Al Hallaj (Hussain Ibn Mansur Al Hallaj)

09/03/2015 04:26

 

 

Al Hallaj (858-922 EC), “o que desperta as consciências” (o santo), “o que está perdido em Deus” (o místico) é um dos grandes sufis do século X, vinculado à tariqa/confraria sufi do grande Al Junayd de Baghdad (atualmente capital do Iraq).

 

Mansur Al Hallaj ("o cardador de algodão"), foi uma persa que descendia de uma linhagem de sacerdotes zoroastristas, por parte de seu avô paterno.

 

Num momento em que os sufis, não apenas em Baghdad, mas em outras localidades, no intuito de evitar entrechoques e contendas com os Ullemahs/Doutores da Lei Corânica adotavam uma postura caracterizada pela discrição e por deixar em paz o grande público, Al Hallaj, em alcançando êxitos significativos em sua prática espiritual e ascese, surge divulgando e pregando a Unidade e o Amor Divino, muitas vezes em locais públicos - como praças e centros abertos com concentração de pessoas -, se dirigindo, conforme a disposição que o guiasse, a quem quer que fosse do público em geral (e tornando-se pai espiritual de muitos que, pelos seus feitos miraculosos e pregação, tornaram-se seus discípulos).

 

[nota: quando Hallaj se associou à tariqa de Al Junayd o mesmo orientou-o a que observasse retiro e silêncio. Com efeito, Hallaj cumpriu a recomendação do mestre por um certo número de anos; entretanto, com o surgimento dos resultados benignos em sua ascese, decidiu, de per si, romper com a norma e seguir a vocação que pulsava dentro de si, o que foi motivo de desagrado e censura pelos sufis que observavam a sobriedade e a discrição ...]

 

Hallaj esteve por dois anos com o mestre sufi Abd Allah Teshtari, após o que se tornou discípulo de Al Junayd de Baghdad. Fez três peregrinações à Meca sendo que, na primeira delas, permaneceu por um ano, frente à mesquita, em jejum e em silêncio. Fez viagens distantes para localidades da Ásia Central bem como à Índia e seguidores iam se agregando ao santo. Findas suas viagens, estabeleceu-se em Baghdad.

 

 

Fato, para mim notável, é constar no registro biográfico que Al Hallaj usou as vestes amarelas (açafrão) dos yogues e gurus indianos. Eivados de uma visão não-estreita e aberta ao reconhecimento da validade de outras posições/orientações tradicionais, eis que os Sufis se associaram com posições do Hinduísmo como o Vaishnavismo, o Vedanta e o Yoga. Um caso exemplar sucedeu em relação à Tradição Natha - shaiva yogins remontando a Matsyendranath e Gorakshanath, com várias ramificações  -, que abrigava em seu âmbito shaivas, budistas e também muçulmanos sufis (com a chegada do Islam à Índia) através da observação de uma regra comum pelos membros das diversas confissões, devendo ser mencionado, inclusive, que a Tradição Natha teve, onde ela agregou membros sufis, muçulmanos na posição máxima de liderança da ordem. Como os membros da Tradiçao Natha mantinham regularmente suas posições de origem - budistas vajrayana e sufis -, naturalmente algumas práticas dos sufis indianos foram incorporações resultantes deste contato dos sufis com posições das tradições originárias da Índia. Nao há base documental para eu afirmar, por exemplo, que Hallaj contactou e/ou integrou algum ramo da Tradição Natha (e, sinceramente, no momento eu repassaria a incumbência desta verificação/reconstituição aos eruditos da área); mas verificando sua biografia - e não apenas em decorrência de seu deslocamento material à Índia - percebe-se (para a minha pesquisa, nitidamente) que ele praticou - e dominou - técnicas do Yoga, as quais ele poderia tê-las aprendido com os próprios sufis indianos[*].

 

[nota: tentando eu efetuar uma reconstituição pessoal de quais foram as práticas espirituais de Hallaj – uma vez que Hallaj possuía faculdades supranormais/siddhis -, dá-se a entender que ele, no mínimo, praticou (e foi bem sucedido nesse propósito) o Hatha Yoga e/ou o Kundalini Yoga. Se conta que certa vez, num ajuntamento, Hallaj adotando uma ásaná (postura corporal do Yoga) consistente em suster-se apoiado sobre os ombros e a cabeça com as pernas para cima (ásaná realizada com objetivo de movimentar e fazer ascender a Kundalini), ao invés de manter-se em silêncio na execução da referida postura, começou a rezar o Dikhr (prece contínua muçulmana) - o equivalente a um yogin indiano ou ocidental, adotando a mesma postura corporal, acrescentar, no interim da execução da mesma, a entoação/recitação de japa

 

Em relação aos siddhis/faculdades supranormais, Mansur realizou um feito público miraculoso em Baghdad, por fazer aparecer num pomar, por sua intercessão, frutas próprias da estação de verão em pleno inverno; entretanto, quando chegou o verão tornou a surpreender fazendo surgir frutas do inverno na estação quente. Hallaj era capaz de perceber e revelar o que tinha sido feito pela pessoa em segredo e conhecia os pensamentos mais íntimos dos que se aproximavam dele.

 

Essas faculdades supranormais não denotam nem caracterizam a presença de uma elevação ou de uma iluminação efetivas, sendo apenas consequência da execução correta e contínua de algumas práticas e exercícios espirituais – como os desenvolvimentos da prática do Yoga, por exemplo - podendo, inclusive, os siddhis se tornarem uma fonte de estorvo e desvio, um “narcótico espiritual” (e mesmo uma doença) para o seu possuidor e para aquele que aprecia presenciar a sua manifestação – o autoengano tem várias fontes: não apenas o que pode advir como decorrência da postura adotada em relação ao surgimento/manifestação de faculdades supranormais, mas também as belas e bem colocadas palavras, a erudição e a acumulação de conhecimentos – necessárias já que não é possível avançar sem informações verdadeiras, fidedignas, objetivas e abrangentes - porém sem a contrapartida da realização interior/espiritual. 

 

Além do mais, se são os siddhis que alguém está interessado em - ou procurando por -, vale lembrar que nem todos os praticantes – no Yoga, por exemplo - desenvolvem siddhis; e isto é assim, mesmo que, no caso do Yoga, pratiquem por anos a fio e ainda que cumpram todas as séries  de ásanás e demais exercícios, preceitos e sadhanas prescritos bem como estejam vinculados/conectados a uma família/linhagem espiritual autêntica (afinal, não obstante a possibilidade efetiva de advirem benefícios reais à saúde, todavia o Yoga: 1) não é "ginástica" e 2) possui transmissão). 

 

A verdadeira realização interior/espiritual pode ser percebida em Hallaj, o qual tinha um coração puro – pois que nunca perdeu o foco na Unidade e no Amor Divino -, sendo possível perceber, no seu caso pessoal, que os siddhis para ele eram não mais que meros acessórios - ou ainda meros “brinquedos” - que ele se valia quando julgava conveniente... 

 

Não deve ser negligenciado também que Al Hallaj recebeu a Baraka de dois santos sufis: Teshtari e Al Junayd, e deve ser considerado a possibilidade de outras transmissões advindas de seus contatos em Ásia Central e Norte da Índia. Pessoalmente, entendo que Hallaj não precisava do rito que submete os Djins (gênios, espíritos de índole boa e má) - rito esse pertinente à senda/mundo dos magos -, haja vista a sua bem estabelecida colocação com a perspectiva da Unidade e do Amor Divino. É improvável que este rito tenha vindo de Al Junayd ou Teshtari. O padrão espiritual de Al Junayd, por exemplo, é altíssimo; e ele, prudente, desenvolveu uma exposição do Sufismo que não se chocava com os Ullemahs...]

 

Entre o povo simples de Baghdad corriam os comentários que Hallaj poderia ressucitar os mortos, e que os djinns – gênios, espíritos benignos e malignos - lhe eram totalmente submissos, e faziam tudo o que ele pedia. Também Hallaj desconsiderava os Ullemahs, baseando seu ensinamento em Cristo, quem ele considerava ser um sufi e reverenciava. 

 

O sogro de Al Hallaj  indignou-se contra ele em decorrência de suas façanhas, exposição e fama – e lamentou ter dado a mão da filha em casamento a um “mago astucioso” e um farsante. Mansur foi pai de quatro crianças. 

 

Para os Ullemahs, Hallaj se tratava de um feiticeiro e de um apóstata.

 

Posteriormente, Mansur haveria de ser condenado primeiro à prisão, depois à pena capital, por membros da corte abássida - em conluio com os Ortodoxos - como fanático e cristão secreto.

 

 

O Objetivo Final para o Sufismo é a Identidade Suprema. Requisito necessário para se chegar a esta posição é a eliminação da dicotomia entre sujeito e objeto. O Sufismo desenvolveu em sua metafísica a doutrina do Fanna/Extinção do 'Eu' ('Nafs'). Fanna é realizado pelo sufi que destruiu ou desembaraçou-se da noção de identidade baseada em um 'eu' (nafs). Entenda-se: o 'eu'/nafs é “eu” psicológico, tendências e inclinações latentes, é natureza-desejo; não o que é. Realizado o Fanna/Extinção o que há, então? ou o que resta? Para o Hinduísmo, a consciência testemunha; já a resposta budista é que há apenas o que é - em ambos os casos a verdade daquilo que nós sempre somos [*].

 

[nota: após a leitura do pequeno e ótimo livro “A mente na psicologia budista” de Ye-shes rgyal-mtshan (Geshe Gyaltsan) - o título original é "O colar da compreensão clara" -, traduzido do tibetano para o inglês pelo prof. Herbert Guenther juntamente com Leslie S. Kawamura, decidi engajar-me mais detidamente nesse estudo da abordagem Yogachara – especificamente a obra explana o Abhidharmasamuccaya (de Asanga) complementando as explanações com comentários do Abhidharmakosha (de Vasubandhu), e algo do Sikshasamuccaya (este de Shantideva, o qual não foi da escola Yogachara). 

 

Acompanhando com vagar o trajeto exposto nesta obra, tomando notas num caderno e me esforçando em absorver corretamente aqueles ensinamentos sobre o funcionamento da mente, acordei numa manha e não ocorreram a mim as recorrentes impressoes da psique (nem as conhecidas samskaras e vasanas -  bem como kleshas/más paixões e, no plano dos tattvas, o constituinte  ahamkara/sentido dualista de separação  "eu"/"mundo"-"eu"/"outros" ou sentido egotista - conforme o ensino das escolas shaiva e samkhya; já na doutrina sufi, foram categorizados 54 nafs/'eu' e atingir Fanna/Extinção significa ter queimado, extinguido todos esses padrões, no sentido de não mais interpretá-los/reconhecê-los como sendo “meu eu”); acordei naquele dia e passei aquela manhã inteira sem o peso, sem a carga do 'eu' psicológico, sem a bruma do ahamkara  - enquanto que as tendências latentes fluíam sem a identificação egotista. 

 

Se alguém me perguntasse: “e como é isto?”. Shiva dançando sobre o anão. Uma abertura, uma fluidez mental, como uma cachoeira cristalina deslocando-se naturalmente para um rio limpo, sem as categorizações do egotismo... Um dos objetivos da prática espiritual é fixar permanentemente esta abertura ou fluidez... 

 

No mais, sendo eu um Madhyamika, nunca mais a abordagem psicológica do Yogachara saiu da minha casa...]

 

 

 

Al Hallaj proclamou, abertamente e em voz alta, às pessoas em Baghdad, as seguintes declarações:

 

  1. Ana al-Haqq” ("Eu sou a Verdade").

  2. Debaixo deste turbante nada existe a não ser Deus”

  3. Sob este manto não há nada exceto Deus”

 

Al Haqq” (“A Verdade”) é um dos 99 nomes divinos de Allah constantes no Corão; então, num primeiro momento, isto poderia levar a crer que Hallaj talvez pretendesse dizer que ele, pessoalmente, era o próprio Deus - o que implicaria em delírio, megalomania ou esquizofrenia (ou ainda endemoninhamento).

 

Para o Sufismo, porém, “Al Haqq” corresponde a uma elevação espiritual, a qual, não obstante tratar-se de grau espiritual elevado, ainda não se trata da Identidade Suprema, antes de uma aproximação incisiva e decisiva até ela.

 

Al Junayd, constatando a realização espiritual de Hallaj, havia orientado-o: "Ficai quieto. Eu sei, tu sabes, e é o suficiente. Não precisas dizer isso a ninguém - caso contrário, tu estarás em perigo e irás criar perigo para mim e para outros discípulos também... posso ver que alcançaste. Mas que isto seja um segredo entre eu e tu."

 

As autoridades religiosas se escandalizaram com as declarações feitas em público e Hallaj foi detido e preso como herege.

 

Instado a se retratar, recusou todavia fazê-lo, o que lhe custou a prisão por dez anos.

 

Num momento de profundo êxtase místico, Al Hallaj gritaria diante do próprio Califa: “Ana al Haqq”.

 

Como os cegos não enxergam, nem o califa nem as testemunhas das declarações inusitadas de Hallaj - proferidas no ínterim de estados de êxtase espiritual/místico - foram interpretadas corretamente. Não viram nem perceberam que diante deles estava um pessoa santa, embora um louco – entretanto não um louco em delírio por aflição mental, mas um louco divino -, maravilhado, deslumbrado com a abertura interior/espiritual, com seu transbordamento. Por causa disto Hallaj foi rejeitado e condenado - quando ele deveria ser deixado livre e em paz pelas autoridades. Mansur foi condenado sem haver crime [*].

 

[nota: O que fazer com seres humanos em situação como a de Al Hallaj? A resposta é: Nada. Ou, então, classificá-los como "loucos divinos" mas deixá-los livres, não perturbá-los. É como a Índia procede com os loucos divinos. Se Al Hallaj se conduzisse da maneira como se conduziu nas localidades do Norte da Índia, os indianos, presenciando suas ações, explicariam que se trata de um santo yogue ou um avadhuta muçulmano...]

 

Certa ocasião Al Junayd e Al Hallaj conversavam sobre a Tasawuff (Metafísica). Junayd, alterando o rumo da conversa,  disse, "Ó Mansur, antes de não muito tempo teu sangue vai avermelhar a cabeça da estaca.". Hallaj respondeu: "O dia quando eu avermelhar a cabeça da estaca, tu vais lançar fora a veste do derviche e assumir as vestes dos homens comuns.".

 

 

Posteriormente, mantendo Hallaj a mesma posição, o califa abássida Al Muqatadir, em conluio com as autoridades religiosas, condenou-o à morte por heresia.

 

Ante disto, Al Muqatadir convocou Al Junayd – o qual estava entre aqueles que rejeitaram Hallaj (em decorrência, no caso de Al Junayd, não das declarações em si, mas da exposição que poderia sobrevir aos sufis e ao Sufismo). Al Muqatadir disse, "Ó Junayd, qual é o significado destes dizeres de Mansur?". "Ó califa", respondeu Junayd, "este homem deve ser levado à morte, pois tais dizeres não podem ser razoavelmente explicados pela literatura sufi...”.

 

No dia em que Mansur foi levado à execução, todos os Ullemahs assinaram a sentença de morte. "Junayd também deve assinar," disse o califa Al Muqatadir.

 

Junayd colocou um manto e um turbante próprio dos Ullemahs e assinou – dando a entender que era a ortodoxia não-metafísca quem condenava Hallaj, e usando "vestes de um homem comum" como previsto por Mansur - a sentença com a seguinte observação; "embora aparentemente Mansur mereceu a morte, interiormente ele possuiu o conhecimento do Altíssimo."

 

Condenado como herege e como cristão em segredo, decidiu-se também crucificar Al Hallaj. Um derviche foi visitá-lo no patíbulo, aproximou-se e perguntou: “Ó Mansur, o que é o amor?”. Ao que Hallaj respondeu: “Tu o verás, hoje, amanhã e depois de amanhã...

 

Era o dia 26 de março de 922 EC. Al Hallaj, num ato realizado em três dias seguidos, foi acorrentado, espancado, torturado, açoitado, crucificado e mutilado... seu corpo foi decapitado, seus restos mortais queimados e as cinzas espalhadas no rio Tigre.

 

 

Eu sou Aquele que amo

E Aquele que amo é eu

 

Nós somos dois espíritos

morando em um corpo

 

Se tu me vês Tu vês a Ele também...

E, se acaso o viste, tu viste a nós ambos juntos...”

 

 

Uma noite se levantou o Sol que amo 

Resplandeceu e já não se ocultou mais.

 

Pois o sol do dia se recolhe em prol da noite

Mas o Sol do coração jamais se ausenta...”

 

 

A separação existe para a realização.

A realização para o verdadeiro caminho do amor.

A amor que nada quer,

O amor que nada necessita,

Nem mesmo ser amado

Porque num tal estado de realidade

Amante e Amado não são dois separados

Nunca!

Mas dois tornam-se um.

 

Contemplai!

Esse é o segredo do sufi

Dito por Mansur al Hallaj,

'Ana al Haqq',

Um verdadeiro amante em submissão total e aniquilação (fanna).

Imergiu no amor divino do Amado Final”

 

 

Cortaram as mãos e os pés de Al Hallaj, de modo que ele ficou amarelo com a perda do sangue. Logo, porém, ele esfregou os cotós dos braços no rosto, dizendo:

Nao me convém parecer pálido, porque pensarão que estou com medo”...

 

A isto, Farid Ud Din Attar, anotou:

 

Quem come e dorme no mês de julho com o dragão de sete cabeças se dará muito mal num jogo desses; mas o patíbulo será uma coisa insignificante para ele...”

 

O “dragão de sete cabeças” é a ascensão da Kundalini pelos canais sutis, percorrendo os sete chakras. Attar quer dizer que nalguma pequenina coisa, nalgum pequeno detalhe Al Hallaj não foi perfeito ou distraiu-se... Isto não alterou, porém, o resultado da sua realização.

 

Ibrahim Ibn Fatik, um discípulo de Hallaj, anotou [*]:

 

 

"Quando Al Hallaj foi levado pela turba para ser crucificado e viu a cruz e os cravos ...disse uma oração de duas inclinações [ajoelhando-se para rezar]. Eu estava muito perto dele. Recitou, primeiramente, a Abertura do Al Corão e o verso: “E te provaremos e tentaremos com o mau e o odioso” (Surata 21:35). Na segunda inclinação recitou novamente a abertura e o verso que principia com “Toda alma provará o gosto da morte” (Surata 29:57). Quando ele acabou, disse algumas palavras de que não me lembro, mas aquelas que me lembro foram as seguintes:

 

"Ó meu Deus, que estais revelado em todo e qualquer lugar e que não estais visível em qualquer lugar, eu vos rogo pela verdade da Vossa Divina Palavra, a qual declara que eu sou, e pela verdade da minha frágil palavra humana que declara que Vós sois, amparai-me em gratidão por esta Vossa Graça, que haveis escondido de outros e que haveis revelado a mim da Glória de Vossa majestade; e lhes haveis interdito o que me haveis permitido: a visão das coisas secretas pelo Vosso divino mistério.

 

E esses Vossos servos que estão aqui reunidos para me trucidar, em zelo pela Vossa religião, buscando Vosso favor, perdoai-lhes, Senhor. Pois se Vós lhes houvésseis revelado aquilo que Vós revelastes a mim, eles não estariam a fazer aquilo que estão fazendo; e tivésseis Vós ocultado de mim o que tendes ocultado a eles, jamais eu teria sido tentado nesta grande tribulação.

 

Louvado sejais Senhor, por tudo o que fazeis; louvado sejais por tudo o que esteja em Vossa Vontade...

 

Em continuação, Ibn Fatik concluiu:

“Fez-se depois grande silêncio... O carrasco avançou alguns passos e desferiu um tremendo golpe que lhe esmagou o nariz e a boca, enquanto o sangue corria pela sua túnica branca. Al Shibli [mestre sufi] que estava entre a multidãao, gritou em altas vozes e rasgou as suas vestes. Abu Hussein al-Wasitti desmaiou e o mesmo aconteceu com outros famosos sufistas que ali estavam, pelo que um motim quase eclodiu àquela altura. Depois, os carrascos terminaram seu trabalho...”.

 

[nota: obra “Islamismo” por John Walden Williams, publicado no Brasil dentro da coleção Biblioteca de Cultura Religiosa, 1964, Zahar Editores. O prof. Williams extraiu este testemunho dos estudos sobre Al Hallaj empreendidos pelo erudito francês prof. Louis Massignon - os trabalhos do prof. Massignon são a principal referência ocidental de estudos sobre Al Hallaj. 

 

No mais, do ponto de vista do exposto por Ibn Fatik,  patente a relação de unidade entre Islam e Sufismo. Embora  uma boa parte dos Ullemahs prefiram o teísmo dualista, o que corresponde a apenas um nível, uma esfera de se vivenciar o Islam e que, com as traduções modernizadas como as de Sayyd Qutub conduziu uma parte do Islam - tradição espiritual que reconhece a validade de outras posições - a uma visão reducionista da validade das outras tradições espirituais que o Islam sempre reconheceu, já eivada no seu nascedouro das características fundamentalistas.


No Ocidente temos a observação doutrinal repassada por René Guénon e os perenialistas de que "não há Esoterismo sem um Exoterismo que lhe corresponda"

Essa informação é verdadeira, em relação às tradições espirituais em geral (e ao Islam em particular),  no sentido de que: nem todos têm vocação metafísica, mas muitos têm abertura para a Espiritualidade. Nem todos são jnanis  mas a Via do Amor está aberta e é benigna a todos. Não obstante o desenvolvimento no Ocidente - bem como o crescimento - de correntes de opinião e engajamentos que pretendem limitar a possibilidade humana numa interação com a Realidade isenta de quaisquer considerações sobre o que concirna ao "Transcendente", "Espiritual" ou "Metafísico"; o fato é que o ensinamento de Cristo permanece atual: "A seara,  verdadeiramente, é grande, mas poucos os obreiros" (São Matheus 9-37).  Esoterismo (Metafísica - na caso, Metafísica Tradicional não a acadêmica derivada  da Filosofia) e Exoterismo (Religião) numa situação de normalidade, se complementam. 

O Esoterismo corresponde à Metafísica Tradicional - verifica os princípios, as essências espirituais e planos de ser e a possibilidade de reintegração com a Realidade Última - enquanto que o Exoterismo corresponde ao domínio religioso - adesão a uma confissão religiosa, integração com os ritos e práticas objetivando, num primeiro momento, a Salvação post mortem – construída, contudo, em vida - a qual consiste em participação na Bem-Aventurança (participação essa, todavia, no nível que alguém consigar alcançá-la, pelos relatórios e meios do Exoterismo), em relação a Céu e Inferno - o que não impede que, no domínio religioso, individuais alcancem elevações, mesmo sem valer-se dos relatórios e meios metafísicos. 

Na prática, na relação Exoterismo/Esoterismo os relatórios tradicionais metafísicos são mais aprofundados e as transmissões correspondem a realizações conforme  ao indicado em tais relatórios. O Budismo e as tradições hindús são metafísicos (e os relatórios metafísicos existem inclusive nos desenvolvimentos baseados na Bhakti Marga – Via do Amor – bem como no Amidismo). O Catolicismo engloba os dois níveis, mas o Catolicismo aprofundado só se torna acessível aos católicos que se engajam não apenas nos estudos, mas na efetivação da contemplação, dos exercícios espirituais e na realização da Vida Unitiva. O Islam tem sua tasawuff (metafísica) posicionada no Sufismo; e o Judaísmo na Kabbalah. 

O Protestantismo é não-metafisico, o que o conduz, pela sua estrutura sem os relatórios do Cristianismo tradicional, a ser antimetafísico bem como a restringir-se ao nível inicial do Louvor/Adoração, sem outros desenvolvimentos. Isto chega a ser estranho, pois entre os protestantes cultos, há eruditos que não apenas sabem grego e hebraico mas conhecem os documentos da Igreja Primitiva (conhecem também estudos valiosos, com importância para a perspectiva  cristã, como o do sábio francês René Girard e também Mircea Eliade); entretanto tal acervo de sabedoria e experiência cristãs não é incorporado em tempo algum ao que é repassado aos fiéis nem em cursos de doutrina (se limitam a cursos bíblicos, os quais, obviamente, são apenas iniciais). Tal situação pode gerar alguma ilusão e algum equívoco, pois há protestantes que acreditam ser tãos efetivos e tão profundos quanto o Cristianismo Primitivo - não desrespeitando o esforço pessoal de ninguém, mas isto é uma ilusão. A idéia fundamentalista de um Cristianismo "sola scriptura" (somente a Bíblia) é um produto moderno, inexistente na Igreja Primitiva, a qual se valia de obras como a Didakê e a Filokalia, registrava e prezava as homilias além das obras instrutórias/doutrinais e evangelizadoras dos santos padres.  Em relação à Igreja Primitiva os protestantes estão apenas - e, pelo que se vê, até o dia do Juízo Final - nos primeiros rudimentos. Os protestantes não sabem em que consistiu/consiste a  Liturgia Tradicional,  preservada enquanto o Catolicismo se manteve firme nas posições consignadas nos sete concílios ecumênicos - e a que, tristemente, o Concílio Vaticano II conduziu a Igreja a abrir mão, posicionando a Igreja na Via Mística, ao nível dos protestantes. A situação espiritual que se formou com o deslocamento do Catolicismo para a Via Mística a meu ver é tão grave - uma preservação fundamental, essencial do Cristianismo Primitivo (a Liturgia Tradicional) foi simplesmente "desligada" e isto  não por ineficiência ou ineficácia mas por não ter a aparência exterior que uma parte das pessoas modernas acha aceitável ou concorda - que a Igreja, hoje, respira menos no seu próprio alento/contrapartida, no seu próprio depósito espiritual, na sua dispensação e exaltação.  Há pessoas - mesmo na classe sacerdotal - que não entendem o que é um rito verdadeiro e, consequentemente, tampouco o seu valor e importância... Não tenho a pretensão de entender mais de liturgia que os sacerdotes e minha visão e formação pessoais em torno do Cristianismo não correspondem à amplitude que os estudos cristãos necessitam - não sei grego nem hebraico e preferi especificar/delimitar meus estudos cristãos, no intuito de que as escolhas alocadas em meu "perímetro" resultassem em uma espiritualidade viva e não simplesmente em um erudito (e, por sinal, para se chegar ao nível próprio de um erudito/scholar saber grego, hebraico e aramaico seriam de grande valia) - porém o fato é que eu fui  testemunha pessoal de uma transição da Liturgia Tradicional para a Nova Liturgia/Nova Missa: o padre da igreja que eu frequentava já era idoso, e estando eu já há um ano por ali, o mesmo veio a falecer; aqueles que o sucederam entenderam por bem cumprir a diretriz  ordenada pelo Concílio Vaticano II (efetuar a transição com a saída dos padres mais velhos) e deste modo, naquela paróquia foi cumprida esta medida. E qual a diferença (se há realmente alguma de fato)? Significativa. Este post é sobre o Sufismo... imagine-se o Sufismo sem Baraka/Benção, as tariqas nessa situação cairíam imediatamente na Via Mística (embora o padrão do Sufismo prime pela busca de elevações, eles também ficariam sujeitos não apenas à redução em algumas consecuções e habilidades mas também a desvios e erros). Diria que a Liturgia Tradicional  foi substituída por uma construção intelectual (embora oriunda da mente sacerdotal) e a contrapartida relativa à Liturgia Tradicional ficou sem "instrumentação" (sem aparato ritual) para interargir, para afluir com a Missa (do ponto de vista do SufIsmo, ficamos "sem vinho" -  e deslocado o rito (a missa) do depósito espiritual da Igreja para a Via Mística, também a Eucarisitia é envolvida neste processo). Pessoalmente, com a transição,  acabei ficando, na época dos fatos, sem "residência" na Igreja, daí o meu deslocamento (uma amiga minha explica que a posição espiritual que a minha estrutura reconhece e procura está vinculada à Liturgia tradicional; segundo ela, eu "não encontro a minha família espiritual na Igreja fora da liturgia e práticas tradicionais"). Diante disto, insisto em afirmar que uma preservação, uma continuidade legítima, autêntica da Igreja Primitiva foi "desligada" e a Igreja alinhada com a  Via Mística. 

Continuando, na relação Exoterismo/Esoterismo, fica, entretanto, a questão da vocação. Se eu estou em paz no domínio do exoterismo não tenho porque me envolver com metafísica tradicional sem ter vocação para a mesma.


No domínio religioso, se alguém está fora dele, normalmente esse alguém é uma pessoa mundana – não necessariamenrte uma pessoa com conduta questionável ou execrável (embora existam os “perdidos” e “desandados”), em muitos casos, o que temos é o que se vê no Brasil: ausência ou insuficiência de relatórios fidedignos e, no caso do Catolicismo, redução da transmissão.


No domínio metafísico, se alguém não se envolve com forças obscuras, movediças, normalmente é possível ter um vida tranquila. A certeza interior é baseada em Jnana (conhecimento) e Prajna (Sabedoria).

 

Em ambos os casos Shradda (Fé) está presente – a diferença são os relatórios.


O risco para alguns interessados em metafísica no Ocidente é cair numa falsa compreensão do que seja “transcendência dos opostos” – traduzindo-a como alguém se envolver tanto com o bem quanto com o mal e, se esta posição é ainda acompanhada com a adesão a certos andamentos que lidam com forças obscuras, chegar a enxergar isto (ou a avaliar-se) como “estar acima do bem e do mal”, e incorrer, inclusive, em tornar-se maligno, sendo que não há transcendência verdadeira nesta posição -. Os tradicionalistas explicariam que isto não se trata de metafísica tradicional verdadeira, mas, antes, de desenvolvimentos do “psiquismo sutil” (por exemplo: Seyyed  Hossein Nasr - "Homem e a natureza", Zahar Editores, 1977), no que eu concordo.


Tudo o que eu particularmente prezo, que eu tenho em apreço em relação ao Sufismo está conectado ao Islam. Para mim não existe Sufismo sem Islam, ainda que, lamentavelmente, as coisas não estejam transcorrendo bem fora  da Paciência, da Dignidade e da Tolerância do Sufismo.

 

Não há Budismo Vajrayana sem formação doutrinal consistente – e aplicada – e sem transmissão vinda de professores/mestres budistas vinculados às linhagens regulares de transmissão. Em continuação, os ritos/transmissões - e estou me referindo a ritos/transmissões objetivando elevações/iluminações - não podem fazer o seu máximo se nós não fizermos o nosso minímo (posição ética, esforços nas práticas e na compreensão e vivência dos ensinamentos na medida que for necessária – nem mais nem menos) .

 

Não há Sufismo sem Baraka (Benção). Nem tariqas (confrarias sufis) sem participação na Silsilat (transmissão regular remontando ao Profeta Mohammed - a paz seja sobre ele – bem como aos seus primeiros discípulos/”filhos”). Cada tariqa tem a sua genealogia informando a sua linhagem e conexão com o Profeta - o mesmo se constata em relação ao Budismo Vajrayana bem como às escolas hindús com os respectivos gurus).


Pessoalmente, vejo o Sufismo como um tesouro do Islam..  

No mais, dizem as más línguas - só as más (não recebem o Islam) - que eu já sou candidato a louco divino... quem sabe? ]