - um preceptor/professor (ou mesmo um estudioso/erudito) porque se trata de uma mulher -;  se a objetividade é o que nós procuramos, isto não faz sentido nenhum. 

 

A característica de algumas posições modernistas é o seu mundanismo e o seu materialismo. 

 

Há incompatibilidade entre a maneira de encarar as noções de gênero proposta pelo Feminismo (as quais são substancialistas, egotistas e culturalistas) e as doutrinas metafísicas do Pratityasamutpada/Originação dependente e do Anatman/não-eu, não estando ambas as elaborações no mesmo nível de análise/verificação (ver o post, aqui no site-blog: "Gênero e Metafísica Budista"). 

 

Vale lembrar que as primeiras monjas budistas reivindicaram "admissão na vida santa" ao Buddha Shakyamuni por motivos espirituais, não sócio-culturais ou o que mais o valha... 

 

Daí vem uma questão crucial: as mulheres modernas/modernizadas estão numa posição melhor ou superior àquela das mulheres tradicionais? (me refiro, por "tradição",  às tradições espirituais); ou a perspectiva moderna/pós-moderna é melhor para as mulheres, pois mais "liberadora" (ou menos restritiva)? 

 

Com efeito a mulher modernizada tem um campo de escolhas associado a determinados relatórios culturais que faculta a exploração de certas possibilidades, as quais, do ponto de vista dos relatórios budistas, significam um afastamento da posição que viabiliza as possibilidades vinculadas àquilo que, englobando, inclusive, todas as tradições espirituais, é chamado  Lei Eterna/Sanatana Dharma ou ainda, no caso específico do Budismo, Buddhadharma. A liberação que o Buddhadharma e as grandes tradiçoes espirituais postulam é interior-espiritual no sentido da Verdadeira Face (para o Budismo, passando pelas Quatro Nobres Verdades, a compreensão adequada dos ensinamentos sobre Anatman/Não-Eu e Pratityasamutpada/Originação Dependente) e da Kaivalya ou Moksha (Liberação)... 

 

Desconsiderando algum predomínio masculino que possa ter prevalecido e que ainda subsista na Tradição, - entretanto, não há homens sem mães, não há homens sem mulheres, nem virilidade plena sem feminilidade e, ainda, rastreando a situação de cada gênero nas tradições espirituais patriarcais, certos resultados se formaram em decorrência de situações como o envolvimento masculino em atividades como a guerra Então, o que na mulher tradicional pode ser uma condição ou resultado superior e compensar o abrir mão de certas possibilidades no envolvimento com as posições culturais modernas/pós-modernas? 

 

Uma dignidade que vem de dentro para fora, uma comunhão com um valor que não é mundano nem uma mera reação a processos culturais, mas oriundo de uma construção interior/espiritual, como eu, pessoalmente, percebo nas mulheres budistas, nas hinduístas, nas minhas amigas católicas praticantes, nas mulheres judias... as essências espirituais estão disponíveis a todos, porém o suporte (e adesão a) de um corpo de doutrinas e conhecimentos metafísico/éticos é necessário (além da transmissão). 

 

Se a modernidade/pós-modernidade reivindica 'liberdade' e 'novos rumos', na Tradição continuamos objetivando uma Liberdade Interior não apenas em relação ao mundo mas também em relação ao 'eu' (isto é, vivenciar a nossa verdadeira face, a nossa verdadeira natureza interior/espiritual).  Não é possível chegar a tal construção com convicções nihilistas. 

 

No final, eu não sou contra nenhuma reivindicação que comprove a sua legitimidade, que comprove ser justa ou ainda que, ao menos, comprove a sua legitimidade em algum nível - por exemplo ao nível da lei (e da vida) civil. 

 

Nem, por exemplo, causas envolvendo reivindicações de direitos legítimos das mulheres, dos homossexuais nem causas abrangendo reivindicações ecológicas. 

 

Todavia, em relação, aos "ismos" (por exemplo: Feminismo, Gayzismo e/ou Ambientalismo), não é adequado nem prudente, meramente, 'pegar o bonde andando' e ir, simplesmente, 'concordando e abraçando as coisas', como se os postulados fossem 'pacíficos e autoevidentes' - os debates culturais hodiernos são fortemente politizados e com atuações militantes; não se tratam de debates filosóficos normais ou de meras  'divergências de opinião'. 

 

Correta a posição que procura verificar as fontes, as intenções e os motivos (intenções/motivos reais, não meramente aqueles oficiais/propagandísticos ou para divulgação pública/popular), as nascentes e derivações destas - e de quaisquer outras  - posições; correta a postura que procura verificar a veracidade de uma posição: se há idoneidade por parte dos indivíduos envolvidos num determinado projeto/bandeira ou astúcias/malícias, falácias, mentiras  e falcatruas. É necessário verificar, também: os pontos de vista contrários/discordantes, as objeções e ressalvas, os pontos de vista convergentes,  a posição e testemunhos de dissidentes/ex-militantes e por aí vai... 

 

Simplesmente 'abraçar as coisas' ou se por a 'carregar o que está passando' (isto é: sendo divulgado) é uma postura na qual incorremos adentrar por uma comprometedora ingenuidade e cair numa armadilha...

 

Em continuação, essa de coisa de 'não aceitar críticas' (e inviabilizar, demonizar os debates normais), mesmo quando as críticas são fundamentadas em fatos... há algo de suspeito e errôneo neste andamento. Se eu tenho a verdade, se a posição da minha adesão é verdadeira... por que não me digno defendê-la ante contestações e pareceres divergentes/dissonantes? por que quero encerrar todo e qualquer debate sério? ]

   

 

Já tenho apontado no  post “Em quê crêem os budistas? Não dualidade e os cristãos” a convergência do Budismo inicial e de desenvolvimentos do Budismo Mahayana com a contrapartida da Tradição Védica, isto é: a coadjuvação de deuses do panteão hindú em desenvolvimentos da sabedoria e metafísica budistas, a saber: Brahma, Indra (Sakra, páli: Sakka), Prajapahti e Yama, além dos Yakshas (amigos do Buddha – como Digha -, outros yakshas tentaram estorvar o caminho do Buddha), Nagas e Devattas (deidades diversas) bem como Mara, o Maligno (Ahi Vitra Namuci dos Vedas, “vencido por Indra e Agni-Brhaspati, porém, jamais morto”...); consta também, no Jataka, que Shakyamuni, num de seus nascimentos, foi um Brahma. No Mahayana aparecem Mahakala (Shiva=Bhairava=Mahadeva), Tara (Tara devi/Durga devi/Nilasaraswati devi), além de Kali (Palden Lhamo/Mahakali), Vinayaka (Ganesha) e Uma (Uma devi). Naquele post tenho apontado, também, que o Budismo não refuta nem descarta a informação espiritual oriunda da tradição hindú – por exemplo: aquela contida nos Puranas; antes confirma tal informação, tendo desenvolvido um corpo doutrinal se valendo da absorção/assimilação também da mesma.

 

Observe-se que a convergência do Buddhadharma com a Tradição Védica é em relação à sua contrapartida - e não propriamente com o seu desdobramento cultural/exterior, com o qual o Buddhadharma haveria de disputar e, em muitas oportunidades, sobrepujar, angariando conversões e a expansão do Buddhadharma em território propriamente indiano -, no êxito e expansão do Buddhadharma na sua nação de origem.

 

Há também a convergência do Vajrayana não apenas com a contrapartida da Tradição Shaiva (ambas as tradições, em suas metafísicas, objetivam a realização do Nirvana, do Vazio/Shunya e da Clara Luz) – inclusos nessa relação, além de Mahakala e Vajrakilaya (Shiva=Bhairava=Mahadeva) e Tara (Tara devi/Durga devi), Vajrayogini, Nilasaraswati (Tara), Kurukulla (manifestação de Kali no tantrismo hindú, atribuída a Tara no Vajrayana), Vajrakhrodikali (a Irada Dakini Negra, Throma Nagmo, a Kali budista - Kala Bhairavi/Kala Shakti no Shaivismo), bem como Palden Lhamo (Mahakali) e Heruka (Rudra)  [*], entre outros; mas em uma relação de proximidade efetiva, em diversos momentos, das duas tradições, situação que se mantém no Nepal, onde shaivas e budistas se visitam mutuamente e, não obstante, em território hindú, alguma diferença que possa ter ocorrido, historicamente, entre o Vajrayana e algumas escolas shaivas. Deve ser lembrado ainda que Kali (Mahakali/Palden Lhamo), Yama e Mahakala são bodhisattvas dharmapalas (protetores, guardiães do Dharma). 

 

Vou desenvolver neste post, então, um pouco do que considero o neobudismo ocidental e que pode, desviando, conduzir os budistas a uma situação não apenas dissonante, ms com resultado  diferenciado - em outro nível, que não o metafísico tradicional. Já que, do ponto de vista do Buddhadharma, erros e desvios doutrinais/espirituais têm custos - a nível espiritual ou kármico.

 

[Nota: a relação de correspondência a que me refiro é Heruka-Rudra deva (a poderosa manifestação de Shiva), uma vez que na tradição vajrayana tibetana o termo “rudra” equivale (e designa) não a Rudra deva, mas, sim, a um andamento/direcionamento ruim no caminho Vajrayana, a uma falha e fracasso dos tântricos. Em termos hindús poderia se dizer que o que os tibetanos designam “rudra”, correponde, no Tantra hindú, a um resultado que podemos dizer, por ser falho e/ou fraturado, conduzente ao inferno Raurava. Raurava (serpentes) trata-se de um dos mundos infernais que tem a peculiaridade de absorver uma parte dos fracassados do Tantrismo. Outrossim, um Heruka Vajrayana é, por exemplo, Drukpa Kunley: um dos três Herukas/Loucos Divinos da tradição Drukpakagyu - uma ramificação da tradição Kagyu de Marpa, Milarepa e Gampopa. Em relação a Palden Lhamo/Shree Devi/Mahakali, há uma atribuição - por sinal a oficial - da Devi não a Kali devi mas a Saraswasti devi; já vi alguma documentação hindú/tibetana sobre o assunto mas ainda não cheguei aí... quando chegar, menciono aqui...] ...

 

 

- II -

 

 

CRÍTICA MODERNA COM VIÉS NIHILISTA - REDUÇÃO PSICOLOGISTA

 

 

Em linhas gerais, o Buddha Shakyamuni - fundador do Budismo -. nascido no nordeste da Índia, na cidade de Kapilavastu, na casta dos kshatryas, no clã da tribo dos Shakyas, como príncipe Siddhartha Gautama, praticou a religião regular de sua famíllia, qual seja: aquela vinculada à Tradição Védica, especificamente ao culto dos Yakshas e ao Agnihotra (ritual do Fogo). Antes de atingir o estado de Buddha, peregrinou por seis anos e tornou-se, primeiramente, um sramana (asceta renunciante), tendo estudado meditação com dois professores hindús de meditação notáveis e respeitados de sua época, a saber: Udrakka Ramaputra e Alara Kalama [*]. Após o período com Udrakka Ramaputra e Alara Kalama, praticou ascetismo juntamente com cinco ascetas (sramanas) no Bosque das Gazelas. Compreendeu que o ascetismo extremado não conduz o buscador a um resultado espiritual, primeiramente - e antes de tudo – objetivo, nem, tampouco, equilibrado. Atingiu o estado de Buddha meditando sob a árvore Bodhi e, verificando o resultado de seu descobrimento interior/espiritual, o agora Buddha Shakyamuni decidiu viver em silêncio, como sramana retirado do mundo, na bem aventurança de sua própria realização. Todavia, o deus hindú Brahma interveio, instando Shakyamuni que: “-O Dharma pregado na região de Maghada é uma doutrina impura, predicada por pecadores...”(Samyutta Nikaya VI-1 [**]),  ou seja, naquele momento a religião, na região em que vivia o Buddha, passava por uma situação de declínio e mesmo obscuridade (diversas doutrinas/visões errôneas e diversos buscadores presos ao materialismo espiritual - a noção egóica -, conforme narrativas detalhadas contidas nas escrituras budistas primitivas - ver em Digha Nikaya 2: "Os seis mestres do erro"), todavia Brahma asseverou ao Buddha que havia alguns buscadores capazes de assimilar e compreender o ensinamento e alcançar a iluminação; assim, instado por Brahma, o Tathagata decidiu anunciar o Dharma aos que estivessem aptos a recebê-lo - o que para o Budismo significa o "Primeiro Giro da Roda do Dharma".

 

[Nota: 
(*)  não há exagero em afirmar que Udrakka Ramaputra e Alara Kalama foram “professores hindús notáveis de meditação de sua época”. Do ponto de vista do ensino budista – os 31 planos de existência – tanto Uddrakka quanto Kalama atingiram resultados correspondentes a estados superiores sem retorno ao domínio da existência cíclica - condição de anagamins, sejam eles santos ascetas sejam santos bodhisattvas- , restando a consecução do buddhato (estado de Buddha) ou libertação final. Foram os dois primeiros a quem o Buddha Shakyamuni desejou transmitir o Buddhadharma, porém, quando da iluminação do Buddha, ambos os professores eram já falecidos.
 
(**) em "A vida do Buddha". Essa tradução é antiga e oriunda da obra de divulgação da Pali Society inglesa, traduzida do páli por Rhys Davids. Foi o primeiro livro budista que eu li e aprecio a redação brasilera].
 
 

Me pergunto a mim mesmo por que esses eventos da vida do Buddha Shakyamuni jamais foram refutados pelos budistas tradicionais indianos, chineses, tibetanos, japoneses, sulasiáticos (metafísicos não-duais e, por formação e estrutura, sábios criteriosos, conscienciosos e objetivos)? 

 

 

Afinal, era só riscar/omitir essas passagens das escrituras ou ainda alterá-las/revisá-las. 

 

 

No que poderia, doutrinalmente, interessar relatórios sobre alguma interação do Tathagatha com o Indra, Yama, alguns Yakshas ou com Brahma? - este último o exorta a pregar seu descobrimento interior/espiritual quando o Buddha tinha optado pelo retiro e o silêncio (ver Samyutta Nikaya 6, v. 1/Brahmayacana sutta).

 

 

Ou se os deuses hindús sentem contentamento com o surgimento de um buddha? 

 

 

Lembremos que o Buddha é o Vitorioso sobre Mara (o Maligno) e sobre a Ignorância (Avidya)... Aquele que pôs fim, em si mesmo, à existência cíclica (o samsara)... E o mestre de homens e deuses (Devas)... 

 

 

Que valor objetivo podem ter fatos não relacionados diretamente com a Iluminação? 

 

 

Os fatos não diretamente, não exclusivamente, relacionados com a Iluminação são periféricos - mas do ponto de vista de uma exposição pautada na veracidade das coisas, têm a sua contribuição na construção budista, no caso, quanto à verificação da Samvritti Satya/Verdade Condicionada; dessarte, são, também, complementares.

 

“O que não pode ser historicamente comprovado compromete a clareza e a objetividade”.

 

 

Isto é uma posição objetiva ou uma tentativa de ser agradável a um determinado temperamento ocidental?

 

 

O Buddhadharma não é uma tradição espiritual baseada no nihilismo. Há mais perdas nesta posição crítica do que ganhos (na verdade, não há ganhos, mas redução). Saímos do Caminho do Meio para um desequilíbrio doutrinal. Por um lado, a Iluminação é o fato essencial, nuclear e imprescindível; por outro lado, não possuímos, em nós mesmos, suficiente ascese interior-espiritual para enxergar todos os fenômenos (os trinta e um planos da existência - seis deles sujeitos à lei do karma -,  acerca dos quais, normalmente, enxergamos apenas os reinos humano e animal) descritos nas escrituras e documentos tracionais budistas - bem como em muitos Puranas hindús - acerca da Samvritti Satya/Verdade Condicionada e queremos interpretá-los como totalmente míticos e/ou psicológicos... 

 

 

"-O senhor, realmente, estudou o Zen-budismo?". 

Estudei e pratiquei (Soto-Zen) - mas há vinte anos atrás eu era apenas um jovem iniciante. Na verdade, nunca parei de estudar; entretanto, somente estudar os documentos zen-budistas corresponderá: 1) a uma erudição simplesmente ou 2) num resultado melhor,  a uma Jnana (Conhecimento essencial dos fundamentos da Metafísica e Psicologia budistas - o qual não é apenas erudição - e dos documentos da Escola Ch'an chinesa derivada de Bodhidharma - escola Zen no Japão). 

 

A Jnana é um requisito - auxiliando a compreender os fundamentos budistas (entre esses a Não-Dualidade, Vazio/Vacuidade, a Psicologia budista e a Iluminação); ela forma, juntamente com a Ética, o estofo, as fundações e colunas que uma construção budista hynayana ou mahayana, vajrayana ou zen-budista necessita, orientando, inclusive, a Prática budista (diria que a Jnana - para os budistas: 'Acumulações de Conhecimento' -  nos conduz até  a borda que deve ser percorrida pela Prática )- mas Jnana é um patamar necessário, não é, ainda, o objetivo final, o objetivo do Zen... 

 

 

O ensino Zen, focando o Buddhato (estado de Buddha), foca, também, nessa perspectiva, a Paramartha Satya (Verdade absoluta, Transcendental ou Final). O Zen objetiva o fato em si da realização da Iluminação, para a consecução do qual é imprescindível Ética, Jnana e Prajna. Prajna - como esclarecido pelo Buddha Hui Neng (ver: "A doutrina Zen da não-mente" de D.T. Suzuki), é essencial ao objetivo da Iluminação;  Prajna é adquirida pela Prática Espiritual ("Prajna é Dhyana [meditação-samadhi]; Dhyana é Prajna" - Buddha Hui Neng). E a Prática Espiritual budista - na maioria esmagadora dos casos - só é bem-sucedida estando devida e adequadamente estabelecidos Ética e Jnana - o estofo que, uma vez formado, faculta que atendamos à orientação do Buddha Hui Neng: focar, exclusivamente, em Dhyana e Prajna... 

 

Nalguns redutos ocidentais, ensinamentos budistas sobre a Samvritti Satya (Verdade Condicionada ou Relativa) estão sendo 'desligados'; e casos há em que as informações da Samvritti Satya estão sendo substituídas pela alocação de formulações e posições nihilistas. Esse ponto de vista - desligar a Jnana relativa à Samvritti Satya para alocar em seu lugar posições nihilistas - não foi formulado por nenhum buddha ou bodhisattva - nem mesmo pelo Buddha Hui Neng; antes, trata-se de um modelo de crítica propriamente ocidental e, ainda assim, modernista - e que, se levado às suas últimas consequências, conduz ao nihilismo mesmo acerca da possibilidade da iluminação (o fato principal, nuclear da pesquisa e ascese budistas). 

 

[Nota: Se o fanatismo religioso – bem como, também, a vigarice pseudo-religiosa - é uma doença a ser neutralizada; à sua vez, o nihilismo é bem recebido e acolhido no Ocidente moderno, embora não implicando em nenhuma melhoria interior/espiritual notável e, mesmo, implicando o contrário disto. 

O Tao está no Caminho do Meio... 

Uma das grandezas do Buddha Shakyamuni - e de outros buddhas - foi não nos ter repassado uma formulação doutrinal que habilitasse a inserção de posições nihilistas... 

Por certo, porque o Buddha estava preocupado em descobrir a verdade -  ao invés de, aproximando-se dela, mutilar o que não fosse de seu agrado pessoal/subjetivo. 

 

Para aceitar, 'habilitar' referenciais em acordo com a sensibilidade de quem adere a posições nihilistas, os budistas teriam que fazer certas concessões, como algumas alterações/reduções exigidas por tal sensibilidade e lógica -, que implicariam abrir mão de orientações doutrinais e metafísicas milenares contidas nas escrituras...

 

Então, teríamos um Budismo, para alguns, mais “palatável”, pois “adaptado aos tempos de hoje e à verdade científica” - entretanto, menos metafísico (pessoalmente, não tenho nada contra a Ciência ou contra os esforços científicos, embora, assim me parece, a Ciência se dedique ao estudo de uma determinada gama de aspectos do Universo manifestado  - moléculas, átomos, astros, galáxias, cálculos matemáticos, etc.). O "novo budismo" ou "neobudismo', então, seria algo isento de formulações consideradas ultrapassadas, mitológicas, religiosas e/ou desagradáveis - referentes à Verdade Condicionada ou Relativa (Samvritti Satya), entre essas, algumas verdades espirituais - que a adesão ao nihilismo não aceita e refuta - como, por exemplo, a existência de Terras Puras (Céus) e de Infernos – o que, de certa forma, no Ocidente, já é uma rejeição comum em relação ao âmbito judaico-cristão (rejeição - como 'histórias da Carochinha' para iludir ou assustar crianças - da possibilidade de Céu e Inferno).  

 

Seria o Neobudismo, adaptado às exigências ocidentais nihilistas: sem Terras Puras (Sukhavati, Tushita, Paraíso das Dakinis, etc.) sem infernos (Samjiva, Mahatapana, Kala Sutra, Raurava, Samghata, Arbuda, Utpala, Avici, etc. - cf. Abhidharmakosa, cap.3, de Vasubandhu e Suhrlleka, versos 77-80 de Nagarjuna, também Majjhima Nikaya 129-130), nem demônios (as classes de Maras como rakshasas, bhutas, pisachas, etc.) e nem habitantes - condenados - dos infernos; sem pretas (fantasmas famintos), nem asuras (semi deuses) nem devas (seres celestiais/anjos e deuses)... 

 

Afinal, tudo isto é ou “pura mitologia” ou formulações que devem ser interpretadas “estrita e exclusivamente a nível psicológico”.

 

Como se ter confiança nas informaçõpes acerca de Céus/Terras Puras e Infernos (e os seres naquelas possibilidades), a não ser pela boa fé nos ensinamentos dos Buddhas? Além da fé/confiança no ensinamento dos Buddhas, somente pela ascese interior-espiritual - a partir da qual podemos ter percepção e conhecimento direto dessas possibilidades... ]

 

 

Os budistas tradicionais dos três veículos (Hinayana, Mahayana e Vajrayana) não têm problemas com questões espirituais ou que, para a mentalidade modernista, demandam fé. 

E, aliás, não dá para dizer que Nagarjuna e Asanga, Tilopa e Padma Sambhava, têm fé. Depreende-se de suas obras que eles possuem vivência - seja ela interior, intuitiva ou espiritual - das questões sobrenaturais referentes à Verdade Condicionada ou Relativa (Samvritti Satya) abordadas em suas obras. 

 

A descrição budista dos Infernos e das Terras Puras (dezesseis infernos e incontáveis terras puras [*]  não é apresentada como temas míticos - ou, como pretendem alguns, 'histórias da Carochinha' para iludir ou assustar. 

 

O próprio Nagarjuna (Suhrllekha – “Carta a um amigo”), fazendo a descrição dos infernos, exorta a buscar os estados superiores/celestiais e a Libertação e, em continuação, a evitar os estados infernais/inferiores devido à restrição, privação e sofrimento que os mesmos implicam. 

 

Por que LUTAR POR ou ainda, doutra parte, SE ESFORÇAR EM EVITAR algo que não existe? 

 

Qual a finalidade de uma prevenção não-objetiva? Quê propósito teria tal conduta na "religião da paz interior, a qual é baseada numa aguda exatidão doutrinal"

 

Do ponto de vista do Buddhadharma, Céu e Inferno existem desde a perspectiva da Samvritti Satya  (verdade condicionada ou relativa) e são resultado das ações e da não-liberação da existência cíclica; Céu e inferno podem surgir aqui e agora, no curso das nossas vidas temporais e surgir também após a morte. Por que os budistas tradicionais nunca se preocuparam em modificar, corrigir/revisar, resumir ou mesmo refutar tais conteúdos? Somente os modernistas ocidentais...

 

[nota: as Terras Puras são reinos/paraísos búdicos - mas, também, no caso dos bodhisattvas, campos de Buddha (Vimalakirti Nirdesha sutra, cap. 1 - para cada bodhisattva que atinge o buddhato/Estado de Buddha, seu campo de Buddha se converte em Terra Pura; no Hinduísmo, cada  rshi, santo ou yogue não apenas está conectado às linhagens, mas no processo que logra culminar em elevações, formam hostes e miríades). 

As terras puras  são, dessarte, incontáveis. Entre as mais conhecidas dos budistas estão aquelas derivadas das linhagens dos Buddhas: Sukhavati (Buddha Amitabha), Tushita (Buddha Maitreya), Kechara (Vajrayogini e Heruka), Zangdok Palri ("Palácio de Lótus" do buddha Padma Sambhava), Shamballa (Kalachakra), etc.]

 

 

Eu não discordo que os seis reinos sujeitos à existência cíclica - assim como o estado de Buddha - estão em nós mesmos. 

 

Um homem ou mulher preocupados de fato com a possibilidade da iluminação, diligentes na prática, na doutrina e na discliplina estão formando o Buddha e o Nirvana dentro de si e, na sua regularidade e no resultado benigno ou exitoso da sua jornada espiritual, podem estar formando, também, Devas, Yakshas  e suas hostes, estabelecendo um Campo de Buddha e/ou integrando uma das Terras Puras conforme sua linhagem (isto espontaneamente e no interím de uma situação de êxito em seu processo interior/espiritual). No contexto vaishnava, a Garuda está se formando dentro de nós; no contexto cristão o Menino Jesus; no Taoísta a Flor de Ouro e a Criança de Cristal.  

 

Desde este ponto de vista, no nosso dia a dia, na forma como escolhemos viver as nossas vidas, as nossa decisões, as nossas ações, os nossos valores éticos, o nosso recurso pessoal/interior para ter uma visão de como pode ou deve ser a vida, o nosso êxito ou o nosso fracasso e escassez no que concerne ao interior/espiritual, os caminhos sinuosos/tortuosos ou ainda os rumos duvidosos e mesmo vis, doentios e tenebrosos a que resolvemos aderir, não apenas o Ceú/Terra Pura e o Inferno, devas e maras (bhutas, rakshsas, pisachas) estão sendo abrigados, estabelecidos e/ou formados em nós... mas também asuras, fantasmas famintos e animais podem estar abrigados e se desenvolvendo a partir do nosso interior, ser o karma que estamos gerando e desenvolvendo. 

 

A redução psicologista:

1) não aceita que o karma gerado possua não apenas efeito nesta vida mas um resultado post mortem, no além (Estados superiores dos Devas; estados de restrição do Petraloka(Mundo dos fantasmas famintos) e dos Infernos, 

2) Podemos, então, renascer somente como humanos ou, no máximo, como animais, mas não como um anjo, um fantasma faminto ou um demônio?

 

Por este andamento, o foco na Paramartha satya "desliga" ou "engole" a  Samvritti satya, logrando passar, sem revisão, apenas o ensino do Alaya Vijnana...

 

[nota: "resultados post mortem, no além", se refere, especificamente, a resultados não apenas como humano, como ser celestial ou como demônio, mas em qualquer dos seis reinos sujeitos à existência cíclica; metafisicamente, tais renascimentos podem ocorrer se a ascensão/elevação a estados sem retorno ou a liberação/iluminação não for atingida...]

 

 

O Buddha Maha Maudgalyayana (páli: Maha Moggallana) num de seus nascimentos foi um Mara – um demônio (cf. Majjhima Nikaya, 50) - e, no entanto, há quem afirme existir apenas homens e animais - todo o resto é psicológico. 

 

Eu não duvido que um demônio ou um fantasma faminto sejam resultado dos “venenos da mente”; mas vale ressalvar que aqui estamos tratando não do que o nihilismo pode considerar ou reputar como uma formulação equivocada ou mesmo uma falha cognitiva – e, destarte, de uma mera projeção psicológica baseada em crenças religiosas – antes, porém, da correlação Mente/Karma: justamente os venenos da mente propiciam o karma que gera demônios e fantasmas famintos, entre outras situações (as quais podem ser aflitivas ou não)... Um Asura [*] atingiu, no seu melhor resultado, um estado próximo ao dos Devas; conquanto numa posição privilegiada, há, porém, na condição de Asura, algum desvio da Sabedoria quanto à possibilidade de uma melhor Elevação e da Iluminação.

 

Resta saber, então, que sabedoria ou posição preferimos acolher e aderir: a tradicional ou a eivada de nihilismo... invariavelmente estaremos em uma ou em outra... e colheremos os frutos dessa escolha...

 

[nota: doutrinalmente os Asuras são indicados como  inimigos dos Devas (como, por exemplo, Indra); os Asuras são retratados como eivados de inveja em relação aos Devas e contenciosos e conspiradores contra as hostes celestiais; também procuram praticar austeridades e adquirir conhecimentos especiais e segredos, porém, casos há, apenas  no intuito de aumentar seus poderes psíquicos. Enquanto Indra - regente das hostes celestiais - se dirige a Shri Vishnu  ou, em certos casos, ao Buddha, os Asuras tendem a procurar imdependência e autonomia. 
 
Usarei a distinção entre posicionamentos que buscam as vias iluminativas - e por isso têm um compromisso ético (com a Luz) - e posicionamentos que desviam ou se distraem da preocupação com a Iluminação (e com a posição ética que a mesma requer) por desenvolver uma cultura preocupada com outras aquisições  - por exemplo: de poder e vantagens pessoais. 
 

Em termos ocidentais, os Asuras, na sua independência prometéica, são concorrentes ou inimigos dos Anjos e Arcanjos, tendo formado uma cultura com andamentos e reinado próprios. 

 

A característica dos Asuras é trabalhar, então, com o que é luz - mas a concorrência com os Devas lhes acarreta comprometimento e os coloca num patamar abaixo destes.  Nas vias iluminativas há um padrão ético -  o qual lhes é intrínseco, compondo seu alicerce e fundações -, que não pode ser negligenciado. Na medida em que este padrão não é observado, tais  recuos se transformam em restrições - não obstante as consecuções que possamos obter como conhecimentos especiais e poderes psíquicos.  

 

Os Asuras, na sua regra normal, também são divinos, mas  incorrem regredir, por usar o que lhes pareça mais conveniente e não ter receio em explorar as trevas. Sendo como que a sombra dos Devas, o principal problema com os Asuras é ético. 

 

E, com efeito, o antídoto para os Asuras é, realmente, simples: aderir - e por em prática - à ética das vias iluminativas... ]

 

 

As visões reducionistas/psicologistas têm sido aplicadas por alguns ocidentais à interpretação dos tradições orientais - em especial o Buddhadharma, o Tantra e o Taoísmo [*].

 
 
[nota: o Tantrismo, por exemplo, via espiritual entendida como não-dogmática – como se o Tantrismo carecesse de fundamentos doutrinais/espirituais e requerimentos admissionais (como o não admitr pessoas cruéis, impiedosas, autuadores gratuitos, retardados que não consideram devidamente as mulheres, retardadas que não consideram devidamente os homens, pervertidos, depravados ) – também é alvo de aplicações análogas, como a sua redução/restringimento, no Ocidente, a apenas Erotismo Sagrado - e mesmo assim, a grosso modo, "sexo tântrico" -, porém, sem o suporte de uma regularidade iniciática. 
 
Ainda o Erotismo Sagrado, por este alinhamento, também é alvo de redução e rebaixamento ao mero uso de algumas técnicas a serem utilizadas por qualquer pessoa, sem observação dos critérios tântricos e, nalguns casos, com adição/inserção de elementos eróticos que o Tantra, tradicional e milenar, não agrega (o Tantra não é Kama Sutra nem pornografia, tampouco alguns resultados da sexual liberation ocidental ).  
 
Temos a situação de pegar do Tantra somente aquilo que possa interessar, descartando a sua metafísica, por ser elaborada, sutil e refinada demais - como a do Shaivismo do Kashmir/Cashemira (Vasugupta, Abhinavagupta, Ksemaraja, etc.) - bem como, por ser a sua regularidade iniciática considerada exigente demais (isto se repete no Vajrayana , onde o requisito para a transmissão dos ritos é o treinamento adequado em metafísica e ética budistas, sendo perceptível um certo mal-estar, desaprovação e compaixão por parte dos preceptores tibetanos quando se fala em Tantra sem mencionar a importância da necessidade preliminar de treinamento nos ensinamentos metafísicos e éticos bem como práticas de purgação, limpeza/redução de impurezas mentais e karmicas). 
 
Embora - onde os desvios e descartes não são demasiado exagerados - os resultados não sejam nulos (realmente não são nulos; eu, porém, não estou aqui para impor ou dizer o que as pessoas devem ou podem fazer; a meu ver, se as nossas decisões são bem fundamentadas, as nossas vidas podem ir num caminho melhor; cada qual, porém, é responsável por si e por suas decisões e ações...) tais resultados na "religião do sexo" (o neotantrismo) não são nem serão equivalentes àqueles viabilizados pelo Tantra na sua via tradicional e na integralidade dos seus meios - dentro da perspectiva NIRVANA-SHUNYA (VAZIO)- CLARA LUZ- BRAHMAN - e incluindo o Kundalini Yoga, posto que o Tantra trata-se de uma via iluminativa... ]

 

 

Lamentavelmente, mal essas tradições espirituais foram recebidas no Ocidente já estão sendo modificadas/alteradas e, infelizmente, reduzidas? 

 

Não seria melhor desenvolver homens/mulheres sagrados (Taoísmo) e buddhas e bodhisattvas (Budismo), Viras/heróis e Divyas/Divinos (Tantra) primeiro? Alcançar primeiro os resultados respectivos do Taoísmo, do Buddhadharma e do Tantra?[*] 

 

O problema é que, se começamos errado – aceitando erros, desvios e distorções doutrinais e espirituais – não só no Buddhadharma: no Taoísmo, no  Shaiva Tantra, no Yoga, no Vedanta, no Vaishnavismo, no Cristianismo, no Judaísmo, no Islam... vai ser difícil chegar a um resultado benigno pois, na verdade, ao invés de luz o que plantamos é sofrimento para nós mesmos e, não raro, para os outros [*]. A meu ver, estando alguém vinculado a uma tradição espiritual, o resultado benigno é necessário... Viver nossas vidas pessoais honradamente, da melhor maneira que possamos - mesmo que nossas vidas pessoais não correspondam a um mar de rosas ou de felicidade temporal, tampouco a um equilíbrio incontestável, sem oscilações/ondulações nem desníveis -, e gerar, trazer luz para a vida cotidiana ...

 

[nota: os americanos, - especificamente as comunidades alternativas/esotéricas - almejaram o surgimento de um buddha americano – vide, por exemplo as empolgações do visionário New Age (e sinistro/mau conselheiro) Ken Wilber -, mas o resultado dos malucos praticantes de Kundalini Yoga e adeptos de desenvolvimentos mediúnicos ficou entre o decepcionante e o maléfico (forçando Ken Wilber a recuar e admitir falhas significativas - para alguns a queda vergonhosa de algumas divulgações ostensivas de Ken Wilber foi surpreendente; para os tradicionalistas e ortodoxos foi normal e consequente)...
 
Não basta ler/estudar os documentos tradicionais e sair praticando. Ou desviar de um início correto – uma regularidade normal e efetiva no Yoga, por exemplo - para uma continuidade duvidosa, movediça, tortuosa e/ou subjetiva. Não há como crescer com a Sabedoria e os conhecimentos das tradições espirituais sem transmissão, ortodoxia e regularidade...] 
 

 

 

- III -

 

ANTITEÍSMO.

 

As tradições espirituais possuem, cada uma delas, o seu provimento doutrinal e espiritual e as suas peculiaridades; em decorrência disto, também a sua forma de avançar em direção a um objetivo espiritual. 

 

A maneira de avançar no Shaiva Tantra obviamente que não é a mesma maneira do Cristianismo; porém nem uma nem outra são falsas mas, de fato, diferentes. Há, contudo, pontos de encontro simplesmente surpreendentes - como salientado por Hugh B. Urtban, no seu livro "Tantra: Sex, Secrecy, Politics, Enlightnment and Power" acerca de uma anotação de Sir John Woodroffe:

 
Longe de serem rituais depravados e licenciosos, as práticas dos Tantras são, para Woodroffe, não diferentes em essência dos rituais cristãos tradicionais. Não apenas Woodroffe deseja encontrar paralelos entre os Tantras e a Ciência Moderna, mas ele também parece ter um persistente desejo de encontrar paralelo  [entre fundamentos dos ensinamentos tântricos]  com as tradições da Igreja Católica. 
Como cuidadosamente preservada, a antiga liturgia da igreja [a missa tradicional], Woodroffe sugere, que os Tantras tem preservado ao longo dos séculos, uma tradição ritual elaborada, cujo verdadeiro objetivo é, não para incitar os sentidos físicos, mas sim para despertar ideais espirituais mais elevados.
 
 
[nota: no Tantra há muiras escolas e muitas vias; poderemos encontrar a via totalmente despojada e sofrida de Kapalikas e Aghoris itinerantes, bem como a via dos dos Kaulas, dos Viras/Heróis, e dos Divyas/Divinos; para a Via dos Divya/divinos, por exemplo, penetrar a essência dos fundamentos metafísicos do Tantra é absolutamente necessário...]
 
Na passagem seguinte, bastante notável, Woodroffe vai ao ponto de comparar a liturgia católica, ponto por ponto, com um ritual tântrico, identificando elementos rituais específicos, com correspondente termos sânscritos:
 
"Então, como declarou o Concílio de Trento, a Igreja Católica, rica com as experiências de eras e vestida com seu esplendor, introduziu a bênção mística (mantra), incenso (dhupa), água (àcamana), luzes (dípa), sinos (ghaja), flores (puãpa), paramentos e toda a magnificência das cerimônias para excitar o espírito da religião para a contemplação dos profundos mistérios que eles revelam. Como são seus fiéis, a Igreja é composta tanto do corpo (deha) quanto de alma (àtma). Ele presta ao Senhor (Ishvara) dupla adoração, externa(bàhyapujà) e interna (mànasapujá), sendo essa última a oração (vandana), cheia de fé. Sir John Woodroffe

 

 

 

 

Desejar que as tradições espirituais fossem equivalentes no seu todo é querer demais, é não aceitar a realidade: as tradições espirituais se encontram por cima; do ponto de vista temporal e nas suas bases sem elevação elas podem inclusive, se contrapor umas às outras. 

 

Qualquer aproximação entre as tradições espirituais é a partir do real, nunca do ideal ou do irreal. E, todavia, não estamos em universos/compartimentos fechados, estanques ou isolados; a visita oportuna – obviamente – dos tântricos para os cristãos pode ser benigna para os cristãos; assim também a visita oportuna dos cristãos pode ser benigna para os tântricos; e a visita oportuna dos teístas para os budistas - e vice-versa - pode ser benigna em si, para visitantes e visitados ...

 

 

Algumas colocações antiteístas parecem sugerir a impossiblidade de aproximação do teísmo com o Buddhadharma, repelindo a visita dos teístas, - o que além de ser lamentável (só a Igreja Católica recebeu, nas dependências das igrejas, o Theravada, o Zen e o Vajrayana além do Yoga) - carece de fundamentação espiritual e metafísica, pois, de fato, como supramencionado, as tradições espirituais se encontram por cima (observação não apenas minha, tampouco original, mas de muitos que se debruçaram a estudá-las). Assim como os ateus são benvindos à sala de meditação ou para – se quiserem – rezar conosco, igualmente o são os teístas (cristãos, judeus, shaivas, vaishnavas, islâmicos); tentar afastar ou restringir os teístas é qualquer coisa sem sentido e a sua visita pode ser benigna para os budistas. 

 

Se eu tentasse, porém, demonstrar algumas analogias entre o Catolicismo e certas manifestações de Budismo Hinayana e Mahayana (já que os santos e místicos cristãos, também, foram ascetas)- os anti-teístas se apressariam a dizer - como sempre - que o Budismo “não crê em Deus” ou “não crê em um Deus Pessoal Criador”; os budistas ponderados me lembrariam que o desenvolvimento do ascetismo cristão e o do budista é diferente - de fato os Padres do Deserto, por exemplo, se retiraram do mundo para alcançar uma vida mais aprofundada em Cristo – e, pelos testemunhos documentados, alcançaram-na. Já os budistas se retiraram para, efetivamente, desenvolver, realizar os dhyanas (páli: jhanas) e insights respectivos - com vistas à Iluminação. Entretanto, deve ser salientado que, no contexto cristão, Cristo, através do Conhecimento Unitivo, é a Liberação/Kaivalya - a diferença, então, se  existe, é menor do que podemos deduzir. Em continuação, a comparação correta entre a Trindade cristã e o Buddhadharma não deve se prender ao entorno teológico mas às contrapartidas: da perspectiva das contrapartidas, a correspondência correta é entre Trindade cristã e Trikaya budista. 

 

A resposta - por ser resumida demais e se assemelhar a uma resposta nihilista (e, nestes termos, de certa forma ser uma “não-resposta”) - dos antiteístas é equivocada; esquecem ou negligenciam que o Catolicismo, diferentemente do Protestantismo, é uma tradição espiritual não apenas com um corpo de misticismo profundo mas com uma liturgia autêntica e eficaz .

 

[nota: embora relegada, a liturgia tadicional, pelo Concílio Vaticano II, o qual forçou a Igreja, como um todo, a encostar/abrir mão de uma de suas melhores possibilidades espirituais reais - a liturgia tradicional - , comprometendo a eficiência de uma tradição espiritual que tem como uma de suas bases/pilares, justamente o sacerdócio.

Com efeito, tendo abrido mão da liturgia tradicional, o Catolicismo atua, hoje, com uma possibilidade excelente a menos e os resultados, no que concerne à vida espiritual da Igreja, são, em muitos casos, simplesmente devastadores - já que a “nutrição” da liturgia tradicional fortalecia a Igreja... Quanto ao meu deslocamento pessoal da tradição cristã para a tradição budista, basicamente, em decorrência do falecimento do padre Joaquim, em cuja paróquia - igreja Nossa Senhora do Carmo -  eu participava da missa tradicional, as pessoas que o sucederam entenderam por bem descontinuar a liturgia tradicional e aderir às diretrizes do Concílio Vaticano II, o que eu apenas tenho a lamentar (verdadeiramente uma porta que era benigna à Igreja foi fechada )- e no que não pareço ser o único: a frequência às missas da igreja decaiu brutalmente, se reduzindo a mui poucas pessoas, sendo que a maioria se deslocou para a missa da igreja do Mosteiro de São Bento... Não sou propriamente contra a nova missa (na verdade, participei da mesma muitas vezes); sou contrário à demissão da missa tradicional... ]

 

 

Já a resposta dos ponderados é razoável e busca fundamentação metafísica... porém fica sem formulação, em ambos os casos, a questão de o esforço espiritual cristão ter nos dado resultados efetivos, onde mesmo um Julius Evola [*]- insuspeito de ser “pró-cristão”-, por exemplo, admite - e valida - não apenas a mística profunda alemã e Meister Eckhart mas também São Boaventura (enquanto que Rene Guénon, por sua vez, valida também a liturgia tradicional e vê o Catolicismo Aprofundado não como parte do exoterismo cristão, mas como a tradição cristã - e, com efeito, razão assiste a Guénon: a possibilidade que falta ao Protestantismo -  e o limita - não falta, todavia,  ao Catolicismo  - Jnana/Conhecimento - um corpo de doutrinas, transmissão oral e ensinamentos objetivando a ascese interior/espiritual - e Prajna/Sabedoria -  a Bem Aventurada Virgem (traduzido em termos budistas: Tara ou Prajnaparamita)-, além do Catolicismo possuir regularidade com a Sucessão Apostólica e com a Igreja Primitiva/Concílios ecumênicos, devendo ser desconsideradas, nesse respeito, as impugnações dos protestantes cujas igrejas - no âmbito britânico por exemplo - foram fundadas pela nobreza/Estado em decorrência de conflitos de interesses específicos entre nobreza e  clero católico ...).[*]

 

 

O fato é que o teísmo tradicional, como um todo – e, obviamente, numa situação de idoneidade, regularidade, ortodoxia, zêlo e empenho – é espiritualmente efetivo e eficiente.

 

Não apenas em relação ao Catolicismo, mas às outras tradições espirituais não-budistas, antes de invalidar ou abordar a formulação do outro como se a mesma não possuísse resultado válido, teríamos de ser capazes, efetivamente, de:

 

- localizar, identificar onde um santo, místico ou iluminado de outra tradição espiritual está, na sua realização interior/espiritual, em relação aos 31 planos da existência. Esta seria uma medida de aferição justa, válida, idônea. Talvez surpreendesse encontrar espirituais cristãos nos estados sem retorno, uma vez que uma das características marcantes do Cristianismo tradicional é justamente a absorção sem reservas em Cristo... As doutrinas budistas acerca dos bodhisattvas e arhants bem como das diversas classes de devas, assevera  a possibilidade de elevação/ascese a estados com retorno e sem retorno, sendo o estado de Buddha a instância última...

 

 

Nesta mesma linha de compreensão, verifica-se a dificuldade de alguns em traduzir a tradição espiritual alheia. O que não espanta, haja vista ser perceptível, também, em alguns budistas, uma atitude refratária em relação ao Simbolismo tradicional. Tal rejeição ou descarte aumenta a dificuldade em traduzir a língua do outro. Asseverar a impossibilidade de qualquer aproximação comparativa entre o papel desempenhado por Mara no Buddhadharma e por Lúcifer no Cristianismo é  contradizer ou ignorar  o que informam as narrativas contidas nos documentos budistas e cristãos; no caso, eventualmente, pretender que a tradição cristã não possui validade objetiva ou ainda efetividade espiritual é algo destituído de  fundamento e denota incompreensão do objeto.[*]

 

[nota:  embora a Igreja não tenha preservado o padrão de eficiência - na sua vida espiritual - havido até a Idade Média e sofra, maiormente, com algumas das alterações promovidas pelo Concílio Vaticano II, as quais mutilaram, descontinuaram a instrumentação espiritual disponível aos católicos, equiparando a Igreja ao nível dos protestantes - ou seja, ao nível da via mística com Cristo, porém, sem aquelas posições tradicionais que facultam uma maior abertura ou aprofundamento na via unitiva em Cristo, bem como aprofundamento  na compreensão do alcance espiritual da tradição cristã... ] 

 

Se nos esforçarmos um pouco e buscarmos fontes confiáveis (e idôneas), podemos compreender melhor o mundo do outro e, inclusive, compreender a nós mesmos (verificar o motivo e a validade das nossas próprias aversões e desprezos). Seja como for, eis que cada tradição espiritual é, com efeito, uma tradução da possibilidade interior/espiritual; o seu melhor encontro é por cima; e compete a cada qual verificar, em si mesmo, qual tradução lhe casa melhor....O equívoco - espiritual e metafísico - é insistir em querer  identificar a tradução cristã tradicional como não integrante das vias iluminativas, como não sendo uma parte da família...

 

O Buddha Shakyamuni, nascido e criado na Tradição Védica, e, ao que algumas evidências indicam, conhecedor da tradição tântrica, não impugnou-a mas, antes, impugnou erros doutrinais e espirituais; corrigiu brahmanes; refutou o dualismo não como um todo [*], mas no seu aspecto limitador e insuficiente para a pesquisa interior/espiritual profunda, radical (no sentido de se buscar a raiz das coisas) e, como já mencionado neste post, não tendo advogado, em tempo algum de sua jornada terrena, a abolição de nenhum culto, rito ou religião autênticos, verdadeiros, legítimos. Tampouco pregou o nihilismo – antes defendeu-se da acusação de difundí-lo tendo, também, refutado-o...

 
[nota: A questão Dualismo, Dualidade e Não-Dualidade envolve não apenas a questão de Verdade Última, mas também da vocação humana; não adianta repassar a perspectiva Não-Dual para quem não possui vocação ou aptidão para a mesma. Há a questão, também, que nem todos têm aptidão para Metafísica e Lógica, para apreender - intuitivamente e intelectualmente - , por exemplo, no âmbito do Buddhadharma, o Mahayanavimsaka ou o Mulamadhyamikarika, ambos de Nagarjuna. No entanto, uma base válida - e consistente - pode ser adquirida com os ensinamentos espirituais e éticos pronunciados por Nagarjuna na Ratnamala e na Surllekha - publicadas no Brasil como "Grinalda preciosa" (Rajaparikatha Ratnamala)  e "Carta a um amigo" (Surllekha). A característica do Mahayana foi ampliar a abrangência do Buddhadharma, o qual realmente, pelos seus requerimentos iniciais, não se tratou de uma formulação que pudesse ser absorvida pelas massas. Todavia, as massas também precisam de "alimento', de oportunidade espiritual legítima, de possibilidades que viabilizem uma construção interior/espiritual verdadeira - um 'alimento' adequado à aptidão de cada qual, válido, efetivo e autêntico, pautado na veracidade... Ao final, Metafísica sem Ética - bem como Lógica (no âmbito das tradições espirituais) sem levar em conta Ensinamentos/Orientações doutrinais de ordem espiritual - podem resultar em desvio ou erro, fracasso ou colapso...]  
 

 

  

- IV -

 

ATEÍSMO.

 

Muito do que eu poderia dizer sobre a relação Ateísmo/Buddhadharma, já o tenho feito no post “Em quê crêem os budistas? Não dualidade e os cristãos.”. Aqui, então, posso lançar somente alguns acréscimos, uma vez que se trata de questão doutrinal, podendo repetir-me um pouco. Destarte, peço desculpas se algum leitor, eventualmente, cansar com alguma reiteração minha.

 

Tendo convergência com a contrapartida da Tradição Védica, o Buddhadharma, entretanto, desde o seu início, evita a posição eternalista e a sua possibilidade com o dualismo. Daí o Não-Teísmo budista - em prol da posição Não-Dual, pela Paramartha Satya, a Realidade Última -, bem diferente do Ateísmo, o qual está fora do Caminho do Meio/Madhyamika [*].

 

[Nota: Caminho do Meio/Madhyamika. Nem Eternalismo - posição afirmando a eternidade do mundo e, portanto, a cisão não como desconhecimento/ignorância mas como uma condição de fato, um dualismo indissolúvel, inalterável e intransponível -; nem Nihilismo – a negação das possibilidades suprahumanas, infrahumanas e mesmo da Realidade Última (o Charvaka/Nastika hindú formulou esta posição). ]

 

 

O Buddhadharma, dado o seu caráter Não-Dual, tem a sua experiência objetivando a Realidade Última.

 

Enquanto o Buddhadharma enquadra, refuta e rejeita o dualismo – por insuficiência, parcialidade e limitação para a pesquisa interior/espiritual -, o Ateísmo ocidental, por exemplo, nega, ao menos na sua formulação linguística, a totalidade do Cristianismo - o valor do sacrifício vicário de Cristo, a possibilidade da existência dos anjos, dos demônios, do Empíreo (céu espiritual) e do Inferno, o Espírito Santo e a santidade dos santos, a possibilidade de salvação (traduzido em termos budistas: a possibilidade dos cristãos praticantes alcançarem uma Terra Pura ou Paraíso cristão) -, chegando a enxergar o Cristianismo como algo apenas útil, se muito, para “auxílio na formação moral das massas” e no cuidado com obras sociais ou de caridade; nos casos extremistas, a caracterizar o Cristianismo como “retrográdo” e mesmo “fraudulento” e “maléfico” descartando, nas suas considerações, qualquer resultado de ordem espiritual, mesmo aqueles efetivos, significativos que a tradição cristã possa ter trazido à humanidade, nos remetendo ao domínio meramente verbal, racional-discursivo, amputando considerações de ordem espiritual, mesmo aquelas com factualidade histórica, como por exemplo: a existência histórica de santos e místicos bem como das obras que acompanharam suas vidas; a ocorrência de milagres notórios como o da Dança do Sol, nas aparições da Bem Aventurada Virgem em Fátima/Portugal, evento testemunhado por cerca de 50 mil pessoas, etc.

 

 

Poderia ser suscitado se o Buddhadharma - o qual, em todas as suas escolas, afirma a Originação Dependente/Pratityasamutpada e o Caminho do Meio/Madhyamika - enquadrando tanto o Eternalismo quanto o Nihilismo - aceita, por exemplo, a divindade de Cristo.

 

Diria que o Buddhaharma vê Cristo como um Buddha e compreende que os cristãos tomam refúgio em Cristo - como, analogamente, os budistas mahayana tomam refúgio em Amithaba – inclusive aqui, levando-se em conta a distinção entre tariki (poder do outro – elevar-se através da transferência de mérito de Amithaba) e jiriki (poder próprio - elevar-se pela ascese pessoal/individual) – elaboração não contestada por nenhuma escola budista. Como já tenho observado, no caso, uma posição como a ateísta, do ponto de vista do Buddhadharma, trata-se de nihilismo, pois envolve, na sua posição mais extremada: A negação da possibilidade do resultado das ações aqui e post mortem/além, a negação da possibilidade de desenvolvimento espiritual através da ascese e da santidade (comum a todas as tradições espirituais), bem como a negação da existência de planos divinos/superiores (Paraísos, Terras Puras) e inferiores (Infernos, mundos de privação/restrição), a negação da possibilidade da iluminação e do Nirvana.

 

Poderia ser suscitada, também, a questão - relevante para os teístas - quanto ao Buddhadharma aceitar a existência ou não de um deus criador. 

 

Por um lado, o Buddhadharma é uma tradição espiritual não-dual e focada na liberação e/ou iluminação - onde o estado de buddha é o estado final. Na visão não-dual o universo não tem princípio nem fim[*]. Por outro lado, uma parte importante do conjunto da informação espiritual desenvolvida pelo Buddhadharma é a mesma do Hinduísmo, não tendo havido, historicamente, contato ou encontro do Buddha com a tradição judaica e sendo sua vida anterior em cerca de 500 anos à vida histórica de Cristo. [*].  Vale lembrar que São Paulo, apóstolo, quis evangelizar na Ásia (no caso, na Pérsia e na Índia) “mas o Espírito Santo não lho permitiu...”. Livro de Athos, XVI-6. Verificando a documentação budista é improvável que o Buddha Shakyamuni – ou ainda outros buddhas como Nagarjuna, Asanga, Padma Sambhava, Amithaba, Tilopa, etc. - fosse infenso a Cristo ou o considerasse uma figura espiritual de menor importância. Nestes termos, do ponto de vista do Buddhadharma, Brahma é o deus criador; atentemos que, inclusive em relação à Originação Dependente - pois um budista, mesmo um estudante, pode, com propriedade, observar que: “os mundos provêm do karma”, - é necessário, porém, observar que dentro da concepção do karma a função de um Brahma - assim como a de um Indra, a de um Yama, etc - é fixa e consiste em criar mundos (e a Indra compete reger e coordenar as hostes celestiais; já a Yama, julgar retamente, idoneamente bem como conduzir os mortos ao seu quinhão justo). Inclusive o mundo em que estamos agora tem o nosso Brahma. E, também na informação espiritual atinente ao Buddhadharma, existem – como não poderia deixar de ser - incontáveis Brahmas: Brahmas de mil mundos, de cinco mil mundos, de dez mil mundos, de cem mil mundos... (cf. Majjhima Nikaya, 120).

 

[nota:  Existem estudos acerca da possibilidade de Cristo ter-se deslocado ao Kashmir e entrado em contato com o Buddhadharma - e também de missionários enviados pelo rei budista Ashoka terem chegado não apenas à vizinha Pérsia mas ainda à Judéia e à  Grécia - portanto haveria alguma influência de ensinos budistas em Jesus. Tais estudos são tentativas de alguma reconstituição histórica do que possa ter ocorrido de fato, porém ainda são necessárias mais evidências e elementos materiais/documentação que lastreiem essas considerações.]

 

Ainda, e por fim, do ponto do vista do Hinduísmo e do Buddhadharma, Cristo pode ser considerado, também, um Devaputra (filhos dos Devas, filho dos Céus, filho da Divindade), bem como Narayana (Hinduísmo) ou ainda - reiterando-me - um Buddha.

 

[Nota: no que concerne a divindades como Brahma e Yama, por exemplo, é necessário lembrar que há um corpo de doutrina interior (ou secreto) – acerca da Libertação – e que se encontra formulado, por exemplo, nas Upanishads (Brihad Aranyaka Upanishad, Chandogya Upanishad, Katha Upanishad, etc., sendo que Yama desempenha, ainda, papel relevante no Vajrayana). A exposição budista sobre os devas e sua natureza demonstra não apenas a posição espiritual dos devas (nos estados mais elevados/sutis dos 31 planos de existência) mas também o sofrimento das classes de devas que se encontram situados na roda do samsara (abarcando os seis planos sujeitos à existência cíclica, onde a roda permanece girando), não raro, em decorrência de distrações ou deslumbres com sua realeza ou ainda em decorrência do esgotamento de um karma que resultou num estado superior sujeito a retorno ...]

 

Concluindo, as objeções ou refutações do Buddhadharma acerca da posição Eternalista - na qual se pode encontrar uma parte substancial do posicionamento Teísta (embora os teístas, não necessariamente ou não na sua integralidade sejam dualistas) e mesmo o Sâmkhya de Kapila se baseiam em postulados metafísicos: shunyata/vacuidade, anithya/impermanência, anatman/não-eu, pratityasamutpada/originação dependente, paramartha satya/verdade absoluta ou suprema - e não na convergência com postulados materialistas ou nihilistas.

 

Pessoalmente, não tenho nada contra os ateus – nem que alguns deles procurem as tradições espirituais orientais (eles são benvindos). Tenho amigos ateus a alguns deles ssempre me a´presentam seus questionamentos. Eu também atormento meus amigos: explico que o ateísmo 'resseca' as pessoas...

 

 

- IV -

 

 

REENCARNAÇÃO e CARMA (subentendida a ideia de evolução espiritual).

 

A teoria difundida no Ocidente - divulgada por socialistas franceses (ao que tudo indica, com alguma formação esotérica ou ocultista) por volta do século XVIII e continuada a sua propagação por ocultistas e espiritualistas - chegando ao mundo budista suscitou a seguinte reflexão: Reencarnação (e a ideia subtendendida de evolução espiritual) ou Renascimento?

 

A ideia de alguém morrer e seu substrato pessoal/interior passar de um corpo para outro corpo bem como a ideia de que as almas evoluem espiritualmente dentro do karma (ou carma) é metafísica e espiritualmente sem fundamento, inconsistente e aprisionadora.

 

Do ponto de vista do Buddhadharna não há reencarnação no sentido biológico nem no sentido psíquico de uma substância interior passar de um corpo para outro corpo; o que existe é originação dependente. Então, o que renasce é um nome-forma devido, primeiramente, à identificação dos cinco skhandas (rupa: forma/corpo; vedana: sensações/sentimentos; samjna: percepções; samskara: formações mentais; e vijnana: consciência) ou agregados psicofísicos com um 'eu' permanente – nessa identicação a possibilidade do egotismo é corolário lógico, consequente e subsequente; em continuação, não se percebendo nem se verificando que os agregados psicofísicos não são nem isoladamente nem em conjunto um 'eu' permanente, substancial não é possível encerrar/neutralizar o renascimento; não é possível perceber, como no Sutra do Diamante (Vajrachedikka sutra) que: “o pensamento passado não se atinge... o pensamento futuro não se atinge... o pensamento presente não se atinge...”, dá-se o prosseguimento na existência cíclica, na roda do samsara, com coadjudivação do karma acumulado, gerado e/ou pendente - daí Nagarjuna exortar que as ações virtuosas e o desprendimento/desapego interior valem mais que as ação não-virtuosas e/ou egoístas (“Ratnamala", em português com o título “Grinalda Preciosa”). Um karma virtuoso associado à busca da verdade, vale mais que um karma virtuoso sem tal associação e busca; vale mais que um karma virtuoso associado a caminhos sem elevação, tortuosos ou espúrios; e vale mais que um karma aflitivo onde, estando o mesmo associado à busca da verdade, todavia haverão dificuldades, adversidades e restrições. Também um karma aflitivo nem sempre poderá significar superação efetiva mas, dependendo das condições, impedimentos e aflições de difícil ou dificílima transposição podem ocorrer e mesmo possibilidade de regressão (por regressão entenda-se: um recuo drástico no nível de consciência – que culmina num resultado interior/espiritual infeliz ou maléfico -, normalmente em decorrência de adesão a condutas ou posturas éticas mesquinhas, vis, miseráveis, torpes ou, ainda, por erros espirituais...). Essa posição budista traz à baila uma reflexão interessante: quantos de nós tocamos nossas vidas sem nenhuma preocupação de ordem interior/espiritual, sendo o universo/horizonte de atenções, perspectivas, ambições e preocupações apenas o pequenino mundo daquilo que nos concerne pessoalmente e a nível temporal ou mundano? Muitos, sem dúvida...

 

[nota: em relação ao 'eu' verdadeiro ou à verdadeira face a abordagem do Buddhadharma, por um lado é negativa, não postulando o Atman como no Vedanta, mas o Anatman/não-eu – entretanto, vale lembrar que o Atman é não-psicológico, também não é Ahamkara/sentido de individuação ou ego, não é Manas/função mental (mente ordinária, racional-discursiva) tampouco Buddhi/Intelecto nem samskaras (no Vedanta, Shaivismo e no Shâmkya impressões subconscientes) ou vasanas (tendências latentes/inclinações subconscientes decorrentes de samskaras), estando fora das categorias convencionais.  Tampouco o Atman corresponde a pudgala ("pessoa") dos budistas da antiga escola desviada Pudgalavada - a qual trouxe uma elaboração que não converge nem com a budista nem com a vedântica. A abordagem budista é, por outro lado, neutra: Shunyata/vacuidade, portanto fruição sem cisão ou distinção sujeito-objeto nem conceituação. O Sutra do Nirvana formulou o eu-búdico enquanto que o Zen, através do buddha Hui Neng, a Natureza Própria. Seria o Atman não o refutado “Self” - nem tampouco o igualmente refutado “pudgala” (“pessoa”) dos budistas pudgalavadins (cf. Abhidharmakosha de Vasubandhu, cap.9) – mas a Natureza Própria? Alguns eruditos metafísicos como D. T. Suzuki e, na sua elaboração, Ananda K. Coomaraswamy entendem que sim; outros budistas individualmente também; não, porém, em suficiente número de estudiosos e praticantes para levar o tema à mesa e formar consenso nas comunidades budistas em geral...]

 

Tem-se ainda a questão do karma como “evolução espiritual' (ou, em português brasileiro, “carma” com 'c'). A ideia de evolução espiritual é infundada. Nas tradiçóes espirituais falamos em “ascese” como um desenvolvimento para culminar na Sabedoria (Prajna ou Sophia). A ideia de “evolução espiritual” implica que 'eu' vou crescer, 'eu' vou me aprimorar, 'eu' vou me desenvolver, 'eu' me tornarei ótimo ou melhor, 'eu' vou alcançar um estado elevado ou superior. A ideia de evolução espiritual já nasce falida e fadada ao fracasso; por uma lado ela é auto-engano pois materialismo espiritual puro [*]. 

Por outro lado, metafisicamente, espiritualmente … pode o karma livrar (ou sair) da sujeição à existência cíclica? Liberar da roda do samsara, do renascimento? Não pode... mesmo que as acumulações de mérito (obras) e conhecimento (ensinamentos verdadeiros) são excelentes, ainda assim elas são instrumentais... falta uma peça chave..

 

[nota: E rejeita o autoconhecimento - passo necessário para neutralizar o materialismo espiritual. Também, para não nos tornarmos visionários é necessário verificar qual a nossa vocação; e o que em nós, em nosso anseio por uma construção espiritual, extrapola da objetividade. Eu quero ser tântrico mas o Cristianismo é melhor para mim; quero ser teísta mas o Buddhadharma pode trazer um resultado melhor para a minha estrutura... Insisto na Bhakti Marga (via do Amor/Devoção) mas o Tantrismo é a saída que eu preciso; persevero no Esoterismo Ocidental mas a Bhakti Marga melhora a minha vida, libera a minha consciência... A ideia de evolução espiritual me traz avante um livro de Shri Nisargadatta Maharaj: “All search for hapiness is misery” (“Toda a busca por feliicidade é miséria”)... A busca sincera pela verdade parece trazer mais 'lucro'...saimos em busca de felicidade e, todavia, há um depósito dela, muitas vezes inexplorado, dentro de nós e que não depende de como é nossa vida exterior/temporal... ].

 

Por quê?

 

De acordo com os ensinamentos budistas e testemunhos documentados daqueles que alcançaram o estado de Buddha, sair da existência cíclica implica reconhecer a vacuidade dos skandhas/agregados psicofísicos e ter a visão interior (insight) da Natureza própria (cf. Hui Neng) ou Natureza Verdadeira, o que é facultado por Prajna (Sabedoria). O renascimento – e a ignorância – é eliminado por Prajna (Sabedoria), pela visão interior (insight) que reconhece simultaneamente a vacuidade dos agregados psicofísicos/skandhas e dos fenômenos/eventos (dharmas) bem como, concomitantemente, faculta a visão/surgimento de consciência da Natureza Própria.

 

Sem o Anatman ou sem o reconhecimento do Tao ou da natureza verdadeira ou ainda sem a recognição da mesma, ou, por outro lado, sem a destruição daquilo que não é nossa verdadeira natureza interior profunda/nuclear, a nossa verdadeira face, ou ainda sem o Atman... sem isto não há a vida espiritual que todos – engajados na meta de uma construção interior/espiritual autêntica ou não – precisamos...

 

 

- V -

 

MORALIDADE.

 

Quanto à questão da moralidade budista, remeto quem se interessar – e não tiver lido ainda – ao post “Moralidade cristã. Moralidade budista. Argumentação fraudulenta contra a moralidade religiosa.”. No website www.acessoaoinsight.net está disponível para download uma versão condensada do Vinaya, acompanhada da seguinte observação : 

 

A tradição monástica e as regras sobre as quais ela se apóia são algumas vezes criticadas, em particular no Ocidente, como sendo irrelevantes para a prática “moderna” do Budismo. O Vinaya é visto como um retrocesso a um patriarcalismo arcaico, baseado numa confusão de regras e costumes arbitrários que apenas obscurecem a “verdadeira” essência da prática Budista. Essa abordagem estreita ignora um fato crucial: é graças à linhagem continua de monásticos que consistentemente mantiveram e protegeram as regras do Patimokkha por quase 2.600 anos que temos o luxo hoje de receber os inestimáveis ensinamentos do Dhamma. Se não fosse pelo Vinaya e por aqueles que continuam a mantê-lo vivo até mesmo hoje, não haveria Budismo.
 
Ajuda recordar que, ao longo de todo o Cânone em Pali, o Buda nunca se refere ao caminho espiritual que ele ensinou como simplesmente “Vipassana” ou “Atenção Plena” ou alguma outra coisa similar. Ao invés disso, ele o denomina "Dhamma-vinaya" - a Doutrina (Dhamma) e Disciplina (Vinaya) – sugerindo um corpo integrado de sabedoria e treinamento ético. Portanto o Vinaya é uma faceta indispensável e um fundamento de todos os ensinamentos do Buda, inseparável do Dhamma e digno de estudo por todos os discípulos – leigos e ordenados.

 

 

 

____________________________

 

 

 

2. Karanda Vyuha Sutra. Descida do Bodhisattva Avalokiteshvara ao Inferno Avici .

 

Pesquisando na web por alguns textos tradicionais budistas, esbarrei, no sítio www.sacredtexts.com, com este resumo do Karanda Vyuha Sutra, um documento mahayana sobre o nobre bodhisattva Avalokiteshvara, o filho do Buddha Amithaba, associado ao  mantra Om Mani Padme Hum. O texto selecionado fala sobre a descida do bodhisattva ao Inferno Avici e, em continuação, sobre sua visita ao Pretalôka (Mundo dos pretas). As duas obras do Budismo Mahayana do norte da Índia mais conhecidas a respeito do Bodhisattva Avalokiteshvara são o Karanda Vyuha Sutra e o Saddharma Pundarika Sutra (O Sutra do Lótus da Boa Lei). O resumo do sutra e a comparação do mesmo com uma passagem do evangelho apócrifo de Nicodemus - a qual traduzi, mas não postei aqui – são trabalhos do erudito prof. Edward B. Cowell – M. A., Cambridge. O nobre bodhisattva Avalokiteshvara, como bodhisattva realizado no cumprimento pleno de seus votos e iluminado, encontra-se na condição potencial de vivenciar unicamente um último renascimento e realizar, no interím do mesmo, o buddhato (estado Buddha); todavia, Avalokiteshvara fez uma resolução/propósito de que “ele mesmo não deve compreender o conhecimento perfeito de um buddha, até que todos os seres tenham sido não apenas liberados da condenação, mas estabelecidos no mundo do Nirvana.” - (cf. último verso do resumo do sutra). O Prof. Cowell trouxe avante, ainda, a boa lembrança do capítulo 24 do sutra do Lótus: Avalokiteshvara também é representado como assumindo várias formas em diferentes mundos para proclamar a lei de Buddha a criaturas diferentes; para alguns, ele aparece sob a forma de um Buddha; a outros de um Bodhisattva, para outros de Brahmâ, Indra, Mahešwara ou mesmo de um Dharmaraja/monarca universal, um brâhmane ou um pišâcha, "a fim de ensinar a Lei para aqueles seres feitos para serem convertidos por esses respectivos professores", fez referência às similaridades notáveis entre o Karanda Vyuha sutra e a segunda parte do evangelho apócrifo de Nicodemus; a mim, me vem avante, em conformidade com o voto proferido pelo bodhisattva Avalokiteshvara, que ele, ao menos tecnicamente, só realiza o buddhato no fim do ciclo cósmico. O Sutra é narrado pelo Buddha Ananda ("Assim eu ouvi...") e tem como participantes o Buddha Shakyamuni e o nobre Bodhisattva Sarvanivaranavishkhambin, acerca do qual há um mantra, a ele dedicado, no Mahavairocana Sutra (Vairocana Bhisambodhi sutra) sendo que este bodhisatvva realizou plenamente o samadhi do Poder da Compaixão - tratando-se de um bodhisattva iluminado. Para aqueles que têm o Sutra do Lótus como referência para suas vidas espirituais, o bodhisattva é também o Buddha Avalokiteshvara...

 

 

A tradução para o português é minha – meu inglês parece não ser de todo mediano ou ruim quando lidando com temas tradicionais (os tradutores eletrônicos/on line nem sempre são eficientes, ajudam mesmo a agilizar a digitação). Minha vida material surrupia o tempo disponível que eu necessitaria para efetuar algumas correções, encontrando-me na situação de ter que priorizar possibilidades e agarrar-me ao que é essencial – para não comprometer nem perder a regularidade que já possuo, onde, por sinal, embora goste de estudar, foco a prática. Kaliputra. 31/03/2014.

 

 

KARANDA VYUHA SUTRA.

 

Capítulo I - O trabalho abre com a descrição de uma assembleia realizada no Jardim Jetavana de Šrâvastî, onde o Buddha é assistido por uma vasta multidão de bikshus/seguidores mendicantes, como também um público ainda mais numeroso do mundo espiritual, milhares de Bodhisattwas e filhos dos Devas, com Indra, Brahmâsahâmpati, Surya (sol), Chandra (a lua), Vayú (o vento), Varuna (mar), etc., à sua frente, e com incontáveis Nâgas, Gandharvas e Kinnaras, com suas filhas e Apsaras, além de centenas de milhares de upasakas/budistas leigos de ambos os sexos.

 

"Quando a vasta assembleia estava reunida, de repente feixes de luz irromperam no Inferno Avîchi; e, tendo irrompido eles alcançaram o Mosteiro de Jetavana e adornaram todo o lugar. Os pilares pareciam estar incrustados com gemas celestiais, as câmaras superiores estarem cobertas com ouro, as portas, escadas, etc., serem todas de ouro e os paços externos estarem cheios de árvores celestiais, com troncos de ouro e folhas de prata e penduradas com vestes caras, grinalda de pérolas, e todos os tipos de ornamentos, enquanto os olhos vagavam sobre lagos cheios de água e vários tipos de flores.

 

[Os prêtas são seres em estado de punição, e são descritos como sempre exaustos e em fome-permanente]

 

"Então o Bodhisatva Sarvanîvaranavishkambhin dirigiu-se ao Buda, 'Ó Abençoado, quais seres encontram-se no Avîchi? lá onde nenhuma alegria (vîchi) é conhecida, ele prega a lei? No Avîchi, cujo Reino de ferro rodeado por muralhas e fortificações é como se fosse uma chama ininterrupta, como um caixa de jóias reluzentes. Naquele inferno está um grande caldeirão de lamentações, onde miríades de seres são lançadas; assim como o feijão ou suor pulsam subindo e afundando em uma panela cheia de água fervente, assim estes seres suportam dor corpórea no Avîchi. Como, então, Ó Abençoado, o Bodhisattwa Avalokitešwara entra lá?'

 

Buda respondeu, ' Ó nobre jovem, apenas como um imperador entra em um jardim cheio de todas as coisas preciosas, atendido com toda sua pompa real, assim Avalokitešwara entra no inferno Avîchi. Mas seu corpo não sofre nenhuma mudança. Quando ele se aproxima do inferno, seu corpo torna-se fresco. Em seguida, os guardas de Yama, desorientados e alarmados, começam a pensar, 'o que é este sinal auspicioso que tem aparecido em Avîchi?'. Quando Avalokitešwara entra, em seguida, aparecem lá lótus abertos tão grandes como rodas de carruagem e o caldeirão de lamentações explode e dentro daquela cama de fogo manifesta-se um lago de mel.

 

Então os guardas de Yama, agarrando todos os tipos de armas, espadas, clavas, dardos, etc. e todos as armaduras defensivas do inferno, reparadas por Yama, o Senhor da Justiça, dirigiram-se a ele: 'Saiba nosso rei que nosso campo de ação está destruído e convertido em um lugar de prazer e cheio de toda a alegria.'

 

Yama replicou: 'Por qual razão vosso campo de ação está destruído?'

 

"Os guardas responderam: ' Saiba nosso Senhor também que um sinal não-auspicioso apareceu em Avîchi, tudo tornou-se tranquilo e fresco e um homem assumindo todas as formas à vontade entrou lá, vestindo emaranhados cachos e um diadema e enfeitado com ornamentos divinos, com sua mente excessivamente benevolente e como uma orbe de ouro. Tal é o homem que entrou, e imediatamente na sua entrada lótus apareceram tão grandes quanto as rodas de uma carruagem, o caldeirão de lamentações explodiu e dentro daquela cama de fogo manifesta-se um lago de mel.' Então, Yama refletiu, ' de qual Deus é esta Majestade? De Mahêšwara, grande em poder, ou Nârâyana, adorado por cinco oceanos? Ou qualquer um dos outros filhos dos devas obteve por benefício tal recompensa proeminente e desceu a este lugar? ou algum Râkshasa surgiu, algum rival de Râvana?' Assim, ele ficou e ponderou e contemplando com seu olho divino não viu nenhum tal poder no mundo dos deuses, e quem quer que pudesse ter tal poder.

 

 

Então, outra vez Yama olhou para trás, para o inferno Avichi e nisto ele contemplou o Bodhisattwa Avalokitešwara. Então Yama, o Senhor da Justiça, foi onde ele estava, e tendo saudado seus pés com sua cabeça começou a pronunciar seu louvor. “Glória a Ti, Avalokitešwara Maheshwara, Padmashri, o doador de bençãos, o subjugador, o melhor mirante da terra [i.e. de visão elevada], etc. Assim, tendo pronunciado este especial louvor, Yama três vezes circum-ambulou ao redor do Bodhisattwa e foi-se.

 

 

Capítulo III – "Sarvanîvaranavishkambhin assim dirigiu-se ao Buda, '-Quando o glorioso Bodhisattwa Avalokitešwara retorna?'; Buda respondeu: '-Nobre filho, ele já saiu do inferno Avichi e adentrou a cidade das pretas (fantasmas famintos). Lá centenas de milhares de pretas correm ante ele, com formas como as de pilares queimados, altura como a de esqueletos, com barrigas como montanhas e bocas como olhos de agulhas. Quando Avalôkitešwara vem para a cidade dos pretas, a cidade torna-se fria, o trovão cessa e o porteiro, com o dardo erguido, sua mão ocupada com veneno e seus olhos vermelhos de raiva, de repente, pelo poder do Bodhisattwa começa a sentir a influência da benevolência; dizendo: 'eu não devo ter que fazer com esse campo de trabalho.'

 

 

"Então o Bodhisattwa Avalôkitešwara tendo contemplado aquela moradia dos seres, estando cheio de compaixão, causou dez rios Vaitaranî para emitirem de seus dez dedos e mais dez da ponta dos dedos dos pés; e da mesma forma, em sua grande compaixão, rios de água verteram de todos os seus poros até aqueles seres aflitos. E quando os pretas provaram aquela água, suas gargantas tornaram-se expandidas e seus membros cheios e eles estavam saciados com uma comida de um sabor celestial. Em seguida, recuperando a consciência humana, eles começam a pensar em coisas mundanas. ' Ai de mim. Felizes são os homens de Jambudwîpa que podem procurar sombra fresca, que podem viver sempre perto de seus pais e esposas; que podem cortar os bastões sagrados e reparar os mosteiros quebrados e decadentes e os topos despedaçados; que sempre podem esperar quem recite, escreva ou leia os livros sagrados e contemplar os milagres e vários obras maravilhosas dos Tathâgatas, Pratyeka-buddhas, Arhats e Bodhisattwas.

 

"Assim meditando, eles abandonaram seus corpos preta de punição e tornaram-se capazes de atingir seus desejos. Em seguida, de Avalôkitešwara emitiu-se ali o Sûtra Real Precioso da 'Grande Tradução, o Karanda Vyûha. Então, tendo rompido a montanha dos 20 picos da ilusão que ensina que o corpo existe, com o trovão do conhecimento [10] eles nasceram no mundo Sukhâvatî como Bodhisattwas chamados Âkânkshita-mukhâh. Em seguida, Avalôkitešwara, quando estes seres foram liberados e nascidos na terra de Bodhisattwas, saiu outra vez da cidade das pretas.

 

Capítulo IV.--",Então, Sarvanîvaranavishkambhin disse ao Buda, '”Avalôkitešwara ainda demora a vir?' ; Buda respondeu, 'Nobre filho, ele está amadurecendo a experiência de muitos milhares de miríades de seres; dia-a-dia ele vem e amadurece-os, nunca houve tal manifestação de Tathâgatas como há a do glorioso Bodhisattwa Avalôkitešwara.'"

 

 

Buda então descreve uma assembléia realizada em um antigo æon por um Buda chamado Sikhin, que vê Avalôkitešwara vindo a ele com um presente de flores celestiais de Amitâbha. O Buda Sikhin pergunta onde ele está efetuando suas obras de mérito. Avalôkitešwara responde que ele está visitando os infernos inumeráveis no universo, e que ele resolveu que ele mesmo não deve compreender o conhecimento perfeito de um Buda até que todos os seres tenham sido não apenas liberados da condenação, mas estabelecidos no mundo do Nirvâna.

 

 

 

                                                                                      ____________________________________________

Filosofia de botequim.

03/09/2013 19:36

 

A menos que haja algum compromisso ou necessidade, ao sair de meu local de trabalho, normalmente, dirijo-me primeiramente à lanchonete da esquina para tomar um café e me abastecer com um singelo pão com “manteiga” (na verdade pão com margarina) ou mesmo um lanche - já que não costumo jantar - antes de seguir caminho para casa.

 

Comumente a TV daquele estabelecimento está sintonizada no programa do Datena ou no similar concorrente Cidade Alerta, o que chega a incomodar alguns consumidores, uma vez que, após um longo dia de trabalho, alguns não estão mesmo com disposição para receber as notícias veiculadas através daqueles  telejornalísticos, entendendo que os temas abordados provocam desânimo e negativismo.

 

Tal não é propriamente o meu caso. Eu explico para alguém mais exaltado que, embora lamentáveis, as notícias veiculadas – tráfico e consumo de drogas, homicídios/latrocínios, sequestros, estelionatos, acidentes fatais, estupros, incestos, abusos sexuais e pedofilia - retratam a realidade cruel que muitos preferem evitar ou simplesmente ignorar - já que não é com eles nem com suas famílias.

 

-“A Imprensa brasileira normalmente é omissa ou parcial/tendenciosa... Mas não posso culpar o Datena ou qualquer outro repórter, quando o que é informado é aquilo que está acontecendo no dia a dia... é preferível ao faz-de-conta e à omissão de outros telejornais e, afinal, poderia acontecer com qualquer um de nós...”, digo ao cliente reclamante sentado ao meu lado.

 

Como o colega insiste eu prossigo: - “O duro é para as vitimas e entes queridos que têm de carregar as perdas, os traumas e as sequelas em suas costas...”, - meu vizinho de balcão desiste...

 

De fato, se se for investigar, com acurácia, o que muitas famílias brasileiras têm sofrido e suportado, o que muitas pessoas guardam caladas para si próprias, veremos que há uma realidade brutal, cruel no Brasil - e que transcorre paralelamente com a vida normal que todos nós almejamos para as nossas rotinas.

  

Um amigo meu socialista reclama que a Classe Média “se deleita com o telejornal, pois gosta de ver a desgraça dos outros antes do jantar”... O sentimento de desejar inteirar-se da desgraça alheia é mórbido e absolutamente reprovável; por outro lado alhear-se do que se passa ao nosso redor, pode ter o efeito ruinoso de uma redução negligente  - e, inclusive, a um nível comprometedor - da nossa prevenção; e, também, de não se importar com situações não apenas indesejáveis mas mesmo traumáticas que se abatem sobre o próximo ( e haverá aqueles que preferem se preocupar tão  somente com a prevenção pessoal própria).

 

No mais, complementando meu amigo socialista, no Brasil, as notícias deploráveis, execráveis, traumáticas lamentavelmente pululam no dia, nos distritos policiais e hospitais, algumas delas veiculadas por telejornalísticos como Cidade Alerta e Datena, direcionados, em princípio, a um público entre a Classe Média e o Povo Simples/Povão.

 

Uma das matérias mais horrendas que já vi - não me lembro se no Datena ou no Cidade Alerta, pois já se vão alguns anos - foi sobre um episódio havido em Campinas/SP, onde três empresários usavam um imóvel de padrão razoável - uma bela casa com piscina - para abusar e explorar sexualmente meninos pobres da região, os quais poderiam usufruir da piscina, lanchinhos e videogames - o esquema dos pedófilos já tinha, então - se não me falha a memória -, conseguido aliciar oito meninos, o mais jovem deles com 6 anos de idade e o mais velho com 14 anos, à época dos fatos. A matéria jornalística mostrou a residência utilizada pelos pedófilos bem como um pequeno trecho da audiência havida no Fórum de Campinas, onde algumas mães desmaiaram ao ouvir os depoimentos dos próprios filhos... Talvez o horrendo caso merecesse veiculação nacional, entretanto, o escabroso crime foi veiculado uma única vez, não tendo nenhum meio jornalístico fora de Campinas/SP dado continuidade na cobertura da sequência do processo e do julgamento no âmbito do judiciário criminal. Afinal, são só crianças pobres exploradas por predadores sexuais de classe média... Nem a dor das mães mobilizou a nossa pasteurizada e mesquinha imprensa, a qual prefere, por exemplo, direcionar seus holofotes e bombardear a audiência fazendo cobertura de casos como o de Geisy Arruda, - hostilizada numa faculdade por usar decotes e microssaias(*) - situação que se resolveria sem muita dificuldade no âmbito judicial e com vitória para a Srtª Arruda  e sem a necessidade de holofotes. Meninos sofrendo abuso e exploração sexual com suas mães desmaiando no Fórum não dão pontos no Ibope ou a infelicidade deles - mães e filhos - não é uma matéria conveniente para cobertura. Eis o critério da imprensa brasileira... Entretanto, no ano de 2011 episódio similar ocorreu em São Paulo/Capital: uma bela casa de classe média na zona Norte, piscina, lanchinhos, videogames e... meninos pobres e predadores sexuais (de classe média, no caso)...

 

O que o futuro nos reserva? Me parece que o futuro é o presente...

 

Continuando, na minha rotina como cliente daquele estabelecimento comercial, além de algum descontentamento/reclamação contra os programas do Datena e Cidade Alerta e as discussões futebolísticas, um assunto interessante é o tema das drogas: quase todas as pessoas simples  - classe operária - que pude ouvir opinando sobre o tema fizeram a mesmíssima observação quanto à questão dos narcóticos: “Os 'grandões' estão envolvidos, sem dúvida...”. A certeza dos brasileiros - intuitiva, sem a menção ou inclusão suplementar de evidências materiais que, ao menos, indiquem a participação de envolvidos/suspeitos nem argumentação técnica a respeito do tema dos narcóticos - dá o que refletir. Na percepção destes brasileiros o Estado não combate efetivamente o tráfico de drogas - as medidas adotadas estão aquém do necessário.

 

É fácil, então, discernir a pergunta destes brasileiros: - “Por que as autoridades não exercem um combate às drogas como esse combate necessita ser feito?” - deduzo eu que a resposta ao tráfico de drogas, desejada pela maioria dos brasileiros, seja algo como uma “tolerância zero”.

 

E a resposta à pergunta destes brasileiros é tão óbvia quanto a sua indagação: “Porque tem gente deles envolvida...”.

 

O que parece estar passando despercibo pelos brasileiros é que o envolvimento com o tráfico de drogas não vêm apenas da corrupção, mas de setores da sociedade civil que visam não apenas dinheiro, mas a transformação da cultura com a concomitante alteração dos valores...

 

[(*) nota (atendendo ao pedido de um leitor deste post): aparentemente também - não verifiquei - a Srtª Geisy Arruda, embora aluna de uma faculdade de classe média,  é (ou era) do  Povo Simples/Povão. Num colégio municipal ou estadual de periferia, a maioria dos alunos riria da  Srtª Arruda - eventualmente ela poderia apanhar de alguma namorada, noiva ou pretendente além de receber cantadas grosseiras de rapazes sem refinamento ou aproveitadores - ; na prática, ao menos na primeira aparição (ou nas aparições iniciais) é preciso ter "sangue de barata" para não ter nenhuma reação à semi-nudez da Srtª Arruda; entretanto, o episódio recebeu mais destaque do que merecia; também foi mal focado pois, afinal, não são decotes nem microssaias nem qualquer apelação superficial ou vulgar que tornam a mulher mais bonita ou atraente...]

Moralidade cristã. Moralidade budista. Argumentação fraudulenta contra a moralidade religiosa.

17/08/2013 03:01

roda do dharma & cruz evangelítica

 

- I -

 

A quem se destina a moralidade religiosa?


Aos que participam de alguma confissão ou aos de fora?


 

E a moral laica? Deve ou pode ela ser imposta a quem é religioso praticante? –  alguns dizem, com total certeza interior, que a moral laica deve ser imposta ao corpo inteiro da sociedade civil…


 

O prezado leitor, por exemplo, recebe – não socialmente, mas interiormente – alguma coisa que não concorda, não acredita  ou não aceita?


 

As diversas militâncias e agrupamentos não-religiosos, militando em causas materiais (sociais, políticas, ambientais, etc.), cada uma delas tem um fundo cultural próprio, análogo ou convergente entre algumas delas… é legítimo impor esta cultura própria/pessoal dos militantes e membros de facções para a sociedade inteira, quando eles mesmos se vincularam a essas culturas por adesão voluntária e espontânea (e não por imposição)?


 

Vale lembrar que o que convenceu a mim pode não convencer o outro e viceversa… E o que é “lindo” para mim pode não sê-lo para o outro e viceversa…


 

A questão, então, não é impor a moral religiosa a quem prefere a moral laica – ou, ainda, a imoralidade ou a amoralidade. A Igreja não tem como fazer isto. O que a Igreja pode fazer é recomendar aos seus fiéis uma direção doutrinalmente favorável ou aceitável do ponto de vista espiritual/ético. Tampouco o fluxo contrário é aceitável: imposição da moral laica aos religiosos praticantes.


 

Então, nesse caso, apresenta-se-nos a questão quanto à tradição cristã preservar, dentro do seu âmbito, a sua norma de moralidade (fundamentada nas escrituras cristãs) – ao invés de se deixar invadir pela visão laica ou ainda mundana (ou seja, trazer a perspectiva mundana para dentro da Igreja).


 
[nota: deve-se observar aqui que este post se atém à questão da Moralidade, não adentrando um certo setor obscuro do Moralismo. Peço que não me confundam: o Moralismo em si não é obscuro; há uma modalidade obscura de Moralismo – tanto laico quanto religioso -, pela qual muitos sentem e nutrem aversão.
A meu ver, considerando-se o binômio Moralidade-Moralismo, eis que, nesta acepção, uma modalidade obscura de Moralismo é algo que corresponde a um padrão aflitivo. Autêntica moralidade implica compreensão… No caso das tradições espirituais, por exemplo, Auto-domínio não é “repressão”, antes é uma aquisição interior; não se trata, realmente, de um moralismo superficial…]


 

– II –


 

Nesse caso, qual a importância, para os religiosos praticantes, da observância da sua norma própria de moralidade?

 

A moral laica não avança no setor que as tradições espirituais avançam.

 

Todas as tradições espirituais normais operam numa perspectiva (a interior/espiritual) em que, para se chegar a um resultado objetivo, bem como benigno e sadio espiritualmente, tal ação demanda uma construção que, simplesmente, abarca e mobiliza uma vida inteira.

 

Tal avanço, porém, incorre em se dar num andamento movediço sem a observação – entre outros requisitos – do padrão de moralidade da cada tradição espiritual.

 

Os budistas, por exemplo, observam cinco preceitos gerais: 

1) não matar; 

2) não roubar; 

3) abster-se de má conduta sexual; 

4) não mentir; e 

5) não ingerir substâncias inebriantes 

E não têm qualquer dúvida doutrinal acerca da necessidade de observá-los, consistindo da moralidade básica/minimal requerida a leigos e monásticos.

 

Para o Buddhadharma, tradição espiritual de caráter metafísico, os cinco preceitos, tratando-se de preceitos morais, constituem apenas um pequenino degrau inicial – a coluna ou espinha dorsal da disciplina budista está documentada no tratado Vinaya – englobando Moralidade e Ética; já o Vajrayana, na sua característica peculiar de budismo tântrico, observa – por necessidade intrínseca – os preceitos do Samaya.

 

Todavia, no que concerne aos cinco preceitos, sem a observação deste pequenino degrau, desta pequenina peça, o edifício de uma construção interior budista – a qual é metafísica – fica pendente, quando não comprometido.

 

Com as demais tradições espirituais não é diferente…


 

– III –


 

Podemos formular uma velha pergunta: “é importante assim a religião?”… Eu não acho que a religião tenha toda essa importância, por exemplo, para a minha vida pessoal. Eu já levo uma vida correta, e acho que o importante é o amor, estar bem comigo mesmo, fazer o bem ao próximo, etc.”.

 

Encontrei muitos brasileiros assim.

 

Muitos outros ainda eram “for fun” (diversão/lazer/entretenimento/festas) – nada em contrário de minha parte (e muito mais comum e arraigado hoje em dia do que quando eu era criança/adolescente nos anos 80).

 

A mim, porém, essas posições não satisfaziam, sendo que eu tinha entre os meus amigos ateus, socialistas, existencialistas e “à toas”.

 

Todavia, me ocorreu – aos 18 anos – de não descartar a religião sem, antes, examiná-la adequadamente, o que fui fazendo com vagar (longe de ser algum Mircea Eliade ou Joseph Campbell, busquei o que era suficiente para mim.

 

E, seja como for, o discurso “eu já faço o bem” , “eu prefiro o amor”, “eu já levo uma vida correta” não responde nem esclarece a pergunta formulada de modo profundo pela religião: “quem ou o quê somos nós”.).

 

Nenhuma religião normal é contrária ao amor, a estar bem consigo próprio, a fazer o bem e nem mesmo a alegrar-se alguém com seus entes queridos na sua possibilidade.

 

Contudo, a meu ver, religião  – não no sentido vulgar ou mesmo filosófico, mas no seu sentido mais puro e elevado de religio  – é sair da periferia das nossas existências pessoais em direção ao núcleo; realmente não é se satisfazer com algum limite de alguma condição material – e manter-se numa inércia.

 

Valorizar a pergunta da religião não significa negligenciar ou ignorar valores benignos mas, antes, não descartando posições que são benignas (fazer o bem, conduzir-se dignamente/integramente na vida pessoal e comunitária, valorizar o amor e alegrar-se com os seus), apenas a religião – e a metafísica tradicional – nos pede para ir um pouco mais avante, ir um pouco além, não limitarmos nossa possibilidade somente a um nível existencial/espiritual raso…

 

Empreendida a jornada, as almas são diferentes e, destarte, analogamente o são a penetração e os resultados obtidos. De fato, é necessário ter engajamento com a posição que valoriza a Realidade Última… daí advêm os descobrimentos e experiências relevantes.


 

 -IV-


 

Na minha verificação, entre as primeiras coisas que constato na religião, estão as seguintes:

1) religião não é psicologia nem psicoterapia ou “terapia ocupacional” (i.e.: nem simplesmente psicologia – e psicologismo –  nem mero passatempo, hobby ou distração);

2) não é, também, apenas o componente da religiosidade (é necessário o vínculo com alguma tradição espiritual e as concomitantes regularidade e observação doutrinal) ;

3) não é apenas estudar, mas também praticar (acumulações de sabedoria/conhecimento são os estudos, acumulações de mérito correspondem à ética/prática – no caso do Buddhadharma);

4) a minha tradição espiritual é melhor para mim (não, necessariamente, para os outros – e aqui não se trata de subjetivismo, antes de aptidão/vocação );

5) o produto (ou resultado) espiritual da religião que causa admiração e que tem impacto é todo ele – escrituras, tratados, homens e mulheres espirituais – oriundo das tradições espirituais ortodoxas (mesmo as tradições dos índios – sioux, maori, etc. -), sem mistura com elementos heterodoxos ou sectários; sendo ainda – ao menos para quem procura estudar religiões comparadas – perceptível a ausência desse produto espiritual excelente nas heterodoxias ou seitas (as quais, quando não se tratam de desvios ou reduções, podem corresponder, ainda, a doenças ou pura escroqueria. Os norteamericanos – que sofreram com as seitas nativas, orientais e pseudo orientais mais que qualquer outro povo – que o digam);

[nota: por ‘heterodoxia’ estou me atendo ao conceito puro e simples do termo, o qual corresponderá a posicionamentos “não-ortodoxos”; por ‘sectário’, entretanto, não é que aqui o termo ‘sectário’ (relativo a seitas) tenha atribuição/conotação pejorativa… na verdade, me refiro a algo que corresponde a uma situação aflitiva.

Ao tempo do budismo primitivo havia muitos movimentos sectários, os quais consistiam em verdadeiros desvios ou êrros doutrinais crassos em relação à Tradição Védica; e, nas escrituras budistas, as doutrinas e posicionamentos sustentados por muitos preceptores desses movimentos sectários heterodoxos foram impugnadas por Buddha (ver Digha Nikaya, capítulo 2 -“Os seis mestres do erro”) – por tratar-se de doutrinas errôneas – entre elas os Nirgranthas (Jainas) os quais sustentam a posição da existência efetiva de um determinismo reencarnacionista -; outrossim, Kabir, por exemplo, trata-se de uma posição heterodoxa em relação à Tradição Védica (Kabir, um indiano muçulmano, ligado, porém, estreitamente ao Vaishnavismo, – e também um sufi –  discípulo de Ramananda, encarou – e mesmo contestou – a autoridade e a exclusividade do Brahmanismo).

Porém, a posição de Kabir – da qual derivou o movimento Kabirpanthi – no Hinduísmo é análoga à do Buddhadharma: ambos são heterodoxos em relação à Tradição Védica-Vaishnava; entretanto ambos têm reconhecimento como dharmas autênticos, válidos e pacíficos, compondo/integrando a Tradição.  

Buddha Shakyamuni, no norte da Índia, foi considerado um avatar de Vishnu (no sul, porém, é Balarama, irmão de Krishna, considerado esse avatar) e o Buddhadharma, virtualmente o sétimo darshana hindú  – enquanto que Kabir foi e é amado tanto por hindús quanto por muçulmanos…]

 

6) o resultado benigno da religião pode ser alcançado mas isto é trabalhoso (exige ortodoxia, zêlo, aplicação/diligência, perseverança, fé, regularidade, transmissão autêntica – esqueçam os pseudo gurus e pseudo mestres -, anos de dedicação, etc);

[nota: em um dado momento dos meus estudos – há 18 anos atrás – estava a verificar posições divulgadas como representativas da espiritualidade indiana moderna – Swami Shivananda, Maharshi Mahesh Yogi, Jiddu Krishnamurti, U.G. Krishnamurti, Rajneesh, Aurobindo, Shri Ramana Maharshi e Shri Nisargadatta Maharaj.

Após examinar toda esta informação o que permaneceu em mim? Honestamente: Swami Shivananda (não obstante os relatos de U.G. informando alguma falha de Shivananda na observação dos preceitos yóguicos), Shri Ramana Maharshi e Shri Nisargadatta Maharaj. Os demais se dissolveram, desapareceram, embora a situação de U.G. não seja, para mim, incompreensível (se forem levados em conta, sobretudo, os seus antecedentes pessoais e o seu questionamento espiritual; me pergunto o que teria acontecido a U.G. se ele simplesmente tivesse podido crescer dentro da tradição hindú sem se misturar com a empolgação – e o desvio – do Espiritualismo Ocidental… Entretanto, membros de sua família já haviam apostasiado do Hinduísmo ortodoxo… ele foi uma criança cujos familiares se vincularam a seitas… e, por sinal, não foi o único…)]


 

7) a verificação da documentação original é necessária (mesmo que seja através de traduções) bem como as obras explanatórias/auxiliares de representantes da tradição espiritual objeto de estudo, sendo forçoso procurar traduções e expositores confiáveis;

 

8) concordo com a observação de Arnaud Desjardins: “o mundo moderno, nascido no Ocidente cristão, é fundamentalmente antirreligioso, antiespiritual e anticristão… O Ocidente, terra do Cristianismo, é responsável pela crise intelectual e espiritual, muito mais que ecológica, que assola o mundo moderno e pela maré de obscurantismo que se espalha sobre a terra. O ateísmo e o materialismo não têm nada que se deva estranhar: estão na lógica do sistema…  Tudo o que hoje aparece como forças antirreligiosas, o ateísmo, o materialismo, o frenesi do gozo, a destruição da família, a profanação dos valores espirituais e morais, tem nascido no Ocidente cristão e por ele [o  Ocidente moderno] tem sido propagado ao resto do mundo…”

 

A rejeição, inviabilização e mesmo anulação do Sanatana Dharma (não apenas os dharmas budista e hindú, mas as demais tradições espirituais) surgem e se desenvolvem a partir do Ocidente. Para as tradições espirituais orientais, isto é uma situação cíclica e que corresponde a um período de obscuridade e dificuldade de propagação adequada do Sanatana Dharma.

 

– V –

 

Destarte, sem a observação do seu padrão de moralidade, as tradições espirituais não têm como gerar o seu produto benigno, sendo que a Moralidade trata-se apenas de uma pequena peça na construção espiritual, um degrau ou etapa inicial, uma “estação” ou reino que, entretanto, não pode faltar…

 

A Moralidade, sozinha, não facultará aos cristãos o Reino dos Ceús tampouco aos budistas o Nirvana nem aos vaishnavas a Garuda e/ou o Vaikuntha. Pois ela é um componente necessário, não-prescindível, e que se integra com o componente ético – tanto cristão quanto budista e vaishnava -; tendo a sua importância efetiva, a Moralidade, porém, não tem como fazer o serviço inteiro de per si; pode cumprir apenas a digna missão que lhe compete. De notar, também, que o remédio da moralidade religiosa é tão antigo quanto a situação que ele se propõe prevenir, curar, corrigir.


 

– VI –  


 

 O que se passa, então, com a tradição cristã?

 Há alguma pressão sobre os cristãos no sentido de levá-los a abrir mão do seu padrão de moralidade por forças externas (não-cristãos) e internas (pseudo-cristãos, cristãos meramente nominais, de fachada) em nome do “amor”, da “adequação aos tempos atuais”, porque a Igreja é “retrógrada”, “tem uma visão decrépita”, “a Bíblia precisa de nova interpretação, a vigente é atrasada”, etc. (como se a moralidade houvesse mudado com o tempo: roubar continua roubar, enganar continuar enganar, mentir continua mentir, cobiçar o alheio, sair com a mulher do próximo, frequentar prostíbulos, matar, tudo isto são situações humanas ao mesmo tempo antiquíssimas e atuais).

 

O Cristianismo foi feito para gerar pessoas santas – não pessoas mundanizadas, sem resguardo doutrinal, ético/moral nenhum.

As recomendações da Igreja são, essencialmente, para os fiéis.

Particularmente, eu, por exemplo, acho que deveria haver algum instituto para que os padres – ou uma parte deles – pudessem se casar com as freiras ou com as irmãs leigas – mas é minha opinião pessoal (haveria mais religiosos, porém mais despesas materiais para a Igreja e a comunidade, na medida em que chegassem as crianças; acho, porém, que a Igreja, na medida em que isto fosse acompanhado por um compromisso doutrinal e espiritual, se tornaria mais forte… seria mais feliz também – não obstante eventuais brigas de marido e mulher).

Seja como for, eu não pressiono nem luto contra a Igreja por causa disto (na verdade, não tenho mais posição para fazer isto, já que me encontro no Buddhadharma).

Por outro lado, como a Igreja vai abrir mão da sua posição moral/ética em detrimento das próprias escrituras cristãs – por exemplo, o Apocalipse? O Apocalipse – capítulos 20 (v. 4-6 e 15), 21 (v. 8 e 24-27) e 22 (v. 11-15) – é bem claro na posição moral/espiritual que concerne aos cristãos…

Alguns poderiam objetar que “Deus é amor”.

Os protestantes nos lembrariam – com razão – que “Deus é amor mas é, também, um fogo consumidor” (salmo 50, v.3).

Os que combatem a moralidade da Igreja acham que o Inferno não existe…

Essa posição ocidental, se traduzida em termos budistas, corresponde ao mesmo que dizer: “não há fruto das obras boas nem más… nem há mundo do além (estados superiores e inferiores como céus e infernos)…” – cf. Majjhima Nikaya 41:10 [sobre as posições nihiilstas].

O Buddhadharma qualifica esse ponto de vista como nihilista e a persistência nele fadada aos estados inferiores.

Surgindo essa posição nihilista no âmbito cristão, o fato é que nós falamos “Deus” com facilidade, porém, nada do que se fale nem nada do que se pense é Deus. Crer e não crer em Deus não altera o que Ele é. Daí a necessidade da ascese interior/espiritual. Sair da palavra e do pensamento para a vivência, o fato. Fora da letra e da mente humana, as evidências espirituais aparecem através da santidade e da ascese interior.


 

 -VII-


 

Se o problema, como informado, transcorre no âmbito cristão, que têm os budistas com isto?

Estou traçando um paralelo das moralidades cristã e budista.

E, pelo que tenho visto, esse problema – acolher e aceder a posições mundanas – não é exclusivo do Cristianismo (onde a secularização inviabiliza ao Catolicismo nos mostrar o seu melhor resultado), mas já se reflete no Budismo Ocidental onde:

1- não há compreensão doutrinal suficiente – devendo ser observado que nos centros de dharma o aprofundamento doutrinal compete aos acharyas, lamas e roshis bem como aos monges e residentes – e levando-se em conta que só o Tripitaka (canôn budista inicial – Sutras, Vinaya e Abhidharma)  dá o equivalente a quase vinte mil páginas. Ainda assim muitos budistas, nos Centros de Dharma, prestam serviço voluntariamente, de coração.   Não é errôneo não saber ou não ter detalhes sobre tudo ou não ter respostas em conformidade com a exatidão característica do Buddhadharma na ponta da língua; o importante é ter zêlo pelo Dharma e destarte, pelos centros onde o mesmo é difundido bem como, na medida do possível, criar um ambiente favorável à difusão do Dharma em relação não só aos residentes mas àqueles que os visitam;

2- onde os ensinamentos, por deficiência na sua recepção/transmissão, estão sendo “adaptados” – na verdade, modificados, deformados ou descartados em decorrência de concessões a posições mundanas e mesmo vulgares -;

3- e, ainda, onde se deseja “pegar apenas o que eu acho que me é útil…” (nada em contrário de minha parte), … “gosto de alguns posicionamentos budistas e tal, faço até visitas com alguma frequência, mas não quero ser budista” (i.e.: não quero ser religioso ou tomar votos já que ser religioso implica compromisso/engajamento, de fato…), “prefiro manter a minha posição mundana ainda que, estudando sobre o budismo, verifiquei que a mesma é avaliada como inadequada ou sem proveito, nihilista  ou conduzente aos estados inferiores” …

Ok. Ninguém é obrigado a ser budista porque leu alguma coisa ou estuda o Buddhadharma e/ou faz algumas visitas.

Tampouco é obrigado a concordar com o que quer que seja nem acreditar no que quer que seja (por exemplo: na doutrina do karma-renascimento, capital para a compreensão da metafísica budista).

Nesse aspecto, as pessoas podem se sentir livres para verificar – e visitar o quanto queiram – porém o Buddhadharma é uma tradição espiritual com as suas fundações doutrinais e espirituais muito bem estabelecidas, desde o Budismo Primitivo, então, um equívoco seria tentar transformar uma posição parcial – e ainda eivada de concessões a posições mundanas e, inclusive, sem rumo – em “budismo”.

Na verdade, já há nas fileiras do Buddhadharma um sofrimento análogo àquele gerado por algumas infiltrações verificáveis no âmbito cristão…

Mesmo os documentos budistas sendo claros e objetivos, já se vê aqui e ali verdadeiros evasões e sofismas em relação aos ensinamentos budistas para adaptá-los à cultura atual (“não é bem assim”… “era naquele tempo”... “era naquele contexto”…  e por aí vai…)

O Buddhadharma é uma tradição espiritual metafísica não-dual, cuja pesquisa tem como parâmetro as Quatro Nobres Verdades e as Duas Verdades (Samvritti satya e Paramartha satya – Verdade Condicionada ou Relativa e Verdade Absoluta, Final ou Transcendental).

Na tradição cristã a Moralidade pode se revestir da piedade, do sentimento.

A Moralidade no Buddhadharma é um dado objetivo (na verdade, o é também no Cristianismo), como que um componente técnico que tem a sua função necessária na construção espiritual budista, ainda que seja, como tenho observado, uma pequena peça na religião de buddhaghosa, Vasubandhu e Nagarjuna (a qual necessita, como aqui já informado, das acumulações de Sabedoria e Mérito através dos métodos hábeis).

Não seria errôneo, porém, afirmar que a Moralidade concorre para a felicidade dos budistas – de fato, é uma rainha que não pode estar ausente.


 

-VIII-


 

Gampopa escreveu: “Se em tudo que se fizer for buscado o bem dos outros não é necessário buscar o bem próprio”… (“O  Rosário Precioso”) 

 Os budistas não erram no que concerne ao que o Buddhadharma entende por ser o “bem do próximo” – rezam e dedicam suas práticas para que as pessoas encontrem alívio da miséria, da doença, da guerra, da angústia e são orientados a exercer, efetivamente, no seu dia a dia, karuna (compaixão), kshanti (tolerância/paciência) e dana (generosidade/caridade), entre outros valores budistas – o que abrange ações materiais de diversos núcleos budistas bem como de individuais em prol dos menos favorecidos e/ou desfavorecidos – qual os cristãos.

As práticas budistas são dedicadas ao benefício dos seres nos seis reinos sujeitos à alteração de karma-renascimento.

A karuna (compaixão) e a dana (caridade/generosidade) budistas objetivam o benefício tanto dos devas (seres celestiais) e dos homens, quanto dos asuras (semideuses), dos animais, dos preta (fantasmas famintos) e dos seres nos reinos infernais (os danados e os demônios).

Analogamente aos cristãos, as práticas budistas levam em conta o benefício tanto dos justos quanto dos ímpios, tanto dos que, na sua medida, buscam a luz quanto dos que estão em trevas.

Desejar o benefício dos seres que se encontram em andamentos execráveis ou que já se tornaram ímpios não significa concordar com – tampouco endossar – condutas desprezíveis, vis e/ou maléficas que eles adotam ou qualificar tais condutas como “benignas”, “evolução cultural”, etc.

Destarte, o “bem” que os budistas desejam para todos trata-se não apenas de ações materiais (as quais têm a sua importância/relevância efetiva) mas do bem que corresponde a valores espirituais: a remoção da ignorância, dos obscurecimentos e impedimentos/obstruções, da dissolução dos karmas malignos/aflitivos que prendem as pessoas ao samsara e, inclusive, que conduzem aos estados inferiores (pretalôka – mundo/reino dos fantasmas famintos, narakalôka – mundos/reinos infernais).

Na doutrina budista o que conduz tanto aos estados inferiores quanto aos superiores é, justamente, a ação moral (a qual corresponde à conduta) bem como, em complementação, a postura ética e espiritual.


 

Desejam também os budistas que as pessoas possam alcançar a compreensão do Dharma (a qual conduz à liberação).

Budista nenhum com conhecimento doutrinal suficiente vai interpretar como “bem” aquilo que é A-dharma (não-dharma, contrário à Lei, irreligião) e que conduz aos estados inferiores.

Os budistas que têm conhecimento/instrução doutrinal suficiente não têm motivos para encarar como “bem” aquilo que consiste em posições mundanas ou ainda “sem rumo”/nihilistas (as quais estão regularmente – e milenarmente – enquadradas pelos ensinamentos disseminados nos três veículos budistas como inadequadas  tanto ao benefício próprio quanto ao dos demais seres).

Seria traduzível o “benefício dos seres” budista em termos cristãos? Analogamente, sim, porém respeitada a diferença entre as duas tradições: quando os cristãos desejam que todas as pessoas – amigos e inimigos, fiéis e infiéis, justos e pecadores – possam alcançar o bem, a paz interior, a melhoria da sua condição pessoal, a aquisição ou formação de um juízo ético e espiritual que conduza e oriente suas vidas a uma posição existencial e espiritual melhor e o encontro com a fé autêntica em Cristo – entenda-se que, no âmbito do Cristianismo, a fé autêntica em Cristo conduz à Liberação e à salvação das almas (conforme a vocação e o desenvolvimento de uma vida espiritual cristã) – e não apenas melhorias/escapes de condições adversas temporais, embora essas saídas possam ser, eventualmente, necessárias…


 

 – IX –


 

Deus é amor? (1ª epístola de São João, IV-8).

Ok.. sem dúvidas…

Mas, assim me parece, São João se refere ao Amor Puro, a um resultado espiritual, não ao sentimento mundano de per si ou a uma “espiritualidade aleijada”, mutilada ou invertida (nas palavras de São Judas: “nuvens sem água, árvores sem fruto, duas vezes mortas…” – epístola de São Judas,v.4-13).

Ficou retrógrado ou brega falar em Pureza? Por enquanto, somente fora da religião…


 

– X –


 

Qual risco os cristãos praticantes correm se abrirem mão de sua moralidade?

Atualmente, a moral laica tende a se adaptar – e mesmo a aceder – ao discurso cultural mundano. Acedendo ou não ao discurso mundano, a moral laica, entretanto, não avança onde as tradições espirituais se propõem avançar, o qual é um terreno movediço e trabalhoso.

Em abrindo mão do seu referencial normal de moralidade os cristãos correm o risco de não verem em si próprios o resultado benigno do Cristianismo, por permitirem o seu próprio desmonte, a sua própria obstrução e/ou anulação espiritual…

Vai estar faltando o funcionamento – e o resultado respectivo – daquela peça minúscula, que, no discurso e percepção mundanos, ninguém acha que tem importância, que é só um detalhe menor, já que “Deus é amor…” .


 

Mas nas demais tradições também se corre risco semelhante…

 

Moral da história: a Moralidade é acessível ao homem simples, com ou sem instrução e ao homem culto. É acessível ao devoto, ao homem com vocação para a mística profunda e ao homem metafísico.

É perceptível na estrutura do ser humano o resultado da Moral Laica naqueles que a observam com regularidade. Analogamente é perceptível na estrutura do ser humano o resultado da Moralidade que tem por referência valores supramundanos, naqueles que a observam com regularidade.

Numa construção interior/espiritual, independentemente de qual seja a tradição espiritual a que alguém possa estar vinculado, a Moralidade integra o alicerce…

Se o alicerce for frágil ou mal estabelecido, uma construção interior/espiritual pode ficar pendente ou comprometida e, até mesmo, ruir…

 

Em quê crêem os budistas? Não-Dualidade e os cristãos.

31/07/2013 23:54

 

- I -

 

Pesquisando em sites budistas brasileiros, à caça de alguns textos do Budismo Mahayana - os quais desejava obtê-los em formato apropriado para armazenamento no computador, como Vimalakirti Nirdesha sutra, Vajrachedika sutra, Prajnaparamitahridaya sutra, sutra de Wei Lang (ou da Plataforma - de Hui Neng), Hsin Hsin Ming (de Seng T´san) e ensinamentos de Bodhidharma - , uma vez que estudei, há dezoito anos atrás, toda esta documentação em livros impressos -; num dos sites que adentrei havia uma coluna com a exposição de alguns princípios que os budistas iniciantes brasileiros - tomados da exposição feita pelo Venerável Walpola Rahula - deveriam ter ciência.

 

Um deles - que me chamou a atenção - era: “Nós budistas não acreditamos em Deus... mas, tomamos refúgio, unicamente, no Buddha, no Dharma (Doutrina) e na Sangha (Comunidade de praticantes budistas - tanto monges quanto leigos).”. O Venerável Walpola Rahula, budista theravadin que se preocupou em verificar os pontos de aproximação entre Budismo Theravada e Budismo Mahayana, redigiu essa formulação. Particularmente, no que concerne à posição do Buddhadharma em relação a Deus - ou em relação ao Teísmo - achei a explanação, na verdade, incompleta e, se se levar em conta a documentação budista, equivocada na sua formulação (tentarei demonstrar porque).

 

Afinal, é certo que todos os budistas tomam refúgio nas Três Jóias/Triratna (Buddha/Dharma/Sangha), porém, para todos os interessados ocidentais - e para os religiosos praticantes ocidentais, os quais são teístas -, em quê, afinal, o Buddhadharma (Budismo) acredita? Ou colocado de outra forma: qual o objetivo ou qual a finalidade do Buddhadharma? O quê procurou o Tathagata Shakyamuni e o quê procuram os budistas? A Não-dualidade em quê consiste? O esforço deste post é desenvolver estes temas...

 

-II-

 

Cumpre informar que, no Ocidente, entre os budistas bem como entre afiliados das tradições védica, vaishnava, shaiva e taoísta poderão encontrar-se pessoas que vêm de uma relação de desinteresse, descrença ou ainda desafeto/confronto em relação ao Cristianismo.

 

Nas fileiras do Buddhadharma e do Shamkya (Samkhya é a escola filosófica fundada por Kapila, vinculada à tradição do Yoga hindú, sendo normal referir-se a ambas as escolas conjuntamente: Samkhya/Yoga)-, poder-se-á encontrar muitos praticantes declaradamente ateus. E, de fato, tanto o Buddhadharma - religião de caráter universal, qual o Cristianismo e o Islam - quanto o Samkhya/Yoga - que aceitava pessoas de outras religiões entre seus praticantes como os muçulmanos -, estavam (e estão) abertos a receber egressos do Ateísmo [*]. No Ocidente os ateus também têm procurado a Tradição Taoísta, ainda que para praticar Qi Gong (Chi Kung) e Tai Ji Quan (Tai Chi Chuan) e estudar Acupuntura - entre outros desenvolvimentos da tradição chinesa.

 

[nota: o Yoga está aberto aos teístas de outras tradições também; o sistema Samkhya trata-se de uma investigação da estrutura do ser humano e da natureza, não desviando do objetivo a que se propõe nem se envolvendo em especulações sobre a validade e/ou veracidade de outras doutrinas ou crenças, enquanto que o Yoga busca a União Suprema, a qual pode ser encarada desde a ótica de uma visão teísta ou de uma visão não-teísta/naturalista.]

 

Shakyamuni Buddha perguntado sobre Deus, em conformidade com sua experiência interior/espiritual, permaneceu em silêncio. Seria, então, o Budismo nihilista ou agnóstico? Ou haveria da parte do Buddhadharma algum desdém em relação às demais tradições espirituais não-budistas?

 

Eu estava lendo a obra “Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindús”, de René Guénon na qual há um capítulo abordando o Budismo; Guénon - um metafísico não-budista, ligado à Tradição Védica e à escola Vedanta (posteriormente, Guénon aderiu ao Islam) - formulou a seguinte observação: “-Como uma doutrina meramente ateísta poderia atrair para seu meio tantos brâhmanes?”.

 

Antes da leitura do trabalho de Guénon, essa é a pergunta que eu fazia a mim mesmo - uma vez que estudo religião e examinando a Tradição Védica - e o Vaishnavismo - não apenas em si mesma (Vedas, Upanishads, Manavadharmashastra, alguns dos Puranas, além do Mahabharata, Ramayana, etc), mas também através da sua interação com o Buddhadharma e o Shaivismo, no território indiano, é perceptível não apenas a sua antiguidade, mas também a sua consistência e fecundidade, a sua integridade e a sua força. 

A Tradição Védica - e o Brahmanismo - é "firme como as montanhas" (como dizem os Vedas). E isto porque meu exame da Tradição Védica ainda é apenas parcial. Não li, até o presente momento, a cópia que consegui da Shatapatha Brahmana bem como, também não, a cópia integral que consegui do Vedanta Sutra (Brahma sutra - li apenas trechos e dissertações sobre o Brahma sutra); isto, porém, demanda tempo e eu estou ocupado, no momento, com o Buddhadharma. Apenas como esclarecimento do livro de Guénon: ele não apreciou muito o Hinayana, aparentemente por causa do Metta Sutta (“Que todos os seres sejam felizes...”).

Eu li o Metta Sutta e, acostumado como já vinha com a metafísica sutil dos sutras mahayana – já que saltei do Buddhacarita (A vida de Buddha) diretamente para o Mahayana, estranhei também; seja como for, diria que eu aceito o Metta Sutta (apesar da forma da sua exposição), uma vez que compreendo a noção budista de "felicidade" - semelhante à "ananda" (bem aventurança) dos hindús na composição "sat-chit-ananda"/ser-existência-bem aventurança. Quanto a Guénon, reencontrou-se com a metafísica budista através do Mahayana.

 

Nos casos particulares do Buddhadharma e do Shamkya tenho visto alguns praticantes ocidentais que têm preferido convergir com o Ateísmo ocidental ao invés de adotar uma posição, senão solidária em relação às demais tradições espirituais, ao menos de neutralidade, uma vez que o Buddhadharma advoga o Caminho do Meio - nem Eternalismo nem Nihilismo - e o Ateísmo Ocidental, o qual lembra, em muitos aspectos, o Charvaka hindú, é uma forma de posição nihilista; em continuação, o Samkhya, por sua vez, é o complemento filosófico do Yoga, cujo objetivo do último é a obtenção do Samadhi (estado interior/espiritual, atingido através da meditação - e dos métodos que objetivam lhe dar suporte -, caracterizado pela percepção da identidade entre sujeito e objeto), e, através do Samadhi, a realização da União Suprema. Destarte, nem no Buddhadharma nem no Samkhya/Yoga há metas ou finalidades nihilistas.

 

Vale lembrar que, no momento atual, há um combate cultural por parte de alguma militância do Ateísmo ocidental contra a religião em geral - o Buddhadharma inclusive -; eu, particularmente, tenho visto que a posição sustentada por alguma militância do Ateísmo ocidental tenta refutar, por meio da filosofia e da lógica a que tem aderido, toda a metafísica - tanto a filosófica/acadêmica quanto aquela ligada às tradições espirituais -, e reputá-la como formulações senão inverídicas, logicamente equivocadas ou desprovidas de possibilidade de comprovação e, destarte, comprometida a sua pretensão de  objetividade. O problema é que, no âmbito das tradições espirituais, não é uma filosofia ou doutrina de prensamento  que está em jogo, mas elevações de ordem interior/espiritual e a iluminação ou kaivalya/moksha (liberação).

 

Não há, entretanto, nas escrituras budistas, relação de inimizade entre o Buddha Shakyamuni e a Tradição Védica em cuja cultura o Buddhadharma surge ou, ainda, com os deuses hindús. E, na verdade, o Buddhadharma não nega nenhuma Divindade que as tradições espirituais postulam, antes o Buddhadharma interage na sua caracteristica própria de buscar a Iluminação - a qual trata-se, também, da Realidade Ultima -  com as Divindade e Maras. Conforme as escrituras budistas, o príncipe Sidartha Gautama praticou a religião védica antes de renunciar ao mundo e, logo no início de sua busca - a qual durou 6 anos -, estudou e praticou meditação com dois professores hindús: Udraka Ramaputra e Alara Kalama. O reconhecimento do Brahmanismo e da realidade dos Brahma Loka (mundos de Brahma) é um fato concreto no Budismo inicial e nos desenvolvimentos posteriores do Mahayana bem como a participação coadjuvante, nas escrituras budistas, de deuses do panteão hindú - como Brahma (deus criador), Sakra (páli: Sakka - o deus Indra, regente das hostes celestes no Tryastrimsa), Prajapati, Yama (Senhor da Justiça e do Reino dos Mortos) além dos Yakshas (seres sobrenaturais, ligados às forças da natureza, com culto análogo àquele referente ao Yidam no Vajrayana), Gandharvas (páli: gandhabba - músicos/cantores), nagas, kimnaras e muitas outras formas de Devattas (deidades). No Mahayana e no Vajarayana ainda temos Mahakala e Vajrakilaya (Bhairava=Shiva) e Tara (Durga Devi), sendo que Kali (esposa/aspecto feminino de Mahakala) aparece no Vajrayana na manifestação de Vajrakhrodikali (tibetano: Throma Nagmo), a Irada Dakini Negra (no Dzogchen) bem como, também como Palden Lhamo (sânscrito: Shree Devi - correspondente a Mahakali) e Kurukulla (embora no Vajrayana tibetano Kurukulla seja referida como uma manifestação de Tara e Palden Lhamo/Shree Devi não seja associada a Kali, o que desenvolverei e procurarei esclarecer num próximo post). Mahakala (Bhairava=Shiva), Shree Devi/Mahakali (Palden Lhamo) e Yama são Dharmapalas - bodhisattvas protetores/guardiães do Dharma.

 

[nota: para o leitor não precisar deslocar-se a outro post que publiquei sobre o Buddhadharma ("Budismo moderno ou neobudismo?"), cumpre informar que para o Buddhadharma, nascido na Índia, Brahma é o deus criador (ver Majjhima Nikaya, 120). Pois a função e o karma de um Brahma é criar mundos; a de um Indra (Sakra) reger as hostes celestiais até o Trayastrimsa (região celestial dos Trinta e Três Devas ou Regentes) e a de um Yama dar a condução aos mortos que não alcançaram numa existência terrena nem mesmo o nível ético - e que dizer das elevações? Vai até Yama quem fracassou com seu karma e dharma)...]  

 

Na universidade monástica de Nalanda - centro de excelência do Budismo no Norte da Índia juntamente com Vikram(a)Shila - os estudantes não apenas aprendiam sânskrito, gramática e lógica, mas estudavam os Vedas dentre outros estudos doutrinais, uma vez que a universidade recebia visitantes estrangeiros, em geral eruditos, os quais tinham a possibilidade de debater, no recinto de universidade, com os eruditos budistas.

Os budistas perceberam a necessidade de formar indivíduos com um conhecimento consistente também da cultura védica predominante, na qual estavam inseridos e com a qual haveriam de interagir e, em muitas ocasiões, sobrepujar, resultando na expansão e na consolidação do Buddhadharma em território propriamente indiano, ao sul e ao norte.

Houve situação de debates entre hindús e budistas. Shri Shankaracharya, por exemplo, criticou e refutou o Budismo Sthavira (atualmente, a tradição Theravada) [*]. O próprio Buddha Shakyamuni declarou que o Buddhadharma teria um período de êxito na Índia o qual, entretanto, viria, posteriormente, a declinar - o que veio realmente a ocorrer. Os desenvolvimentos Mahayana e Vajrayana acresceram em alguns séculos a mais a presença do Buddhadharma na Índia.

 

[nota: O Buddhadharma, então, havia alcançado boa reputação e expansão no Norte da Índia, deslocando-se também para o Sul.

Ao tempo de Shri Shankaracharya (século VIII) o Buddhadharma já se ressentia de algum desgaste ou declínio na sua vitalidade; não tanto por estar desdobrado em 18 escolas indianas com perspectivas metafísicas sutis e diferenciadas  - Sthavira; Sarvastivada e suas ramificações Vaibashika e Sautrantika, etc. - mas por contar o Buddhadharma, também, com a presença de uma perseverante seita budista pautada em desvio doutrinal: a escola Pudgalavada (no final, doutrinalmente, nem Budismo nem Vedanta). Abria-se espaço para a reação e a restauração hinduístas.

Em relação às escolas budistas, não obstante meu apreço por Buddhagosa (autor do "Visuddhimagga" - "Caminho de Purificação"), as escolas mahayana Madhyamika e Yogachara sobressaíram e são referência até hoje - juntamente com a escola Amidista do Buddha  Amithaba - , literalmente como pedras preciosas complementando  - de maneira a coroá-lo -  o ensino do Budismo inicial.

A preservação da integridade e da força do Buddhadharma, na Índia, estava viva e firme no extremo Norte (nos mosteiros-universidade  como Nalanda, Vikramashila, Odantapuri, Somarupa, etc), os mosteiros contavam com mestres eruditos (como Shri Naropa - antes de tornar-se yogue - e Shri Vagisvarakirti - antes de tornar-se um dos maiores abades do budismo do Norte) para receber e, se o caso, travar debates com eruditos de outras tradições espirituais. Aos monges eram repassadas sólida formação Mahayana (abrangendo os ensinos Madhyamika e Yogachara, além dos ensinamentos vinculados ao Buddha Amitabha)  e as iniciações Vajrayana de diversos tantras, sendo que, conforme a transmissão, os monges se tornavam yogues, deixando os mosteiros para viver como errantes/itinerantes ou em situações diferenciadas (com efeito, a liberdade espiritual radical que permeia a energia do Tantra itinerante, kapalika - como o dos Yogini tantras - não é para viver confinada); porém, com a invasão e ocupação muçulmana (e a destruição de Nalanda), a estrutura praticamente perfeita - de uma riqueza espiritual e cultural magnânima e ímpar - ali desenvolvida pelo Buddhadharma não logrou para si a mesma preservação que o Shaivismo da Cashemira, tendo enfraquecido sem o complemento da estrutura material-cultural que o advento do Islam reduziu - à guisa de informação: ainda há budistas nativos na Cashemira.

O Buddha Shakyamuni, porém, não impugnou a Tradição Védica em si mesma, tampouco se colocou como seu opositor ou inimigo. O Buddha Shakyamuni não considera as tradições védica, vaishnava e shaiva como erros doutrinais - tal só ocorre em relação ao Jainismo e mesmo assim a conduta do Buddha com os jainistas  sempre foi digna, honrada, não obstante a refutação do Tathagata ao determinismo reencarnacionista alegado pelo Jainismo bem como ao seu ascetismo extremado e sua observação sutil quanto aos jainas, extremados ascetas, terem sido ladrões em existências prévias (Majjhima Nikaya, 14) - o que nos dá o que pensar, pois um Buddha como o Buddha Shakyamuni, por exemplo, em suas existências prévias tem sido sempre e continuamente um bodhisattva - ver Jataka/Nascimentos do Buddha Shakyamuni - sempre cumprindo a Lei e observando Dana/Karuna - Caridade/Compaixão).

O Norte da Índia onde o Buddha Shakyamuni surge padecia de um desgaste e um declínio espirituais patentes, com a presença de muitas seitas e erros doutrinais combatidos também pela Tradição Védica - ver Digha Nikaya 2 - "Os seis mestres do erro". O Buddha Shakyamuni trouxe consigo a Via dos Buddhas de volta à Índia. O Buddhadharma estava aberto àqueles que lhe eram aptos... não é, porém, errôneo afirmar que o Budismo inicial fez a correção que o reino de Magadha - e a Tradição Védica - precisava (Samyutta Nikaya 6)... ]

.

 

Consta na biografia de Vasubandhu - irmão de Asanga, da escola Yogachara - que o brâhmane Vasurato refutou o tratado budista “Abhidharmakosha shastra” de autoria de Vasubandhu; o próprio Vasubandhu, porém, conforme a mesma biografia, não se furtava a tais confrontos.

Os budistas, por sua vez - Nagarjuna e Shantideva -, criticaram, por exemplo, o Nyaya e o Samkhya (posição eternalista e, quanto à compreensão da Realidade Última - não há no Samkhya de Kapila nem no Nyaya de Akchapada Gautama um desenvolvimento como Shunyata/Vacuidade), ambas escolas hindús. Vale salientar que a natureza das posições - e objeções - budistas é de ordem metafísica, quanto à compreensão da Verdade Relativa ou Condicionada (samvritti satya) e da Verdade Absoluta ou Transcendental (paramartha satya), e a natureza da Liberação e da Iluminação; e não meramente entrar em confronto com a Tradição Védica, com os seis darshanas ou ainda outras tradições.

Eventualmente há casos como o do Charvaka (ateísmo materialista) e do Jainismo (ateísmo transcendentalista) enquadrados pelo Buddhadharma como doutrinas nihilistas/visões errôneas - não apenas por esses sistemas serem propriamente ateus, mas a impugnação budista objetou o materialismo do Charvaka e o desenvolvimento alegado pelo Jainismo: 84.000 reencarnações e alguém se torna um tirthankara, matematicamente.

Tais debates, - pelo que é possível depreender no exame das documentações que me foi possível examinar -, tinham profundo significado para os indianos védicos, vaishnavas, shaivas e budistas, ao ponto de o perdedor ter de escolher entre o exílio e a conversão - há documentação sobre caso de suicídio - , daí a preocupação com a preservação e defesa da doutrina budista por Nagarjuna, Asanga, Shantideva, Vasubandhu, Naropa e outros nos mosteiros budistas.  Se eles não defendessem a veracidade da posição e doutrina dos Buddhas da forma como fizeram, a posição do Buddhadharma seria "desligada" pela força da tradição hindú, como ocorreu em parte da Índia (na reação protagonizada pelos brahmanes e encabeçada por Shri Shankaracharya)...

.

Em quê, então, acreditam os budistas?

.

I - As quatro nobres verdades: Dukkha - sofrimento, por falta de equilíbrio/estabilidade na veracidade em nossa estrutura interior; a causa de  Dukkha é Trishna - sede  (também natureza-desejo) e a partir da adesão interior a trishna decorrem as preferências e aversões;  a libertação de trishna é Nirvana; e o Caminho Óctuplo da Retidão conduz ao Nirvana.

II -  As duas verdades; Samvritti satya  - Verdade convencional ou relativa -  e Paramartha Satya  - verdade transcendental ou final.

Do ponto de vista da Samvritti satya , o Buddhadharma não nega a existência de um plano de realidade além – devas (deuses, seres celestiais), asuras (semideuses/titãs), pretas (fantasmas famintos), maras (demônios, seres das trevas, nos estados de restrição/inferiores: bhutas, pisachas, rakshasas, etc), céus/terras puras e infernos. Tampouco da causalidade (hetuvada abrangendo karma, renacimento e originação dependente) que condiciona estes estados de ser.

Do ponto de vista da Paramartha satya  eis que Nirvana, Clara Luz, Shunyata (Vacuidade) surgem como posições que, do ponto de vista conceptual, aparentam ser neutras mas que correspondem, quando realizadas, à Realidade Final Viva.

O Buddhadharma não é agnóstico: através dos procedimentos adequados, a Paramartha Satya - Verdade Transcendental -  pode ser realizada . [*]

.


[nota: Ananda K. Coomaraswamy observou em sua obra "O que é civilização?" que o Budismo é nominalista ("as coisas são só nome") - em contraposição ao realismo hinduísta (cap. 2  - "Sobre a pertinência da filosofia"). As quatro nobres verdades remetem a um questionamento e a uma compreensão que se desenrolam a partir da estrutura interior do ser humano, do seu funcionamento e da validade dos skandhas (agregados psicofísicos) como sendo um  'eu'; o Samkhya e o Shaivismo (a escola Trika) nos entregam também um modelo, comprovadamente - e milenarmente - eficiente, para compreensão da estrutura do ser humano, apenas que o nirishvara Samkhya  (não-teísta)  não avança além de Purusha/Prakrti enquanto que o Ishvara Samkhya (teísta) e, mais ainda, o Shaivismo (o Trika) procedem este avanço. A meu ver - que aprecio e prezo as Upanishads ("Não sei que O ignoro") - o Buddhadharma é uma metafísica negativa - "sem ponto nem circunferência", diria Nagarjuna  - em uma sutil contraposição à metafísica afirmativa hindú ("Tat tvam asi" - "isto és tu"). Na orientação/condução a Brahman/Paramartha as pesquisas hindú e budista se encontram (por exemplo, quando alguém "entrando num lugar pouco iluminado, confunde uma corda com uma cobra" é um tema verificado por metafísicos de ambas as tradições - mas Shri Gaudapada foi acusado de sustentar formulações budistas). Enquanto as Upanishads nos orientaram e conduziram a Atman/Brahman - e Brahman impessoal ou neutro se desdobra, livre da Maya, como Sat-Chit-Ananda -, a metafísica budista se pôs a continuar examinando, verificando a Paramartha satya - Brahman, Realidade Última ou o Tao - sem postular afirmativamente um Atman/Si - ou com formulações budistas como o eu-búdico/sutra do Nirvana  e a natureza-própria/Hui Neng... Me dá a impressão que os sábios budistas foram absorvidos na Paramartha satya...]

.

 

E o Buddhadharma não é nihilista - os nihilistas, por exemplo, negam a existência dos devas (seres celestiais - como os anjos) e do fruto/resultado das obras implicando em existências post mortem nos céus ou nos mundos de restrição/privação como os infernos/Naraka e o mundo dos fantasmas famintos/Pretaloka.

Para o Buddhadharma,  o número de modalidades existenciais consiste em trinta e um reinos ou planos da existência, sendo que os seis reinos abrangendo homens, animais, semideuses, deuses, fantasmas famintos e demônios estão sujeitos ao karma e ao renascimento. Do ponto de vista do Buddhadharma, o primeiro dos reinos dos devas - correspondente ao 6º reino ou plano da existência - é um reino ou plano que pode ser atingido sem qualquer pesquisa interior/espiritual objetivando a Liberação/Kaivalya e está sujeito à roda do karma/renascimento. A partir do 7º reino ou plano temos elevações como a dos anagamins: não alcançaram a estado final ainda mas não voltam mais aos seis reinos da existência cíclica. O 31º reino ou plano é o da esfera da "Nem percepção nem Não Percepção", sendo que, após isto vem a Realidade Última, onde o Estado de Buddha é realizado.

No mais, a posição do Buddhadharma não se trata de, simplesmente, acreditar ou crer, mas valer-se dos meios hábeis/upaya e procurar angariar as acumulações de conhecimento metafísico bem como de mérito, e os resultados correspondentes a elevações e  iluminação.. Pessoalmente, a posição do Buddhadharma  me remete ao Taoísmo (Aquilo que pode ser nomeado não é o Nome Verdadeiro;  o Inefável de que se pode falar não é o Inefável. Reitero, porém: nem o Buddhadharma nem o Taoísmo são agnósticos; a perspectiva elevação/iluminação pode ser, pelos procedimentos adequados/corretos, realizada.

.

 

 

-III-

.

Se o Buddhadharma não era infenso à Tradição Védica nem à Tradição Shaiva nativas da Índia, tampouco às vizinhas Tradições Taoísta e Confucionista, na China - embora o Buddhadharma estivesse em expansão em meio às comunidades onde predominavam essas tradições e lograsse angariar conversões - , por que o seria em relação à Tradição Cristã - no caso o Catolicismo?

 

Alguns de nós nas fileiras das tradições orientais somos, na nossa origem, provenientes de situação que consiste em relação de indiferença/desinteresse, desafeto/aversão ou mesmo confronto com a Tradição Cristã - uns com a Igreja (por ex.: a Inquisição, o excesso de influência/poder do Clero), outros com a posição teológica, outros com o Protestantismo - mas o máximo que se poderia esperar do Buddhadharma originário em relação ao Cristianismo - ou ao menos em relação ao Catolicismo - seria uma maneira de tratar análoga às tradições de origem indiana e chinesa.

 

[nota: há ainda um ponto importante a ser notado: a Doutrina Oficial da Igreja Católica para Religiões Não-Crsitãos admite como autênticas o Hinduísmo (Brahmanismo, Vaishnavismo e Shaivismo), o Buddhdharma, o Islam e o Judaísmo... Devido ao trauma na China continental (proscrição da liberdade religiosa e submissão ao regime comunista) o Taoísmo (estudado por católicos juntamente com o Confucionismo) não foi incluído aqui...]

 

O Budismo toma refúgio - e também tem fé - no Buddha, no Dharma (Doutrina/Lei) e na Sangha (comunidade de budistas praticantes). Sem fé não há tomada de refúgio.

 

Mas alguém, recém-chegado, poderia observar: - “Mas os budistas também crêem - ou têm fé - ? Eles não são metafísicos?”. Ashvagosha é considerado autor do tratado “O despertar da fé” (Mahāyāna Śraddhotpāda Śāstra [*] ). Qual fé? A fé na viabilidade, confiabilidade e dignidade do desenvolvimento Mahayana do Buddhadharma. Veja só: se alguém não acredita, não tem fé (sradha) nas Três Jóias - não obstante as explicações metafísicas para tomada de refúgio - não há sentido em se tomar refúgio nelas - até porque alguém não acredita nas explicações metafísicas acerca de tomar refúgio, também.

 

[nota: os eruditos não localizaram o texto indiano desta obra atribuída a Ashvagosha, daí pairar dúvida sobre sua autoria, se aventando poder a mesma ser da mão de algum filho espiritual de Ashvagosha, de origem chinesa.]

 

Por que tomar refúgio em algo que eu não acredito na sua possibilidade/viabilidade? Em algo em que eu não tenho fé? Se insisto, a minha tomada de refúgio é meramente formal.

 

É possível demonstrar cientificamente a doutrina do karma e renascimento? Ela é uma doutrina basilar do Buddhadharma.

 

Alguns responderão que ela possui “razoabilidade” ou - melhor dito - que ela faz sentido. No caso, não é que o Tathagata Shakyamuni simplesmente teve fé na sua experiência anterior com a Tradição Védica a respeito de karma e renascimento; na verdade, quando da sua experiência de iluminação sob a árvore Bodhi, chegou a ele a visão interior/espiritual desse posicionamento bem como a sua importância para uma compreensão metafísica. O Buddha Shakyamuni chegou a karma, renascimento e causalidade (hetuvada) por experiência e visão diretas decorrentes do processo de ascese interior-espiritual que culminou em sua iluminação.

 

 

Assim, de fato, os budistas praticantes têm fé nas Três Jóias: Buddha - Dharma - Sangha; e nelas tomam refúgio.

 

Seja como for, não há impugnação da Tradição Védica pelo Buddha Shakyamuni, mas essencialmente da posição dualista. Outra característica doutrinal importante está no fato de o Buddhadharma ser a única doutrina em solo hindú não baseada em um "eu".

 

Destarte, o Buddhadharma enquadra como posicionamento inadequado a orientação/posição dualista. O Dualismo é metafisicamente, espiritualmente restritivo; inviabiliza a penetração radical ("radical" no sentido de se buscar a raiz da experiência interior/espiritual) -, não sendo apropriado para alcançar o resultado advogado pelo Buddhadharma que é a experiência búdica; e para constatar isto não é necessário ir-se muito longe no exame da documentação budista, basta consultar os ensinamentos do Digha Nikaya e do Majjhima Nikaya e, se se quiser, também, o Abhidamma do Budismo inicial.

 

Muito mais que não-teísta o Buddhadharma é não-dual (o Samkhya-nirishwara é não-teísta e dual no posicionamento com Purusha e Prakrti; o Nyaya é teísta e dual).

 

As quatro nobres verdades nos remetem a uma pesquisa espiritual que é interior. O Buddha Shakyamuni ensinou que as quatro nobres verdades não podem ser negligenciadas, pois não nos é de grande valia procurar por Ishvara (Senhor) no momento e situação em que devemos olhar para nós próprios, verificar o que somos (o que, em verdade, corresponderá à vontade do próprio Ishvara se Ele, Ishvara, é a Verdade, como nós fomos ensinados a compreender; e, desse modo, descobrirmos em nós mesmos nossos conteúdos e quem/o quê somos…). Qualificar o Buddhadharma como ateu, porém, se choca e contradiz com as próprias escrituras budistas, onde não se verifica impugnação à informação metafísica/espiritual asseverada pela Tradição hindú - védica/vaishnava e shaiva -, mas, antes, a corroboração desta informação (a existência dos devas - como Brahma, Indra (Sakra), Mahakala/Vajrakilaya (Shiva-Bhairava), Prajapati, Tara (Durga), Vishnú, os devas dos 33 (sânsc. Trāyastriṃśa; páli. Tavatimsa), Yama e os devas de Yama, os devas de Tushita, as devattas e outras formas sobrenaturais como os Nagas, Gandharvas, Kimnaras, Mahoragas, etc. -, bem como a existência do Pretaloka - mundo dos fantasmas famintos - e de Mara - o Maligno (nos Vedas, o ancião Ahi Vrtra Namuci, derrotado por Indra e Agni-Brhaspati) e do Narakaloka (mundos infernais - 16 infernos cujo principal é o Avici), etc. -

 

Não obstante a ocorrência de debates metafísico-doutrinais - maiormente a respeito da Natureza Essencial Última da Realidade e da Liberação - entre budistas e hinduístas, o fato é que o nexo entre o Buddhadharma e o Hinduísmo é de contiguidade ...

 

Ser budista significa que alguém percorre o caminho dos Buddhas. Todavia, ser “budista e ateu” é uma contradição doutrinal, já que o Buddhadharma não nega a existência das Divindades... se persevero nesta posição, então isto significa que ao mesmo tempo eu sou budista e ao mesmo tempo eu sou nihilista... Entretanto, à palavra “ateu”, no contexto moderno, pode ser atribuído significado mais amplo e diversificado e, dessarte, pode ser que “ser budista e ateu” signifique apenas que me parece razoável o Budismo mas não o Cristianismo - ou outra forma de tradição teísta - ou ainda que não me agrado das formas devocionais ou bhaktas de apreciação...

 

Muitos ensinamentos de Cristo, porém, são equivalentes aos ensinamentos budistas, contudo não numa forma metafísica - não sou o único nem o primeiro a fazer esta  observação. Compare-se, por exemplo, o ensinamento de Cristo acerca dos inimigos (São Mateus, cap. 5, v. 43-48 - "Amai os vossos inimigos e fazei bem os que vos aborrecem, orai pelos que vos perseguem e maldizem") e o ensinamento de Shantideva (Bodhicaryavatara, cap.6, v. 68, 87-88, 102, 107 - "A Paciência" - Shantideva explana que "um inimigo é como um tesouro") acerca do mesmo tema - o cerne dos ensinamentos e sua aplicação prática são equivalentes.

 

A mensagem do Buddha é, também, que ele trouxe à Índia um dharma verdadeiro (aqui a palavra "dharma" equivale a  "lei-doutrina espiritual", "religião" - por isto falamos em Buddhadharma: o Dharma dos Buddhas (cujo equivalente em relação ao Hinduísmo é Sanatana Dharma - Lei Eterna).

.

 

-IV-

 

Todavia, este enquadramento, não conclui, ainda, a questão que proponho aqui.

No caso de uma simplificação, incorremos cair em algo semelhante às disputas teológicas, por exemplo, entre Catolicismo e Islam ou entre Catolicismo e Protestantismo. Ou seja: Um crê na Cristo/Bíblia/Igreja e outro no Buddha/Dharma/Sangha.

 

Qual a Lei - ou Dharma - verdadeira?

 

Sempre há aqueles que  preferem se posicionar em relação à própria tradição espiritual através desse tipo de consideração, sendo inevitável a disputa - e isto pode até ser considerado normal. Estudo as tradições espirituais e esse posicionamento, a meu ver, não é, exatamente, salutar nem compreensivo - o que não significa que há, de minha parte, alguma confusão quanto à questão necessária da ortodoxia/observâncias doutrinais e da regularidade. A meu ver cada tradição espiritual que tem em suas fileiras homens e mulheres sagrados traz a sua tradução, os seus relatórios e itinerários para se chegar a uma compreensão do homem e da realidade.

 

O Cristianismo provém da Revelação; o Buddhadharma de um descobrimento metafísico, tanto interior quanto espiritual. A Metafísica é verdadeira e a Revelação é falsa? Ou o contrário? A meu ver ambas são verdadeiras e a possibilidade metafísica não está excluída da via cristã (vide Dionísio Areopagita, Meister Eckhart ou ainda Boehme).

 

Qual o melhor? O melhor está dentro da estrutura de cada pessoa, sem dúvida (comko vocção humana, não como mero subjetivismo).

 

[nota: Às vezes podemos almejar o Não-dual, entretanto a nossa convergência, a nossa possibilidade se desenvolve melhor numa via Dual; ou ainda, dentro de uma determinada tradição espiritual, podemos almejar uma determinada escola e métodos, porém, no correr dos dias desta curta vida,  os resultados no que consideramos o "melhor"  ficam aquém das expectativas. Devemos procurar, de fato, aquilo que nos é adequado.]

 

 

A aplicação objetiva a essa questão, a meu ver, é a seguinte: Todas as escolas budistas, nos três veículos (yanas) têm como fundamento a Não-Dualidade, enquanto que uma parte substancial do Catolicismo opera na aplicação dualista que o Buddhadharma enquadra como “Eternalismo”. É preciso entender que o Budismo não condena o Eternalismo (cf. "Majjhima Nikaya" 41 e "Ratnamala"/"Grinalda preciosa", de Nagarjuna, v. 44-45); o conselho do Buddhadharma para os eternalistas é que é possível - e para o Buddhadharma absolutamente necessário - dar um passo além: para a Não-Dualidade - o que implica para os budistas adesão e observância ao Caminho do Meio/Madhyamika - nem eternalismo nem nihilismo; nem existência nem não-existência.

A base - e raiz - do Catolicismo é a Revelação contida nas Escrituras Sagradas - a Bíblia -; mas a Bíblia não é um tratado ou manual de Metafísica como o são os sutras, karikas, shastras e tantras (no caso do Vajrayana e, já que falamos em tantras, do Shaivismo e do Shaktismo). Se a percepção hindú pode, por exemplo, encarar a Bíblia como o "Purana judaico-cristão" ( e os levitas e sacerdotes, bem como padres, monges, freiras e eclesiásticos como o equivalente judaico-cristão à casta sacerdotal brahmânica), ainda assim qualquer dos Puranas hindús está repleto de apontamentos metafísicos compreendidos como verdades espirituais. Já a posição bíblica é dualista/dual. Metafisicamente, por exemplo, a descrição do Inferno formulada por Dante, na Divina Comédia, aclara a nossa percepção do Inferno bíblico: cada falta, transgressão, pecado, crime ou ignorância tem uma destinação própria no Inferno descrito por Dante; uma tal descrição também se aproxima das descrições búdico-hinduístas, porém, nas últimas já se trata de vários Infernos. Sobretudo o Inferno bíblico nos remete ao Grande Inferno Avici.

 

 

-V- 

 

Há ainda a questão de Deus "Pai” - posição que só existe no Cristianismo. Os judeus - no caso, os fariseus - se escandalizaram por Cristo “se fazer a si mesmo filho de Deus”; quanto aos discípulos, há o pedido de São Felipe: - “Senhor, mostra-nos o Pai e é isto que nos basta...” (São João, XIV-8)...

Em relação ao Islam, Allah trata-se da divindade pura, sem forma - portanto não pode ter “filho”. No entanto o Islam admite Jesus, o Espírito Santo e honra Maria.

 

“Toda a dádiva em extremo excelente, e todo o dom perfeito vêm do alto e descem do Pai das Luzes, onde não há mudança nem variação.”. (São Thiago, cap. II-17).

.

 

A Igreja, contudo, não pode alterar a noção inicial de Deus, conforme o que é transmitido através das escrituras judaico-cristãs. Desde o ponto de vista doutrinal é dever da Igreja postular a posição inicial Eternalista à massa de fiéis como doutrina oficial - competindo aos vocacionados adentrar pelos estudos aprofundados.

.

 

Mas aqui está sendo explanada uma comparação entre Cristianismo e Budismo e, então, uma vez discernida a posição do Buddhadharma com a Não-Dualidade e o Caminho do Meio - que compõem a base do não-teísmo budista -, a questão agora é a seguinte: todo o Cristianismo - mesmo aquele vinculado ao Catolicismo Aprofundado - é Eternalista? A posição protestante é dualista/eternalista. Quanto ao Catolicismo, a resposta, a meu ver (que faço uma diferenciação entre Dualismo, Dualidade e Não Dualidade) é a seguinte: O Catolicismo é nalguns setores Dualista mas, na sua essência e exposição doutrina consagrada, Dual e, eventualmente, alguém pode chegar ao Não-dual. Basta verificar, por exemplo, S. Dionísio, pseudo Areopagita (Teologia Mística) ou Meister Eckhart (“Deus as vezes opera, as vezes não opera; a Divindade nunca opera"); fora do Catolicismo e do Protestantismo - mas no âmbito do Cristianismo -, ainda temos um Jacob Boehme: desde o ponto de vista da metafísica de Jacob Boehme é legítimo afirmar que os budistas trabalham ao nível do Ungrund/Sem-Fundo - e tanto Boehme quanto Eckhart trabalham com os dois níveis (Deus/Divindade; Deus/Ungrund).  O Shaivismo também nos acompanha nesta compreensão: diria que o Budismo trabalha já ao nível da Realdiade Última.

.

 

-VI-

.

 

 

Não-dualidade e os cristãos? Vai depender da vocação cristã. Se algum espiritual integrante do Catolicismo procurar se aprofundar no mistério de Cristo e não se deixar desviar por conclusões lógicas - ou ainda dualistas - e se ousar um pouco - "ousar" não no sentido malicioso ou numa determinação egóica e/ou sentimental (isto é: mera empolgação e entusiasmo), mas atuar como Meister Eckhart - onde esse espiritual cristão poderá chegar? As vezes, mesmo como budista (e, portanto, no posicionamento não-dual), me pergunto a mim mesmo, no âmbito do Catolicismo, em relação a Santa Teresa de Ávila e mesmo Santa Teresa de Lisieux, por exemplo, se falta alguma coisa a essas duas espirituais? Me vem a impressão ou sentimento de que não... Talvez Santa Teresa de Lisieux – não apenas santa, mas uma católica exemplar - pudesse ter avançado um pouco mais na Dualidade. A questão, talvez, seja chegar onde as duas conseguiram chegar... A meu ver, a posição dual - com a absorção em Cristo - é mais adequada à tradição cristã, mas isto está também dentro da estrutura de cada indivíduo.

.

 

Curiosamente, onde houve o encontro de católicos em solo originalmente budista - como, por, exemplo, no Japão -, houve budistas que objetaram, desde o ponto de vista da metafísica budista, a forma eternalista - e, portanto, dualista - do Catolicismo; mas os budistas, examinando os evangelhos, entenderam Cristo como um Buda; em continuação, budistas que tomaram contato com as obras de Meister Eckhart o compreenderam como alguém que desenvolveu uma percepção/visão convergente com a visão budista no âmbito do Cristianismo.

.

 

[nota: de fato, houve conflito no Japão entre as duas tradições e manipulação dos governantes ora a favor do Catolicismo – e contra os budistas – ora a favor do Buddhadharma – e contra o Catolicismo estrangeiro. O Catolicismo foi, em continuação, proibido pelo shogun Toyotomi, o qual desejava unificar a Japão sob sua autoridade, não admitindo a cultura estrangeira nem a divisão – na verdade, a nova ramificação – que a difusão da mesma criava na sociedade japonesa. A “Influência nefasta do Cristianismo” (título de um livro budista criticando a postura da presença cristã) alegada por algumas autoridades nipônicas não levou em conta que os recém-chegados do ‘Buda’ estrangeiro se puseram de pronto a levantar hospitais, socorrer os pobres e desvalidos, acalentar os caídos e enfraquecidos, agindo como verdadeiros bodhisattvas devem agir. Tal “influência nefasta” foi, na verdade, a influência nefasta das decisões políticas dos governantes japoneses Nobunada Oda, Hideyoshi Toyotomi e Iemitsu Tokugawa, já que, seja como for, no que concerne ao desencontro entre católicos e budistas, a inteligência de cristãos e budistas poderia chegar a um termo quanto à convivência/coexistência das duas tradições…]

.

 

Um amigo cristão me perguntou onde ele pode verificar melhor a doutrina da Não Dualidade. No contexto budista, sugeri a ele para começar com o Vimalakirti Nirdesha sutra; depois o Vajrachedikka sutra (Sutra do Diamante). Quem assimilar bem esses documentos pode avançar para outros relatórios, inclusive não-budistas.

.

 

- VII -

.

 

Quando a Igreja defende a posição que o Buddhadharma enquadra como “posição Eternalista” ela apenas defende aquilo que é a sua origem - a Revelação conforme a Bíblia, a qual é dualista/dual - e está correta: não pode colocar Meister Eckhart ou São Dionísio, pseudo-Areopagita (que, dentro da visão católica, para alguns podem ser considerados anomalias), à frente do ensino oriundo da Revelação bíblica, ficando o aprofundamento a cargo daqueles aptos para os estudos doutrinais (Patrística, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e São Boaventura).

.

 

[nota pessoal: não busco erudição nem tenho a pretensão de ser um erudito, mas apenas um estudante esforçado e humilde, - de fato, alguém que procura buscar o necessário ao próprio estruturamento doutrinal/espiritual, além de meu interesse pelas religiões/tradições espirituais. Sem negligenciar a doutrina católica tradicional - isto não faria o menor sentido - , junto com São João da Cruz, Santo Isidoro de Sevilha e São Boaventura, São Dionísio e Eckhart formam o “meu” Cristianismo, a "minha" posição cristã.

Com efeito, tanto cristãos e budistas, quanto aqueles posicionados nas demais tradições espirituais, necessitam inteirar-se das respectivas doutrinas, ortodoxias e possibilidades, além da regularidade e do zêlo na prática.].


.

 

O Catolicismo em sua doutrina oficial para religiões não-cristãs entende como espiritualidades autênticas o Hinduísmo (isto é: as tradições Védica, Vaishnava e Shaiva) e o Buddhadharma, tradições espirituais que abarcam em si escolas duais e não-duais -; mas desde o ponto de vista propriamente católico, algo como a Não-Dualidade, se pode ser posicionado como doutrina espiritual, só o pode dentro do que o Catolicismo qualifica como “Mistério”, uma vez que a Não-Dualidade ultrapassa o domínio propriamente dualista/religioso, encontrando-se já no nível metafísico (dual ou não dual).

.

 

Se eu sou teísta, necessariamente eu sou ou dualista ou dual (conforme os relatórios com que desenvolvo minha espiritualidade): e daí a distinção feita por Meister Eckhart entre Deus (relação dualista) e Divindade (dual e com possibilidade/abertura para a posição não-dual). A noção católica de “Mistério” implica justamente que há situações espirituais que vão além, sendo, de certa forma, um espaço não apenas para as percepções dos grandes santos e místicos que o Catolicismo nos deu, mas aplicável também para a dimensão metafísica. São Tomás de Aquino, após uma experiência espiritual, terminou seus dias em silêncio.

.

 

-VIII-

.

 

Há a questão, ainda, da doutrina da Absorção. Essa doutrina localizada no ambiente hindú - Brihad Aranyaka Upanishad - a absorção em Brahman com o fim da existência terrena para aquele que não logrou a moksha (liberação) enquanto ainda em vida [o estado de jivanmukta] mas logrou, entretanto, uma condição espiritual notável, consistente, profunda (não se há falar em "não dual", antes de realizada a compreensão da identidade entre sujeito e objeto). A Absorção como possibilidade não está adstrita ao contexto exclusivo do Hinduísmo mas é aplicável a espirituais de outras tradições (por exemplo: Rabia al Adawya ou Al Junnaid, no Islam e Maria, mãe de Cristo) e mesmo na própria Vedanta Advaita e no Buddhadharma (por exemplo - e a meu ver -: Mahaduta). A doutrina da Absorção, explanada no contexto hindú, trata-se de um processo espiritual verdadeiro que se efetiva onde as condições para tal se apresentam, entre elas uma situação espiritual verdadeiramente consistente e profunda.

.

 

Ao menos para mim, a natureza de Deus, ela mesma, está acima e além da compreensão humana; seja o que for a natureza de Deus ela está acima e fora da mente como nós imediatamente, ordinariamente percebemos a mente. De fato, me alinho com as Upanishads: "Não sei que O ignoro". A própria palavra “Deus” não é Deus - ela não é o que os teístas praticantes, amorosamente, almejam na via dualista/dual - já que ninguém almeja a palavra mas aquilo que ela significa ou tenta indicar.

 

Claro que o dualismo cristão teria a seu favor, por exemplo, a "Visão do Trono" do profeta Isaías (Isaías cap. VI), onde os serafins circundavam o trono cobrindo seus rostos para não olhar para o Senhor dos Exércitos. O próprio fato de os serafins cobrirem o rosto, porém, chega a ser significativo, afinal, “não poderás ver a Minha face porque homem nenhum Me verá  e depois viverá” (Êxodus 33:20 corroborado pela 1ª epístola de São João 4:12 e  1ª epístola de São Paulo a Timóteo 6:16); ou seja, isto não anula o Mistério. Quanto à posição dual, há a percepção, por exemplo, do Filho - Cristo Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem - onde, por trás do mistério do Filho há o do Pai - Deus, o Mistério acerca do qual a mente humana pode apenas cessar.

.

“Regnum Dei intra vos est” (“O reino de Deus está dentro de vós” - São Lucas cap. XVII, 21.

.

"Ninguém jamais viu a  Deus; o Filho Unigênito que está no seio do Pai, esse O deu a conhecer..."  - São João I,18.

.

Em relação à Trindade cristã, me alinho com René Guénon. Se por um lado eu entrevejo no ensinamento de Cristo a doutrina das Upanishads (“Atman é Brahman”) - mas isto é uma intuição minha -  mais ainda é possível sentir o padrão essencial da posição cristã no Vaishnavismo (em relação a Vishnú/Rama/Krishna) e no Amidismo budista (a compaixão infinita de Amitabha e a transferência de mérito/parinamana); quanto à Trindade cristã mesma – e pondo-se de parte a perspectiva dualista – Guénon tem observado (na obra “A Grande Tríade”) que ela é comparável ao Sat-Chit-Ananda da tradição hindú – e não à Trimurti (Brahma-Vishnú-Shiva). A comparação com o Trikaya budista também é pertinente (só não é pertinente na medida em queiramos ver Cristo sob a ótica do dualismo protestante).

 

.

 

Se pode crer, ter fé ou  não na Revelação. A Revelação, porém, faculta a possibilidade espiritual real. Se assim não fora o Catolicismo, por exemplo, no seu êxito - não no seu fracasso -, não teria nos dados homens e mulheres excelentes. Esses homens e mulheres excelentes muito mais que os esforços - louváveis e admiráveis - de Santo Tomás e outros santos padres e muito mais que a Dogmática são a confirmação efetiva da veracidade e da validade da Revelação bem como da validade da Dogmática (onde o próprio Santo Tomás - juntamente com São Boaventura -  é também um desses).

.

No mais, a Espiritualidade - seja qual for a tradição - é Êxito e Fracasso, Luz e Sombra, Guerra e Paz (Pausa, Descanso), Crescimento/Desenvolvimento e Regressão.

.

 

No meu sentir, cada qual deve ser fiel e seguir a vocação que percebe verdadeiramente dentro de si próprio - dual, não-dual e mesmo  dualista - e tentar, com sinceridade e efetividade, fazer o melhor (e, em verdade, o "melhor" é, em primeiro ligar,  nossa vocação)...

É a minha tradição espiritual a melhor? Devemos comparar - com os critérios de religiões comparadas - nossos estudos e realizações. 

Cada um, tendo interesse em adentrar uma tradição espiritual, deve procurar averiguar o que é melhor para si empreender estudos idôneos... 

.

____________________________________________

 

Blog principal

14/06/2013 19:20

Nosso novo blog foi lançado hoje. Fique atento e tentaremos mantê-lo informado. Você pode ler as novas postagens deste blog via RSS Feed.

<< 1 | 2

Blog

Mandarava. (revisado em 24/08/2016)

21/03/2016 18:34
Recebi uma crítica por algumas colocações minhas no post “Budismo Moderno. Igreja. Tantra – alguma consideração.”.   Especificamente, pelas seguintes linhas, na nota sobre o Tantra:   “Nos EUA, a "Mandarava", sra. Catherine Burroughs/Ahkon Lhamo, frequenta salões de beleza (nada em contra...

Histórias budistas: 1. Sasapandita jataka (o jataka da Lebre-sábia) - Conversão ao Budismo. 2. Mahaduta - Entendendo a doutrina do karna, renascimento e causalidade (hetuvada). (Revisado: 02/10/2015)

19/09/2015 23:05
    HISTÓRIAS BUDISTAS (revisado em 02/10/2015): 1. Sasapandita Jataka (Jataka-Atthakatha Livro III 48-52) – O jataka da lebre sábia. Dana (Dar-Caridade) e Campo de mérito. Shradda (Fé). Uposatha (páli)/Posadha (sânscrito) - Jejum.   Este post vem com duas histórias budistas...

Relembrando a tragédia da ocupação chinesa do Tibet

02/05/2015 23:11
Relembrando a ocupação chinesa do Tibet     Em setembro/2014, pela terceira vez, em cinco anos, Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama - líder espiritual da linhagem Gelug do Budismo Tibetano, iniciada por Tsong Ka Pa -, teve visto de entrada negado pelas autoridades da África do Sul, por...

Al Hallaj (Hussain Ibn Mansur Al Hallaj)

09/03/2015 04:26
    Al Hallaj (858-922 EC), “o que desperta as consciências” (o santo), “o que está perdido em Deus” (o místico) é um dos grandes sufis do século X, vinculado à tariqa/confraria sufi do grande Al Junayd de Baghdad (atualmente capital do Iraq).   Mansur Al Hallaj ("o cardador de...

Kabir. (Santo Kabir)

12/02/2015 06:49
    Kabir e Angulimala são bastante conhecidos por quem, nos meios ocidentais, tem interesse  pelo Sufismo, pelo Buddhadharma e pelo Vaishnavismo.       A informação sobre a Bhakti Marga (Via do Amor), sobre sua validade, relevância e consistência é...

1. Princesa Mira Bai. 2. Breve observação sobre a Bhagavad Gita e o Mahabharata.

07/01/2015 20:43
  (..)   "Indestrutível, Ó Senhor, é o amor que me une a Ti.   Como um diamante, que quebra o martelo que o atinge.   Meu coração vai para ti Como o lustre vai para o ouro.   Como o lótus vive em suas águas, Eu vivo em Ti.   Como o...

Hafiz - Shams Ud Din Mohammed

12/12/2014 20:15
Hafiz – Shams Ud Din Mohammed (1320-1389 EC)     Para terminar este ano, deixo aos leitores e amigos minhas anotações de alguma poesia de Hafiz - no caso alguns dos gazéis - cuja leitura penetrou em mim de tal forma que simplesmente os lembro de memória.   Na web está disponibilizado...

Mais zen...

06/11/2014 02:33
     Mais zen...       U.G.: “- Existe isto que chamam 'moksha' [liberação]?”   Shri Ramana Maharshi: “- Sim, existe...”   U.G.: “- Isto está em vós?”   Shri Ramana Maharshi: - “Está...”   U.G.: “- Há níveis nisto?”   Shri Ramana...

Bhakti Marga - Via do Amor

03/10/2014 13:35
Bhakti marga.   “Considero todas as grandes religiões do mundo – budismo, cristianismo, islamismo e comunismo – não só falsas, como prejudiciais...”, Bertrand Russell -”Por que não sou cristão”...   “A questão da verdade de uma religião é uma coisa, mas a questão de sua utilidade é outra,...

1. Religiões comparadas: Budismo e Sufismo.

30/08/2014 14:37
  1. RELIGIÕES COMPARADAS: (I) Budismo e Sufismo.   Religiões comparadas aqui neste blog se restringirá a aproximações mediante leituras notáveis e/ou significativas, - e sempre respeitando as diferenças - entre as grandes tradições espirituais, abordando preferencialmente o que pode ser...
1 | 2 >>

 

17/08/2013 - Moralidade cristã. Moralidade budista. Argumentação fraudulenta contra a moralidade religiosa. 

31/07/2013 - Em quê crêem os budistas? Não-dualidade e os cristãos.

03/09/2013 - Filosofia de botequim.

31/03/2014 - 1. Budismo moderno ou neobudismo? Nihilismo e distorções no Budismo Ocidental. 2. Karanda Vyuha Sutra.

12/06/2014 - Meditações na Era de Kali: I - o Mal.

03/10/2014 - Bhakti marga (Via do Amor).

07/11/2014 - Mais zen...

12/12/2014 - Hafiz (Shams Ud Din Mohammed).

07/01/2015 - 1. Princesa Mira Bai. 2. Breve observação sobre a Bhagavad Gita e o Mahabharata.

12/02/2015 -  Kabir (Santo Kabir).

09/03/2015 - Al Hallaj (Hussain Ibn Mansur Al Hallaj).

02/05/2015 -  Relembrando a tragédia da ocupação chinesa do Tibet.

04/07/2015 - Budismo Moderno. Igreja. Tantra. SANTOS BUDISTAS: 1. Hsu Yun; 2. Guru Drubtop.

19/09/2015 -  Histórias budistas: 1- Sasapandita Jataka - Conversão ao Budismo; 2- Mahaduta -  karma, renascimento e causalidade.

 

18/12/2015 -  Meditações na Era de Kali: II. Vale a pena ser  protestante/evangélico? Brasil e a  Ananda (Bem Aventurança).